Poesia & delírio nos anos 70


Rio de poesia & delírio nos anos 70

Nuvem Cigana: arte e vida unidas em profunda e deliciosa unidade

Se você quiser eu danço com você
Meu nome é nuvem, pó, poeira, movimento
Meu nome é nuvem
Ventania, flor de vento, madrugada
Eu danço com você o que você dançar
Se você deixar o coração bater sem medo
Se você deixar o coração bater

(“Nuvem Cigana”, Ronaldo Bastos e Lô Borges)

 

 

Era uma vez um grupo de amigos sem lenço nem documento, mas cheio de drogas na mão e fantasias na cabeça. Era uma vez uma reunião de insubordinados em plenos anos de chumbo da ditadura militar, mas que voava como um led zeppelin. Era uma vez uma trupe de porraloucas no Rio de Janeiro dos anos 70, mas que levava a sério a idéia de que a vida não é para ser levada a sério. Era uma vez uma ventania soprando uma nuvem cigana…

Certo dia, o coletivo de “brothers” resolveu tomar um ácido e dar um rolê por aí (como no som dos Novos Baianos). A moçada partiu da Ladeira, passou pela Lagoa Rodrigo de Freitas e ancorou em Ipanema, como se tivesse saído da navilouca de Wali Salomão e Torquato Neto, ou do barco bêbado de Rimbaud. Com os pés na areia e a cabeça nas nuvens, o compositor e poeta Ronaldo Bastos, incorporando um serafim alucinado, apontou para o céu e perguntou ao artista gráfico Cafi: “Você está vendo uma nuvem cigana?”.  Era uma vez uma viagem que virou história…

O barato lisérgico foi a célula inicial que, depois de mitoses e meioses, deu início a um organismo muito maluco, anticonvencional, contracultural, batizado de Nuvem Cigana. A idéia começou, na verdade, antes da loucura em Ipanema: Ronaldo, visitando o irmão exilado em Londres (que mandava ácido para alimentar a imaginação da rapaziada), começou a pensar em organizar no Brasil uma empresa na linha da Apple, dos Beatles, com pessoas de distintas áreas de atuação reunidas sob o mesmo símbolo. Uma empresa multimídia, com um segmento editorial, outro voltado à produção de eventos, outro especializado em cenografia, etc. Como disse ao poeta Chacal, parceiro de mil baladas, o objetivo geral era “de organizar um grupo em forma de uma empresa que não fosse careta e que possibilitasse uma relação saudável com o mundo”.

A idéia começou, na verdade, antes ainda das visitas ao irmão: já vinha sendo discutida pelos músicos do Clube da Esquina (aquele mesmo grupo de que fizeram parte, por exemplo, Milton Nascimento e Lô Borges). Entretanto foi em Londres que as coisas tomaram corpo. A idéia, então, estava à procura de um nome. Voltando ao Brasil, Ronaldo registrou uma firma com o nome de Nuvem Cigana. Mas foi depois da viagem psicodélica em Ipanema que a idéia encontrou o nome que procurava – importante retomar a história para registrar corretamente em ata (isso mesmo: como deixou claro Lúcia Lobo, outra participante do coletivo, “a gente fazia reuniões semanais, toda segunda-feira, e tinha ata e tudo. Aquela era uma loucura organizada”).

O grupo, estruturado como uma espécie de clube, precisava, como um clube, de um hino. Foi aí que Ronaldo – junto com o parceiro Lô Borges, que era membro de outro clube (o da Esquina) – compôs a música Nuvem Cigana. O hino é a mais perfeita tradução do espírito da “empresa”, como atestam as seguintes palavras do padrinho de batismo: “É uma música que considero muito emblemática daquele período. Porque ela vinha de uma idéia que era muito cara para nós de tentar juntar o estético com o existencial. Era algo ao mesmo tempo poético, político e que trazia uma informação muito clara do que estávamos vivendo. Essa idéia de circular por onde era possível, levar uma vida estradeira, estar em movimento, que era uma oposição radical à ditadura. E tentar construir um tipo de mito em cima disso”.

