Poemas do desterro


OVÍDIO. POEMAS DO DESTERRO

 

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Alegrem-se os leitores que não dominam o Latim mas entendem bem o idioma de Camões.

Alegrem-se ainda mais os que, entre esses, são leitores – senão devotos – daquele a quem Camões chamou o sulmonense Ovidio, na magistral elegia com que o autor d’ Os Lusíadas se antecipa e desafia quem quer que deseje escrever, em língua portuguesa, sobre o autor de Metamorfoses. Peça de primor irretocável, cuja precedência obriga a citar-se dela ao menos um trecho, antes de satisfazer a curiosidade do leitor destas linhas, despertada pela introdução e atiçada pelo suspense:

 

O sulmonense Ovídio, desterrado
na aspereza do Ponto, imaginando
ver-se de seus parentes apartado,
……………………………………………
de sua pátria os olhos apartando;

não podendo encobrir o sentimento,
aos montes e às águas se queixava
de seu escuro e triste nascimento.

O curso das estrelas contemplava
e como, por sua ordem, discorria
o céu, o ar e a terra onde estava.

Os peixes pelo mar nadando via,
as feras pelo monte, procedendo
como seu natural lhes permitia.

De suas fontes via estar nascendo
os saudosos rios de cristal,
à sua natureza obedecendo.

Assim só, de seu próprio natural
apartado, se via em terra estranha,
a cuja triste dor não acha igual.

Só sua doce Musa o acompanha,
nos versos saudosos que escrevia,
e lágrimas com que ali o campo banha.

Destarte me afigura a fantasia
a vida com que vivo, desterrado
do bem que noutro tempo possuía.

Ali contemplo o gosto já passado,
que nunca passará pela memória
de quem o tem na mente debuxado.

Ali vejo a caduca e débil glória
desenganar meu erro, coa mudança
que faz a frágil vida transitória..

 

Embora sendo apenas o trecho inicial de um mais longo lamento elegíaco, é talvez demasiado para uma breve resenha; e contudo vem ao caso citá-lo, porque, ao comparar o seu próprio banimento com o do poeta latino, Camões ao mesmo tempo compreende e descreve com fluente clareza o estado de alma em que se encontrava no desterro o malfadado Ovidio; e assim não só executa com o antecessor um diálogo poético (dando mostra de ter lido as cartas por ele escritas no exílio), mas também cumpre, com o auxílio da metáfora mítica, uma eficaz interpretação do sentido da elegia ovidiana como lastimosa meditação sobre a viragem da fortuna e a consolação da poesia.

E é esse, precisamente, o conteúdo das elegias ovidianas, selecionadas e traduzidas por Albano Martins, a partir das obras Tristes (Tristia) e Pônticas (Epistulae ex Ponto), publicadas em março deste ano de 2017, pelas edições Afrontamento, com o título: Ovídio. Poemas do Desterro. Esse o conteúdo das elegias, cujos tom e teor cumpre aqui abordar, havendo também que se dizer – com a concisão necessária em função do espaço permitido a uma recensão – do autor, do tradutor e da tradução.

Quanto ao autor, dispensaria apresentações, sendo bastante lembrar que por suas obras imortais alçou-se a ícone duma vertente greco-latina, venerada e glosada ao longo de séculos, antes e depois que o divino autor da Commedia deu-lhe lugar de honra junto a Homero, no glorioso e discreto limbo reservado aos poetas que, merecendo embora o paraíso, ali não poderiam ser domiciliados, por terem nascido antes de Cristo, em era pagã (Ovidio no ano 43 A. C.).

Do tradutor também seria escusado dizer aqui mais que o suficiente: Albano Martins, além de poeta desses raros afortunados a quem cabe o reconhecimento, com todas as merecidas honras, ainda em vida, é também um homem de Letras, no sentido mais próprio do termo: filólogo culto, erudito, dá-nos exemplo de operosa e generosa simplicidade quando, devotado à Poesia e aos poetas, brinda-nos com antologias (como a dedicada ao poeta Lêdo Ivo) e traduções diversas, de gregos a europeus, de Safo a Leopardi e Neruda, e, neste mais recente, com algumas das contundentes elegias de Ovídio, que traduz com clareza e simplicidade, cingindo-se respeitosamente ao texto.

