Poemail


O ENCONTRO DA ALEGRIA

Por Ronald Polito

Este é o melhor livro de poemas de Amador Ribeiro Neto. Não que os anteriores não tenham interesse, muito pelo contrário. Mas Poemail é, entre seus trabalhos, o mais elaborado e variado, o mais maduro. E o mais ambicioso. Essa ambição decorre de dois ordenadores gerais que emolduram o conjunto, ou melhor, o projeto: o encontro e a alegria.

E são vários os encontros, várias as alegrias. Primeiro, os encontros. A divisão tripartite do livro organiza os contatos fundamentais: com as linguagens, com o mundo, com as pessoas, nesta ordem. Vai-se do mais abstrato ao mais pessoal. Os veículos para essa longa viagem são as escolhas que ele fez no âmbito de nossa tradição literária, enunciadas na primeira seção. Dito de chofre: Amador está entre nossos melhores leitores de duas de nossas principais heranças: a poesia concreta e o tropicalismo. Seu trabalho é, tal como o percebo, uma tentativa de elaboração a partir, centralmente, dessas duas tradições, tendo João Cabral ao fundo. As epígrafes de João Cabral, nesse sentido, cumprem esse papel, tomando Cabral, e não o modernismo, como ponto de partida para o que ele considera o que vem sendo feito de mais importante na poesia brasileira na segunda metade do século XX e no atual. E aqui entrevemos um Cabral múltiplo, meio imprevisto, da secura cortante de sua objetividade ao sentimento delicado que ele pode expressar em seu contato com os outros, como se lê na epígrafe da última seção: “há gente que se infiltra / dentro de outra, e aí mora”.

Como se trata de encontro, de comunicação, de diálogo, o título Poemail deveria ser tomado neste sentido: a perspectiva do e-mail como modalidade de comunicação, de convívio, de sociabilidade. Enfim: de correspondência, o que me parece o essencial. Não o fugaz, o fortuito, mas o encontro durável com o leitor. E sem concessões à poesia marginal ou à sua repaginação em curso, o que se deve notar.

As três seções do livro abordam, então, os três encontros fundamentais. A primeira trata do encontro com a literatura, a música e a crítica, em que se descortina o “paideuma” do autor: João Cabral, Graciliano Ramos, Rubem Fonseca, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Raduan Nassar, Severo Sarduy, Glauco Mattoso, João Alexandre Barbosa, Saussure, Tom Jobim, Dorival Caymmi, Caetano, Gil, para citar apenas os mais evidentes. O poema de abertura, “o corvo de joão cabral”, dá uma boa medida de seus procedimentos, não apenas pelo que sintetiza do próprio João Cabral, mas pelo fato de lê-lo a partir do concretismo, mais especificamente, de Augusto de Campos, em vez de fazer mais um poema cabralino ou ainda ser servil a Augusto. Trata-se de apropriação de “método”, mas criativa, independente.

A mesma que podemos ler em “ai essa danada da poesia”, que é dos melhores poemas de todo o livro. Nele vemos com que habilidade Amador desentranhou de uma entrevista concedida por Haroldo de Campos a Samuel Leon, de um texto corrido, a poesia que poderia estar ali. Outro bom exemplo de leitura diagonal é “grácil graciliano”: como, usando procedimentos do concretismo, Graciliano se encontra sintetizado, ali onde a economia, a objetividade e a aridez podem aproximá-lo inesperadamente da poesia concreta.

Na segunda seção, são várias as homenagens a espaços sociais e naturais, bem como a realidades culturais, que definem sua trajetória e sua sensibilidade. É todo o Nordeste que salta dessas páginas, com foco particular em João Pessoa, onde o poeta vive e aprendeu a se converter em “nordestino”. Mas também é hora de, à distância, relembrar e homenagear a Minas de Drummond, como também a Caconde onde Amador nasceu. Bem como registrar seu interesse pelas diversas formas da cultura popular, particularmente a cultura negra. Esse acerto de contas com esses espaços vitais e culturais é regado com o melhor humor que temos hoje em nossa poesia. Como nos versos “como é / que fode”, do poema “mar asno”. O erotismo é claro, desavergonhado, e dá a tônica em vários poemas, como em “no forró” e, mais ainda, no em parte homoerótico “o amor e o poeta”. E também importa o elogio da preguiça num mundo de só negócio, já tematizado em Mário de Andrade, mas aqui sob o sol do “meio-dia no sertão”, como uma promessa de gozo e felicidade.