Quanto há de verdade, quanto há de lenda envolvendo a versão carioca da contracultura tupiniquim, difícil dizer. Em todo o caso, quando a lenda supera a realidade, registre-se a lenda. Nas palavras do poeta e editor Sérgio Cohn, no “abre alas” do livro Nuvem Cigana: poesia & delírio no Rio dos anos 70 (brilhantemente editado por ele – cujo nome, aliás, se destaca há uma década no mercado de livros, com sua editora Azougue, sempre tentando deslocar para o centro obras e autores confinados às margens da leitura e da crítica): “Com o desdobrar das 38 horas de entrevistas realizadas, coletivas e individuais, os fatos foram aparecendo com cada vez mais detalhe e vida. Mesmo assim, invertendo a célebre frase do western de John Ford, nos sobrou nos deliciar com o mito, embora saibamos que a realidade deve ter sido ainda mais divertida”. Divertida como esta pérola que rolou de Charles para Cohn, a respeito das entrevistas: “Isso vai ser ótimo! O primeiro não se lembra, o segundo esquece e o terceiro inventa!”.

Para matar a curiosidade do leitor, sem tirar a roupa da stripper antes do fim do espetáculo, uma das histórias impagáveis registradas no livro envolve a participação dos poetas do Rio num evento literário organizado no Teatro Municipal de São Paulo pelo poeta Cláudio Willer. O encontro, intitulado “Feira de Poesia e Arte”, duraria três dias, reunindo cerca de 15 mil pessoas.

O começo da viagem para Sampa foi conturbado: Chacal tinha sido preso na noite anterior porque, na saída do clássico Fla-Flu, estava “mijando” na rua. Liberado pelo pai, conseguiu embarcar com o pessoal. Como lembra o parceiro Xico Chaves: “Foi uma loucura total, nós ficamos no último vagão do trem, falando poesias improvisadas para os trilhos”.

Chegando ao destino, todos ficaram na casa do editor Massao Ohno. Mas a piração seguia viagem, como recorda Ronaldo Santos, outro membro do coletivo: “Era aquela bagunça, cada um dormia onde caía. E um dia o Charles saiu de carro com a mulher do Massao, era um Galaxy, e bateu o carro. O Massao ficou possesso”. A memória de Chacal gravou outra parte da história: “Antes de chegar ao Municipal para a apresentação do segundo dia, a gente sentou num boteco lá do lado e fez a seqüência dos poemas que seriam lidos”.

Preparando-se para enfrentar a formalidade paulista e as pompas do Municipal, célebre palco da Semana de Arte Moderna de 1922, o poeta e compositor Bernardo Vilhena (autor de composições como Revanche Vida Bandida, gravadas por Lobão) acrescentou o seguinte: “Ficamos lá no bar fazendo roteiros e esquentando. O negócio era cerveja, conhaque Palhinha e Reativan, que era um remédio estimulante. Em São Paulo não tinha cocaína, então a gente parou numa farmácia e cada um comprou o seu vidrinho…”.

Quanto ao que fazer no recital, o poeta Charles disse que o grupo “sempre teve uma preocupação enorme em não ser chato, não cansar quem estava ouvindo. Então tentava fazer leituras rápidas. A estrutura básica era intercalar a leitura, cada um lia um pouco e passava para o outro, e assim ia (…). A própria experiência de falar em público influenciou nossa poesia, os poemas começaram a ficar mais longos, com uma estrutura menos entrecortada e uma linguagem mais oral”.

Fundindo arte e comportamento, poesia e delírio, em franca oposição às propostas formalistas de poetas confinados em seus gabinetes para criar, a participação dos cariocas dinamitava as redomas de cristal da racionalidade artística, materializando a máxima de que não há poesia experimental sem vida experimental (curiosamente, divisa do poeta paulistano Roberto Piva, do mesmo grupo de Cláudio Willer). Numa atitude rock´n´roll bem na linha dos dadaístas do início do século XX ou dos beats da década de 60, o poeta Tavinho Paes agarrou uma garota nos bastidores: “Daí me deu uma vontade de mijar e saí procurando um banheiro. Perguntei para um funcionário do teatro, ele me apontou uma porta e, quando entrei era a coxia (…). Então vi que o Xico Alves estava no palco, e tinha um holofote aceso. Eu estava quase mijando nas calças, então aproveitei a chance. Quando comecei a mijar o teatro ficou em silêncio, isso eu jamais esqueço, e vi um cara se aproximando para tirar fotografia. Eu estava com óculos de esquiador, então ninguém me reconheceu depois. Foi por isso que eu não fui preso”.

