Poesia e música popular


…………………Uma levada maneira: poesia e música popular

 

Poesia ou Letra de Música?

Mesmo com todo o vigor cultural e estético da nossa música popular, ainda há quem proteste contra o seu estudo e pesquisa. Para estes puristas, música popular é passatempo e deve ser entendida como entretenimento, não como objeto de perquirição científica.

Noções de pesquisa e de lazer à parte, esta discriminação visa enfatizar que aquilo que é sério, de valor e rigoroso, deve ser ranzinza, maçante, enfadonho. Sabemos que não é bem assim. Barthes, por exemplo, sempre advogou “saber com sabor”.

Mas vamos ao nosso assunto.

Nos anos 70 era comum ouvir que os poetas tinham migrado dos livros para a música popular. A afirmação é originariamente atribuída ao poeta Paulo Leminski, ele próprio um compositor bissexto. Autor, por exemplo, da ácida “Verdura”, que lá pelas tantas atira:
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De repente vendi meus filhos pruma família

americana

eles têm carro, eles têm grana e a grama é bacana

só assim eles podem voltar

e pegar um sol em Copacabana.
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Letra que revolve as fibras do coração pater/materno num gesto inicial de selvageria: vender os filhos. Mas logo a indignação ante a venda se depara com um gesto de grande amor: “só assim eles podem voltar” e desfrutar do próprio país. Um chiste de liames líricos e corrosivos. Um canto de amor e protesto. Leminski consegue em poucos versos anular a falsa dicotomia lírico versus engajado; pessoal versus social. Em seus versos (como nos de Chico Buarque, de Aldyr Blanc, de Noel Rosa, entre outros) o sujeito é parte viva e integrante da massa. (A bem da verdade, tal como em T.S. Eliot, o tema, sempre incluso na forma, aparece com uma clareza absoluta e dissolve o par lírico versus social). O gesto individual encharca-se de significação plurissignificante. Assim, o poeta de Caprichos e Relaxos dribla a armadilha de que obra engajada é obra panfletária. Ele prova que aprendeu bem a lição de Maiakóvski: não há arte revolucionária sem forma revolucionária.

Mas eu escrevia no parágrafo anterior: “letra que revolve as fibras, etc., etc.”. Não seria melhor dizer “poesia que revolve as fibras, etc.”?

Por que é que quando nos referimos a um texto não musicado (geralmente versificado) nós o chamamos de “poesia” e quando este texto é musicado vira “letra”? Não resta dúvida de que há uma gradação de sentido nesta distinção – feita até irrefletidamente.

Poesia é sempre algo a mais. Aquele algo que vem inspirado por uma musa, algo que depura a palavra e lhe permite ser uma figura singular e autossuficiente. Letra é um pedaço de algo. De uma música, no caso. Há coisas, pontua Caetano, que de tão óbvias, passam desapercebidas ou são tomadas como exóticas. O olhar de Saussure sobre as várias faces do signo (inclusive os anagramas) deixou-o cego face às observações de Jakobson, como bem observa Irene Machado (Cf bibliografia).

É mesmo? Sabemos que não era assim, por exemplo, na Grécia Antiga ou na Provença. Música e poesia conviviam sem distinções e discriminações. Toda esta prática era oral e transmitida de geração em geração sem conflitos. A ruptura entre música e poesia se dá com o advento da escrita. Na folha de papel as palavras ganham autonomia. A partir de agora elas podem ser fixadas segundo critérios que vencem de longe os limites da memória. Da exploração dos meandros das palavras no papel à composição espacial dos versos, a poesia, via de regra, vai cada dia se distanciando mais e mais da palavra falada, da memória oral dos povos.

Assim, poesia vira um estatuto à parte. A música, por sua vez, verticaliza-se no emaranhado de imagens sonoras e vale-se das palavras, quando muito, para enunciar o nome dos compositores, o título das obras ou compor um libreto de características literárias quase sempre discutíveis.