Quanto ao conteúdo da obra em pauta, inevitável talvez seja, quando se queira dizer das elegias em si, considerá-las no conjunto da poesia ovidiana, o que antes leva a indagar as circunstâncias e os motivos do coup de foudre que está na origem das cartas tristes escritas no desterro do Ponto pelo brincalhão fogoso, que pagou com o exílio em confins bárbaros e gelados sua libertinagem poética em louvor do deus das flechas e de sua mãe lasciva, nos graciosos dísticos de Amores. Teria sido esse livro, ou também A Arte de Amar, a causa de ser ele banido para longe do ócio confortável que desfrutava – como bem nascido – em sua prezada Roma? Octavio Augusto, obcecado pela ideia de impor uma pátria hipocritamente moralizada, teria punido o cantor de Eros só por ter ele narrado delícias de alcovas? Ou haveria algum segredo sórdido de que o poeta indiscreto fosse sabedor, que o obrigasse a ser afastado da corte? Pior ainda: teriam os versos de todas suas obras (os Fastos inclusive) veiculado maior apreço pela Roma rústica dos primórdios – quando nela folgavam os jogos campestres do deus da hera e da vinha, que os latinos chamavam Pater Líber – manifestando assim desprezo pelo propósito marcial e autocrático do que se alçou a César e se impôs como divino?  Essas e outras razões se cogitam para o duro castigo. Houvesse, porém, confronto pessoal, moral ou político, ou até o proverbial cherchez la femme, o que aqui vem ao caso é a constatação que nos assalta ao percorrer esses cânticos sofridos, dos quais emanam penosas confissões de erro sem culpa, de injusto, rigoroso, cruel e implacável castigo, com súplicas pelo perdão, que não lhe é concedido nem com a ascensão de Tibério, depois da morte de Augusto. Mas, se aí nos detivéssemos, daríamos apenas ideia duma ladainha de acabrunhadas lamúrias, nas quais só com muita argúcia se detecta o mais leve sinal de revolta e revide contra o rival que o destruiu. Por aí no máximo chegaríamos à constatação de que o exílio é uma espécie de morte em vida, não só por encurtar os anos ao exilado, mas por separá-lo antecipadamente de tudo aquilo que o mantinha vivo.

É natural que a leitura nos leve a decidir pela inferior qualidade poética dos Tristes e das Pônticas em comparação aos versos de Amores, Fastos e, sobretudo, do portentoso e prodigioso Metamorfoses. Entretanto, não se poderia negar que aqui se ouve – ainda que em tom menor e mais veramente lastimoso – o poeta cantor de deuses, mitos e astros, exímio criador da metáfora mítica, da qual se faz herdeiro Camões. E é também aqui uma constante recorrente semântica a incidência de menções a Tróia e à tragédia troiana, com heróis e mártires dos dois exércitos, que estão na origem do Lácio. Mas aqui Ovídio, o pássaro canoro que cantava os bosques temperados de sua terra de origem, entoa um cântico monocórdico ao gelo e à barbárie circundantes, e, sobretudo, ao esmagamento de um indivíduo pela força de um decreto imperial.

Não são essas, porém, as constatações mais concernentes que oferece a leitura das peças escolhidas por Albano Martins aos leitores de poesia e de Ovídio. Dois tópicos, estes, sim, parecem impor-se a todos os demais: o de que sem dúvida alguma – mesmo quando o poeta acusa as Musas de serem a causa de sua perdição – é a poesia, como disse Camões nos já citados versos, quem o sustenta e conforta quando tudo o que compunha a sua vida foi por terra; e o de que há no poeta uma consciência firme e fulgurante do valor perdurável da sua obra, cujo destino de eternidade no tempo e universalidade no espaço ele reitera, invocando o mortalis versus perennis de Horácio (Ode 3. 30), pelo qual se proclama a superioridade espiritual da Poiésis frente à materialidade perecível dos assuntos da polis – o que por si já seria ali causa suficiente para a expulsão do poeta da república romana, depois da platônica; e aqui recomenda a leitura, não só ao devoto de Ovídio, mas também a quem que interesse refletir sobre o confronto de poesia e poder, que se repetirá no banimento de Camões.

Quanto ao segundo tópico, que o leitor de Ovídio – sempre admirado quando lê as proféticas palavras com que o poeta, em suas obras, proclama a perenidade da sua poesia no tempo e no espaço – admire-se também agora ao ver confirmarem-se mais uma vez suas recorrentes profecias, espalhando-se os tristes versos pônticos em língua portuguesa, o que ora devemos ao operoso Albano.

E de resto – aos que se interessam pelo livro enquanto objeto – louve-se também a editora, que nos ofereceu uma peça de simplicidade condizente com o ideal clássico, e cuja bela capa, com formas e cores discretas, já começa por dizer do respeito que todo o livro dispensa à obra.

 

 

 

 

 

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Luiza Nóbrega é escritora (poeta, ficcionista e ensaísta) e pintora, professora de Artes e Literatura recém-aposentada pela UFRN. Graduada em Direito com medalha do Mérito Universitário. Estudou Artes Plásticas no CPA (Rio de Janeiro), com Ivan Serpa, praticou com Nise da Silveira em seus grupos de estudos e foi discípula de Rolf Gelevski. Mestre em Literatura Brasileira na UnB, Doutora em Letras Vernáculas-Literatura Portuguesa na UFRJ e Universidade Nova de Lisboa e com dois posdocs (o primeiro, sobre Os Lusíadas, nas Universidades de Évora e Nova de Lisboa; o segundo, sobre Lêdo Ivo, na Università degli Studi di Perugia). Especializada na leitura dos discursos poéticos, dedicando-se especificamente a Camões e Lêdo Ivo. Membro de três Centros de investigação: dois em Portugal (Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra e Instituto de Estudos Portugueses, da Universidade Nova de Lisboa) e um na Itália (Centro di Studi Comparati Italo-Luso-Brasiliani/Universidade de Perugia). Em novembro de 2015 coordenou o evento internacional POESIA SEM FRONTEIRAS: PAUTA E CENA COM LÊDO IVO, realizado na UFRN. E-mail: luiza14@gmail.com




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