A mesma sorte não teve Demétrio, outro integrante do coletivo de desbundados apologistas da linguagem do escracho (os desbundados eram os ditos alienados, em oposição aos “engajados”, de acordo com o maniqueísmo da época). O performático saiu de repente de trás da cortina e começou a tirar uma fita preta da boca e babar (bem no estilo da obra Baba antropofágica, da artista plástica Lígia Clark, que também fundiu arte e comportamento, cutucando o público para abandonar a postura passiva, meramente contemplativa, diante da obra de arte). Foi então que ele resolveu tirar a roupa e foi preso. Bernardo Vilhena faz a melhor síntese dessa viagem à “panamérica de áfricas utópicas”: “A nossa ida para São Paulo começou e acabou com uma mijada”.

Para não parecer que tudo era só festa, falemos mais do trabalho – apesar de que trabalhar também era uma forma de festejar. A empresa multimídia começou suas atividades atacando no mercado editorial: o primeiro lançamento foi o livro Creme de lua, do poeta Charles Peixoto. Depois, os caras deram início a um misto de performance, poesia lida em voz alta e festa (“trabalhando” sempre sob as bênçãos de Dionísio): os eventos foram batizados de Artimanha, nome tirado de um poema de Torquato Neto publicado na revista Navilouca.

Como dizia Charles, “Artimanha não é performance, é loucura mesmo”. Durante as celebrações, rolava o “Alert Limão”, uma bebida com fórmula secreta, “misteriosíssima” (com cachaça, vodca, rum, limão, açúcar, etc), que o grupo fazia e distribuía em botijões de metal para o público. Estes trechos do manifesto de Chacal dão um pouco o tom da brincadeira: “Artimanha sabe que sem malandragem não é possível/ sabe que é preciso ocupar espaço/ sabe que é preciso gastar munição”.

Outra criação coletiva foi o Almanaque Biotônico Vitalidade, revista alternativa com ótimo acabamento gráfico e qualidade editorial. As intervenções do grupo também revitalizaram o carnaval de rua do Rio com o bloco Charme da Simpatia (primeiro bloco carnavalesco da zona sul). Uma das atrações era o banho à fantasia: a moçada rodava pelas ruas, batucando e sambando, e depois caía no mar…

Mas isso é só uma pequena parte da história: muito mais água rolou dessa Nuvem. Tanta água que a nuvem desapareceu. Mas não morreu: como ensina a poeta Alice Ruiz, “nuvem não morre, vira chuva, evapora ou vai embora”. E foi tanta chuva, que levou “embora toda a tristeza, trazendo cor, alegria, vida pra tudo e pra todos”. Chuva que irriga, que fertiliza, que dá frutos. E não foram poucos os frutos…

Sem a sua presença, por exemplo, o teatro besteirol teria sido o que foi? Não por acaso Chacal namorou Regina Casé, do grupo Asdrúbal trouxe o trombone (dirigido por Hamilton Vaz Pereira), de onde saíram, por exemplo, os atores Luís Fernando Guimarães e Evandro Mesquita, amigo da rapaziada que fundaria a banda Blitz (a mãe de Evandro foi professora de Português de Ronaldo Santos). A moçada influenciou também o rock dos anos 80. Bernardo Vilhena, não curiosamente, foi parceiro de Lobão, que foi baterista da Blitz – aliás, batizou o grupo: “Não tem o Police? A nossa vai ser a Blitz”.

Não à toa, Cacaso (também poeta e compositor, além de crítico literário e professor universitário) dizia de seus contemporâneos: “A vida não está aí para ser escrita; mas a poesia sim está aí para ser vivida”. Nessa toada é que essa geração escreveu junto um grande poemão, leve e livre como uma nuvem cigana. Como na história de Alice Ruiz, “de tão grande que ela era e de tanta felicidade que estava derramando (…) ela se choveu todinha e por isso era uma vez uma nuvem”.

 

 

 

 

 

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Paulo César de Carvalho é bacharel em Direito e mestre em Lingüística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares, do CPC-Marcato e do Diex, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Foi colaborador da revista Discutindo Língua Portuguesa. Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Arte & Informação, Livro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”.




Comentários (2 comentários)

  1. joão antonio, Paulo César Belo trabalho sobre o grupo(hoje chamamos de coletivo) Nuvem Cigana. Tenho muita coisa aqui deste periodo, gostaria de enviar pra você digitalizado. Mande seu email pra mim, acaso queira receber e trocar figurinhas(arquivos). jabuhrer.almeida@gmail.com ab joão antonio
    3 novembro, 2012 as 15:32
  2. brih, Paulo, to adorando te ler…tem q se devagar pra ir degustando aos poucos as palavras…acho q tenho muito a aprender contigo….
    2 abril, 2013 as 23:54

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