Com a Bossa Nova, a partir dos anos 50, a coisa muda de figura no Brasil, nos mostra com maestria Ruy Castro, em especial em A onda que se ergueu do mar. Hoje é muito difícil estabelecer a zona limítrofe entre a uma “letra de música” e uma “poesia”. O brasilianista Charles Perrone insiste nesta divisa teórica, mas na prática nem sempre a faz com a devida pertinência prometida. Nem precisamos falar da produção de nomes consagrados de nossa MPB como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Vinícius de Moraes, João Bosco, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Alceu Valença, Nelson Cavaquinho, Cartola, Noel Rosa, Antonio Maria, Lamartine Babo, Wilson Batista, entre tantos outros. Podemos citar compositores “novos” como Chico Science, Arnaldo Antunes, Chico César, Arrigo Barnabé, Adriana Calcanhoto, Luiz Tatit, Otto, Zeca Baleiro, Itamar Assumpção, André Abujamra, etc.

Tomemos o caso de Arnaldo Antunes, que além de compositor de MPB é também poeta “de livros” como Psia (1986), Tudos (1990), As coisas (1991), Nome (1993; também é cedê e vídeo), Dois ou mais corpos no mesmo espaço (1997), Palavra desordem (2002), Et, eu, tu(2003), Frases de Tomé aos três anos (2006), Animais (2011), Cultura (2012), Saiba (2013). Arnaldo começou nos Titãs fazendo música e letra. Depois se deu conta de que algumas das letras (como a de “O quê?”) poderiam ser poesia de livro, quando transpostas para a folha de papel. No caso deste poema, a disposição gráfica na página em branco é essencial para a sua realização. Cantado, era puro rock. No livro revelou-se um belo poema concreto.

Neste caso a composição virou poema. Mas há o inverso. Do livro As coisas, Jorge Benjor musicou “As árvores”, um poema em prosa que agradou muito ao compositor de melodias tão imprevisíveis quanto singelas. Benjor, mago de melodias e ritmos, musicou o poema tão bem que parece que ele nasceu canção. No entanto, o próprio Arnaldo não o tinha musicado porque considerava-o “poesia de livro”.

A questão “poesia de livro” e “letra de música” é mais complexa do que julgamos à primeira vista. Alguns críticos afoitos decretam que poesia é coisa de livro, e letra de música é coisa cantada. Mas o próprio Platão (século V a.C.) já se interrogava: “o que são os versos dos poetas quando se lhes tira o colorido que lhes empresta a música?”.

Assim, adianta pouco ou quase nada o poeta João Cabral declarar que não gosta de música e o músico João Donato retrucar que odeia poesia. Os dois continuam cruzando seus desafetos estéticos com a força da realidade: poesia é música e música é poesia. Há muita música na poesia de Cabral. Como há muita poesia na música de João Donato.

O próprio Arnaldo Antunes musicou o grande Augusto dos Anjos. Está lá no disco Ninguém o poema “Budismo Moderno”. Surpreendentes acordes bossanovísticos associam-se à estridência de ruídos de um serrote e de uma guitarra distorcida contrapondo-se a uma programação de cordas. Um resultado, na certa alegraria ao próprio poeta, afeito ao que era novo, inusitado, instigante, provocativo.

Há mesmo uma gradação hierárquica entre os conceitos de “letra” e “poesia”? Se não há gradação de valor, o que diferencia uma da outra? Nada? Então podemos musicar todo e qualquer poema e/ou poeta? E toda letra de música é um poema? A questão, inúmeras (e por que não dizer infrutíferas vezes) esteve no olho do furacão dos afoitos e precipitados. Luiz Tatit resolve-a em Análise semiótica através das letras analisa, ainda que exagerando na aplicação do viés greimasiano, letras de canções brasileiras.

Pode haver poesia sem música? Afinal, os próprios poetas contemporâneos (muitos deles apoiados em Ezra Pound ou, por via deste, em Décio Pignatari) se dão conta de que a poesia é mais música e imagem do que letra. Para estes poetas (e para certos críticos literários), ela não deveria ser estudada no curso de Letras, mas sim em outros, como Música, Belas Artes, Arquitetura. Uma questão e tanto para aqueles que (ainda) insistem em ler poesia como se ela fosse prosa em versos.

O fato é que a forma da poesia se aproxima muito da forma da música e das artes plásticas. Não é à toa que a poesia, ao longo de toda a história de todos os povos, é a arte verbal menos consumida – embora a  “praticada” e comentada. No caso do Brasil, não há estatísticas sobre isto, mas calcula-se que temos mais poetas que leitores de poesia. E este cálculo tem razões para ser verdadeiro: os livros de poesia raramente batem a marca de um mil exemplares. Quer dizer: nem os próprios poetas se leem. É: poesia parece que continua sendo um perigo, como nos adverte Octavio Paz. Perigo na República de Platão, perigo nas Monarquias, perigo nas Ditaduras, perigo na sociedade capitalista, no capitalismo tardio, e na sociedade pós-moderna.

Já a música popular vende como água. E, por acaso, quem ousaria dizer que não ouvimos uma série de poemas quando um Gil, um Caetano, um Chico (Buarque, ou César ou Science) canta? Como ficamos? Gostaria muito de saber. Há tempos me proponho tais questões. A partir de algumas canções do repertório de Chico César, do estreante Otto e de Adriana Calcanhoto, tento pensar melhor esta questão.
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A música da fala e a oralidade da poesia

Há uma tradição na música popular brasileira de explorar um modo de cantar calcado nas entonações da fala. Aquela coisa da ginga do malandro de morro vem daí e faz escola na nossa MPB a partir de Donga e a gravação do nosso primeiro samba, Pelo telefone, em 1917, e chega aos inícios do século 21 na interpretação tão malandra quanto original de Zeca Pagodinho e de Marcelo D2. Este balanço maroto que a voz cantada surrupia da fala é bem diferente dos dós-de-peito dos tenores para os quais cantar bem é estourar tímpanos dos ouvintes de música popular.

Mas o que nos interessa é aquela coisa da ginga, do molejo, da musicalidade que habita a fala de cada um de nós. Ou o “texto”, como chama a este saber o semioticista Lótman. Sacamos que a entonação da fala possui um tipo de musicalidade. Alguns músicos perceberam isto muito bem. Noel Rosa foi um deles. Com seu jeito macio de falar, com o fio de uma voz fraquinha que vinha de um pulmão doente, o compositor de “Feitio de Oração” inovou a interpretação em nossa MPB, além de fazer escola. Mário Reis e depois João Gilberto souberam muito bem desafinar o coro dos tenores. Esses intérpretes inventaram uma nova maneira de cantar incorporando a tecnologia do microfone, que amplia a voz e dispensa os contorcionismos pulmonares.

Explorar os limites da fala, pesquisar o que nela há de musicalidade é assunto que está na ordem do dia das pesquisas de Hermeto Pascoal, revelou-me Pedro Osmar em entrevista publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais (número 61, julho de 2000). Noel talvez seja nosso primeiro intérprete bossanovista. Nara Leão alcunhada poeticamente de “os joelhos que cantam” (tinha belas pernas, era tímida e cantava suavíssimo) renovou o modo de cantar popular entre nós. Sua interpretação sensível e miúda, aliada a um repertório engajado com o que melhor se fazia na época, deixa saudades, além de boas e bons herdeiros, felizmente.

Pena que ao ser substituída no espetáculo Opinião (em 1964) pela estreante Maria Bethânia, a garra-carcará do modo de cantar atarracado aos pulmões tenha voltado à moda. Bethânia musicalmente é uma anti-Nara: enquanto para a primeira cantar é interpretar stanislaviskamente, para a segunda o canto é sempre brechtniano. Ou seja: a [hoje] diva Bethânia enche os pulmões e solta a voz em todas as direções, estremecendo de emoção e poesia quem estiver na área. Nara é parcimoniosa: seu canto é produto de um ato de contenção e elaboração cerebral da voz; a emoção é filtrada pelo rigor de um canto-falado. Nara canta como quem está pensando, tal como nos versos de Fernando Pessoa: o que em mim sente está pensando. Síntese de razão e emoção.
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A aurora da poesia

A poesia, num primeiro momento, ao ser fixada no papel, dispensou a memória e a oralidade. Cristalizou-se em formas fixas e começou a emaranhar-se num círculo de formas e sentidos vários. O papel agora fazia o que a memória não permitia: guardar termos e ritmos arquiirregulares, elencar expressões até então só dicionarizadas, realçar os esdrúxulos como requintes poéticos. Era a hora e a vez da poesia empolada, palaciana, cheia de volteios e lero-leros. Gerd Borhein explora, ainda que en passant, esta questão ontológica. Claro, que tendendo à filosofia. Mas sua reflexão é tão contundente que se aplica ao nosso caso.

Felizmente este foi apenas um momento. Embora, de tempos em tempos, poetas insistam na acepção de que fazer poesia (e muitas vezes prosa e até crítica literária) é embolar o meio de campo do texto com metáforas cifradas ou jogos de palavras numa colagem nonsense. De repente, aquela besteira fácil e inconsequente que os surrealistas denominaram “escrita automática” vira moda entre os incompetentes que querem “fazer” literatura ou “crítica” literária, sem consciência de linguagem e repertório crítico.

Por sorte sempre tivemos autores que romperam com o círculo fácil do preciosismo verbal enquanto qualidade literária. Na época colonial, Gregório de Matos é um grande exemplo da poesia que se apropria da oralidade da fala sem comprometer minimamente a fabricação do texto poético. Não é à-toa que ainda hoje nós o lemos com deleite. Lemos e cantamos Gregório com muito prazer, já que não são poucos os poemas seus que viraram canções, por exemplo, nas vozes de Maricene Costa e Caetano Veloso. (E Gregório vive hoje, mais do que em poeta algum, na poesia de Glauco Mattoso).

Indo além do período barroco encontramos outros poetas que prezaram a oralidade enquanto qualidade estética. Tomás Antônio Gonzaga (com Marília de DirceuCartas Chilenas), Álvares de Azevedo (com Lira dos Vinte Anos), Cruz e Sousa (com Broqueis) e Augusto dos Anjos (com Eu) foram oásis de respiração oral em meio a uma enxurrada de beletrismos.

A partir de 1922, com os modernistas, a literatura se deu conta de que para ser boa uma obra não precisa desprezar a fala. Pelo contrário: a oralidade garantiu a qualidade de muitos poetas modernistas, como Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade. Drummond veio logo depois e foi logo reclamando da pedra no meio do caminho que uns parnasianos anacrônicos queriam ressuscitar. E que conseguiram com a geração de 45, exceção feita ao grande João Cabral de Melo Neto, inserido nela apenas cronologicamente.

Cabral radicalizou a fala em Morte e Vida Severina e em Dois Parlamentos. E dela nunca abriu mão. Talvez seja um bom tema de reflexão: o rigor de uma forma valéryana aliado a uma oralidade não menos radical. A partir da produção dos modernistas, e até nossos dias, oralidade está ligada ao que há de mais experimental em nossa poesia. A poesia de Cego Aderaldo pode ser tão importante quanto a de Mallarmé. Augusto de Campos, nosso maior poeta vivo, fez esta observação há mais de 40 anos.
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Um lance de dados do Chico César

Desde 1995 quando lançou Aos Vivos, seu primeiro cedê, Chico César tem se revelado um compositor e intérprete de grande talento. Cuscuz Clã (1996), Beleza Mano (1998), Mama Mundi (2000), Respeitem meus cabelos, brancos (2002), De uns tempos pra cá (2006) eFrancisco, forró y frevo (2008) reiteraram suas qualidades. Sem tirar nem pôr. Embora críticos afoitos, impressionados antes de mais nada com a baixa vendagem de seus últimos discos, estejam agourando de plantão. Bobagem. Basta ouvir com atenção seus discos para perceber neles uma continuidade admirável do mesmo processo criativo.

Este paraibano de Catolé do Rocha tem se revelado um compositor de primeira linha da MPB. Seu processo de criação segue as diretrizes antropofágicas de Oswald de Andrade que apregoa a deglutição de toda e qualquer cultura, sem espécie alguma de preconceito, visando à produção um objeto singular, genuíno e, por que não dizer, brasileiro. O Tropicalismo bebeu fartamente nas águas do saber oswaldiano. Juntou Carmen Miranda com Miles Davis; Chacrinha com Chaplin; samba de roda com atonalismo, Eisenstein com Vera Cruz, Mondrian com Di Cavalcanti, Mário Reis com Stravinsky. O resultado todos conhecemos: um forte movimento artístico-musical que hoje, por exemplo, deita suas raízes sobre os nomes mais interessantes da MPB, das artes plásticas, do teatro, do cinema e até da moda. Em entrevista, em 1968, Caetano declarou a Augusto de Campos que o Tropicalismo é o novo antropofagismo.

Chico César é uma legítima cria do Tropicalismo. Ele incorpora conscientemente o projeto tropicalista, nas letras, nas melodias, nas roupas, nas performances, no palco, no uso da voz. Sua atuação no cenário artístico nacional e internacional apaga as fronteiras entre a cultura considerada erudita e a cultura considerada popular. Associa o forró ao jazz, a ciranda ao reggae, a poesia concreta ao cordel, o haicai a letras discursivas. Curte misturar Augusto de Campos com Cego Aderaldo; Woody Allen com Mallarmé; cavalo de pau com sandália havaiana; nirvana com seca nordestina; Jimmy Cliff com Mandela.

Antenado com as coisas do nosso tempo, suas canções sempre mexem conosco. Umas pelo ritmo; outras, pelas melodias; outras pelas letras; e outras, finalmente, por reunirem todos estes itens com qualidade.

Percebe-se que em sua obra desponta uma consciência de linguagem, ou seja, um projeto intencional de construir a criação, de experimentar com as linguagens, de buscar algo novo e, ao mesmo tempo, harmônico. Afinal, antes de mais nada, uma canção popular tem de associar o belo ao agradável. Há exceções: ótimas canções, porém nada agradáveis. Não me refiro a elas. Busco um consenso mais amplo: canção é espaço poético de letra e música cantadas harmoniosamente. É a isto que Tatit se refere em seu livro de estreia nos idos de 1986, A eficácia da canção. Canções cantadas com a naturalidade de quem fala. Chico, por ex., canta como quem fala. Às vezes ele fala mesmo, como em “Béradêro”, de 1995, ou “Solidariedade” e “Papo cabeça”, ambas de 1998.

Este caboclinho de Catolé faz sua antropofagia “comendo” no prato da História da MPB, da Poesia, da Cultura Popular, da Política Internacional, etc. Come até se lambuzar. Um exemplo rápido: no forró “Paraíba, meu amor” (1998; o título já nos remete ao refrão de “São São Paulo”, do eternirreverente tropicalista Tom Zé), o compositor paraibano associa o forró pé-de-serra e a voz de Flávio José a uma letra sofisticada que lá pelas tantas diz: «não quero chorar / o choro da despedida / o acaso da minha vida / um dado não abolirá”. A cadência envolvente do forró cai bem na citação dos célebres versos mallarmaicos: “um lance de dados / jamais abolirá o acaso”. Casar a poesia de Mallarmé com as festas de São João é “instalar a parabólica no mangue”, como canta o movimento musical Mangue Beat, também herdeiro do Tropicalismo.

Versos à frente, na mesma música, o compositor refere-se à “fogueirinha de laser que ilumina os festejos do meu coração”, cruzando as festas do interior com o novo coração do poeta que, longe da terrinha natal, e agora Pós-moderno, pulsa no ritmo envolvente do forró.

A interação de sua poesia com a de outros autores é uma das marcas mais visíveis da poética de Chico César. Na música “A prosa impúrpura do Caicó” (1995; desde o título uma referência direta ao belo filme A rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen) Chico canta:
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ah Caicó arcaico

meu cashcoeur mallarmaico

tudo rejeita e quer
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Um jogo de modas e modos de montar. Ludismo verbo-musical. Cachecoeur é uma vestimenta feminina, mas Chico Cria a palavra cashcouer: substitui o cache (que significa cobrir, enrolar, em francês) por cash (dinheiro, em inglês). Resultado: o coeur (coração, em francês) que se agasalhava romanticamente, passa a ser também mercadoria que transita no mundo financeiro. Tem mais: ele apronta com a palavra Caicó, reverberando-a dentro da palavra arcaico (arCAICO). Reverberação de sons e sentidos. Como se o compositor lançasse o dado da palavra arcaico e numa das faces do doado aparecesse Caicó, noutra,Ar, noutra, Cai, noutra Ai, e assim sucessivamente até chegar à possibilidade de se criar novas palavras, como se o adjetivo catolaico, que Chico César cria para significar, entre outros, descrença (laico) e fé (católico). É: o grande lance e dados de Chico César é jogar com o inusitado e não subestimar a inteligência e a sensibilidade do público.
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Um lance de dados do estreante Otto

Otto declarou a uma revista mineira: “a gente está no mundo pra mudar radical”. Esta frase sucinta explica bem seu processo de trabalho e o sucesso de seu primeiro disco solo, o Samba pra Burro, lançado em 1998 e logo eleito, pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) o disco do ano. Depois deste prêmio ele abocanhou uma série de outros, como os da MTV. Sucesso de crítica e de público, afinal quem é este rapaz cujo nome, lacônico, é formado por duas letras espelhadas?

Otto é pernambucano. De Belo Jardim, agreste. Viveu uma experiência radical com a música quando em 1989 se viu em Paris, com parcos 150 dólares e a Europa à frente. Virou-se bem, na certa, já que acabou ficando três anos por lá. Antes de viajar era DJ, mas tocar, compor, foram coisas que a necessidade europeia lhe impôs. Nordestino da gema, tocou ciranda, maracatu, forró e ritmos afins no metrô parisiense. Depois começou a mexer nestes sons primordiais e foi inventando canções sem modos. Quer dizer: sem dar bola pros modismos. Invenção (ou melhor dizendo: inven-som) virou sua praia.

Retorna ao Brasil em 92, conhece Chico Science e juntos lançam o Movimento Mangue Beat. Toca na banda Nação Zumbi. Depois na Mundo Livre S/A e, por fim, em 1998 lança seu disco solo. Otto lida com os ritmos nordestinos associando-os ao pop mais internacional e de ponta. Explora à vontade a música eletrônica. Em suas mãos os tambores primais reverberam sons digitais. Seus graves enchem o ambiente e têm uma riqueza de gradação poucas vezes contemplada em música popular. Mistura samba com techno, ciranda com drum’n’bass, samba com jingle. Ou seja, faz um samba-rave, um eletrolama, uma bossa-tecnova (ou qualquer neologismo musical que se queira cageanamente inventar) unindo som raiz e som eletrônico. Mas, atenção, caprichando nos graves e com um balanço pós-pop, Otto trafega leve e na contramão. Um canto, um som, uma fala que (nos) toca e surpreende a cada nota, a cada fonema. Poucos, nos últimos anos, bem poucos mesmo, ousaram como Otto em seu disco de estreia.

Samba pra Burro deglute elementos tribais em high-tech com a mesma irreverência com que Os Mutantes distorciam mentes/corações/estômagos/braços e pernas bem-comportadinhos nos festivais dos anos 60. Suas letras (ou poemas, a velha questão que não se esgota na mera terminologia) são as mais concisas da MPB. Otto não explicita verbalmente, mas seu disco declara com todas as letras: ele é herdeiro direto das tramas & tranças & transas da Poesia Concreta. Interessa-lhe em muito os significantes advindos de uma montagem de palavras que exploram e explodem em jogos de sons e de imagens. Tudo rico e raro, num misto de rigor e falso-relaxo que faz suas canções soarem como, como, como… bate-estaca-na-cabeça. Seu som é uma rave de trocadilhos verbais e sonoros que nascem, espelham-se e espalham-se à revelia do repertório do receptor. Na tela da imaginação figuras decompõem-se e reorganizam-se num caleidoscópio cerebral travestido de lisérgico. É som pra dançar, curtir, pensar. Otto adora o novo. Pra isto, tem criatividade de pra dar e vender.

Nada sobra em suas composições: a contenção alia-se ao rigor. A economia sígnica transparece em primeiro lugar nas letras. Há canções cujos versos não têm mais de duas palavras: é o caso de “Ciranda de Maluco”. Outras, apenas 3 versos: “Renault/Peugeot”. Outras então, sem versos, apenas um esboço de diálogo: “São Paulo”.

Cenas do cotidiano são captadas em flashes instantâneos. A narrativa de suas letras-poemas rompe com a linearidade costumeira das descrições. O texto está permeado de espaços em branco que se juntam à música também irregular. Resultado: as canções são breves, concentradas, lacônicas, parcimoniosas. Duvide daqueles acordes e daquelas sequências repetitivas. Questione aqueles versos mínimos. Otto dá machadada concreta através de versos que priorizam os substantivos. Se há poucos conectivos em suas letras é porque ele provoca o ouvinte a fazer as conexões, a ser coparticipante da obra. O corpo dança respondendo ao som; a cabeça pulsa respondendo às palavras. Este me parece um dos seus maiores trunfos: acessar corpos e mentes do público.

Com Otto o público é um receptor on-line instigado a manter um diálogo com a tradição e a vanguarda da poesia e da música o tempo todo. Consideremos algumas canções. Em “TV a Cabo” os números citados permutam-se num zaping que une os cabos da TV às grades dos presídios, passa pelo “ópio” das religiões e mídias (“acabo me tornando usuário”) e navega numa Internet que se planta no mangue (“o que dá lá é lama”). O segredo deste jogo de corpo ele explica num dos versos: “Só não caí porque sou nordestino bem alimentado”. Em “Bob” bastam seis versos curtos para montar o painel de uma (certa) galera hoje: barzinho, música, fumo, sexo.

E tome sambeletrônico, mano! Não nos iludamos: nem só de higt-tech vive o cedê. “O Celular de Naná” é uma ciranda-raiz tocada com pandeiro e acompanhada por um coro de crianças. Ciranda acústica que explicita o subsolo do processo criativo de Otto: celular e lua complementam-se no dia-a-dia do Brasil de hoje: “O celular de Naná é a lua / A lua é o celular de Naná”. Vaivém de imagens reverberadas no espelho dos versos invertidos. Eco pra nenhum Umberto reclamar. Antes: aplaudir, já que semiótica é a praia do bom italianinho.
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Um lance de dados da Adriana Calcanhoto

Vimos: musicar poemas não é nada simples. Mas quem disse que em música popular o simples é fácil? Erasmo Carlos, cancionista de mão cheia (em tempo: e autor de um livro chato à beça), acerta no alvo: “se o simples fosse fácil, teríamos milhões de ‘Parabéns a você’. No entanto, temos só um”.

É isso aí: musicar poemas não é simples nem fácil. Isto porque o resultado deve manter a essência do poema e ainda revertê-lo numa canção – ou seja, em algo que, como vimos, uma vez cantado, “caia bem”, “seja maneiro”. Ou, algo que resulte “eficaz”, como vimos Luiz Tatit pontuando em seus estudos semióticos.

Enfim, a canção originada deve soar em consonância com o poema e, ao mesmo tempo, nova, diferente, singular, como toda canção que se preze. Um exemplo desastroso de “colocar música” em poesia é o caso de “José”, de Carlos Drummond de Andrade. Musicado por Paulo Diniz, o poema perde seu intento e vira uma ba(ba)ladinha de debutantes. Sofrível? Pra lá de sofrível: mortífero. Quem não conhece o poema terá uma péssima impressão dele, se o conhecer através da música de Paulo Diniz.

Oras, o belo poema de Drummond retrata a tragicidade limítrofe a que chega um certo José, num belo dia. (Dispensável dizer que o nome José, tão brasileiramente comum, funciona como metáfora da condição existencial do brasileiro e, por extensão, da humana). José, em dado momento da sua história de vida, vê-se sem nada: festa, mulher, casa, amigos – e até sem a possibilidade da própria morte: “quer morrer no mar, mas o mar secou”.

Pois bem: musicado, o questionador, provocante e inquietante poema chapou-se numa lengalenga musical monocórdia. Paulo Diniz se esforça para cantar bem, mas é impossível cantar bem o que já nasce malfeito. (Dizem que Drummond ouviu a gravação e, como bom mineiro, não disse nada. Apenas fez um muxoxo).

Por outro lado, Cid Campos ao musicar o poema “O verme e a estrela”, do brilhante e pouco conhecido baiano Pedro Kilkerry (1885-1917), restringiu a melodia às estrofes inicial e final, deixando a do meio para ser recitada. O registro foi feito por Adriana Calcanhoto, em faixa homônima, no disco A fábrica do poema, de 1994. A gravação é tão modelar que quem quer que queira regravar esta música terá de passar pela interpretação singularíssima de Adriana e pelo arranjo musical do próprio Cid. Adriana coloca seus agudos em contraposição aos graves do arranjo musical, iconizando, semioticamente, o verme e a estrela. E faz isto com propriedade poética de quem sabe/vive/come Literatura e Música Popular. (Não é esta a primeira nem a última vez que ela se embala e se embola com a poesia em seus discos). Cid Campos mergulha nos contrabaixos – um deles em solo de rara beleza –, faz uma bateria bossa toda e traz para o surdo uma marcação discreta, exata, cool. Enfim, Cid e Calcanhoto produzem uma faixa que prima pelo rigor do belo. Sensível e inteligente. Vejamos o poema:
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O verme e a estrela
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Agora sabes que sou verme.

Agora, sei da tua luz.

Se não notei minha epiderme…

É, nunca estrela eu te supus.

Mas, se cantar pudesse um verme,

Eu cantaria a tua luz!

 

E eras assim. Por que não deste

Um raio, brando, ao teu viver?

Não te lembrava. Azul-celeste

O céu, talvez, não pôde ser…

Mas, ora! enfim, por que não deste

Somente um raio ao teu viver?

 

Olho, examino-me a epiderme,

Olho e não vejo a tua luz!

Vamos, que sou, talvez, um verme…

Estrela nunca eu te supus!

Olho, examino-me a epiderme…

Ceguei! ceguei da tua luz?

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Uma curiosidade: este poema pode ser lido de baixo para cima, ou seja, de trás para frente. Isto mesmo, como se o olhar do verme fosse oblíquo, refazendo-se à luz da estrela; esta, por sua vez, obscurece tudo que não seja luz autoprojetada, ou seja, luz que a espelhe e espalhe na imensidão narcísica de si mesma. O conflito se instaura sob fina ironia: lá pelas tantas o verme afirma/indaga: “Ceguei! ceguei da tua luz?”.

Édipo e Cego Aderaldo encontram-se nos versos de Kilkerry: um, pela ampla divulgação freudiana que mereceu (e merece) e outro pelas antenas sincrônicas de poemas e poetas. A escolha inusitada de um verme dialogando com uma estrela provoca estranheza no leitor. Principalmente no leitor da época: lembremo-nos de que a Semana de Arte Moderna, que liberaria definitivamente a poesia (e a arte) de suas traumáticas amarras formais e temáticas, só viria a acontecer anos depois da morte de Kilkerry.

Mas fica bem musicar-se apenas parte de um poema? O nó da questão não está aí, mas na pertinência (eficácia) da música ao poema. No caso, a palavra falada, ao lado da palavra cantada, faz referência às duas vozes diferentes do poema: a do verme e a da estrela. Todavia, o xis da questão está na integração contínua a forma com o fundo. Quer seja, a forma (= a linguagem do poema) e o fundo (= as ideias do poema) devem ser encarados enquanto unidade indissolúvel. Afinal, a canção não é a soma da letra com a música: é o todo único de letramúsica ou poemúsica. Mais: o resultado final deve incorporar a naturalidade do canto, que só “cai bem” quando o canto respeita a naturalidade da fala.

Assim, em música popular, cantar é falar com entonação sistematizadamente criativa. Aí é que a porca torce o rabo: entonação + sistematização + criatividade. Um tripé que não sabemos como conseguir, mas que, uma vez feito, é facilmente identificado. E aí, a canção fica em nós. Gira em nossa cabeça; toca nosso coração; vira batuque na mesa, compasso nos pés, assovio, ou mesmo repetição interminável de um mesmo trechinho, que a gente não consegue esquecer – e nem se lembrar do restante. Daí fica aquela parte da música martelando nossa memória como um ímã, como um vinil riscado. Mas como pode ser uma coisa boa, se sempre perguntamos: “como é mesmo o restante?”. Não importa. Se ficou, mesmo em parte, é sinal de que a música, digo, a canção, valeu a pena.

Este artigo integra o livro homônimo, que versa sobre canção brasileira, e é dedicado a meus 4 filhos: Mariana e Bernardo: poesia e música viva; e ao Marcelo e ao Pedro, poesia e música eternas, in memoriam.

 

 

 

 

Referências bibliográficas

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Amador Ribeiro Neto nasceu em Caconde (SP), em 1953. Autor de uma dissertação e uma tese de doutorado sobre a criação lítero-musical de Caetano Veloso, recebendo os títulos de mestre em Teoria Literária pela USP e doutor em Semiótica pela PUC/SP. É autor de “Barrocidade” (Landy Editora, 2003). Integra as antologias Na Virada do Século, organizada por Claudio Daniel e Frederico Barbosa e Poemas que escolhi para as crianças, organizada por Ruth Rocha. Atualmente vive em João Pessoa, onde leciona na UFPB.  Durante muitos anos escreveu regularmente crítica literária em diversos jornais de São Paulo. O autor escreve periodicamente nos blogues augustapoesia e em zonadapalavra. E-mail: amador.ribeiro@uol.com.br





Comentários (1 comentário)

  1. Aqueiva, Ceguei! ceguei da tua luz, Amador! Só mesmo fios de aço invisíveis para fazer crer que há por definição distinção entre poesia de livro e letra de música.
    13 novembro, 2014 as 18:17

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