A terceira seção, mais intimista, acerta as contas com a dimensão individual, subjetiva de suas experiências, chegando a momentos de autoexposição dramáticos e muito dolorosos, como principalmente no poema “meu jovem filho”. Notem-se a delicadeza de “mar / tírio”, no poema “birô cajazeirense”, a firmeza de caráter de “a mãe”, em que o poeta a homenageia, e, principalmente, os poemas para seus quatro filhos. São particularmente belos em sua naturalidade, clareza e simplicidade na declaração de amor por eles e também na dor por sua perda. E o tristíssimo poema “não há” enfrenta a tragédia de existir com um humor que não é mesmo para qualquer um.

Lição de vida, lição de poesia. Há uma energia para lidar com a catástrofe, com a desgraça do nosso tempo, que é invejável. Há um ânimo que é de tirar o fôlego diante de tantos nãos. Daí a abertura da terceira seção com o “impudico” poema “natalina”, que aqui soa como um manifesto, uma palavra de ordem. No meio de tanta dor, por vezes uma alegria odara, por vezes apenas a alegria, sem adjetivos, que é a mais importante. E isso é que é muito bom, em um ambiente poético como o nosso saturado de formulações depressivas e negativas, ranzinzas até, de imagens que só plasmam as desgraças do tempo, no qual parece que se está proibido de ser feliz. Mas é a alegria, e não a tristeza, que é realmente a “prova dos noventa”…

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5 poemas de poemail (patuá, 2019)
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o corvo de joão cabral

nunca
nem morre e(ver)
pois sendo um
&
de cuja espécie
não existe algum
vive
certo sim certo não

aqui ali
na contramão

.

o cã haroldo de campos

voragens de línguas
camíticossemíticas

ó descendente de cã
& noé

bento
benze

balbo-o  sim-m amé-ém cio
corpos & químicas      em ti

a   poesia    pós-utópica
te envia sauda   >   des
>   ções


.

no forró

bebo
danço
voo

tudo tão feliz

nem
ouso
dizer

mônadas
leibniz

.

pedra do ingá

na
pe

dra
do

in

vi

o
mar

co
de

um
ri

o
gra

fi
te

que
o

tem
po

pi
chou

.

não há

não há querubim
nem curumim

não há exu
nem jurema

não há shiva
nem catimbó

não há buda
nem alá

não há padre
pastor pai de santo

rabino
ou aiotolá

não há xamã
nem oxalá

não há osho rajneesh
nem hare krishna

não há santo daime
macumba ou candomblé

não há xamanismo
ou xintoísmo

pajelança
catimbó

não há seicho-no-iê
nem umbanda

não há maçonaria
taoísmo ou hinduísmo

não há marmonismo
ou neopaganismo

política
ou arte

hipnotismo
ou psicanálise

não há agnosticismo
nem ateísmo

não há sertralina
nem fluoxetina

nitalopram
ou escitalopram

não há trazodona
nem netazodona

mirtazinpina
ou venlafaxina

tranilcipromina
nem duloxetina

não há bromazepam
ou alprazolam

clonazepam
ou diazepam

lorazepam
nem cloxazolam

muito menos melissa
camomila erva-doce

erva-de-são-joão
passiflora ou valeriana

florais de bach
nem cozinha ayurveda

não há massagem
nem ioga

musicoterapia aromaterapia
ou tai-chi

veganismo
ou macrobiótica

soja gergelim
nozes castanhas aipim

não há frango peixe peru
nem queijo iogurte tofu

caminhada academia natação
pilates  praia meditação

eletrochoque
nem acupuntura

nem deus
nem dionísio

nem diabo
nem  o cão

não há lítio
nem morfina

não

tudo
é

luto
tudo

é
litígio

tudo
é

perda
tudo

é
dor de existir

megacansaço de ser
completa e absolutamente

álvaro de campos
em joão pessoa demente

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Amador Ribeiro Neto nasceu em Caconde-SP, 1953, e está radicado em João Pessoa-PB. Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e doutor em Semiótica pela PUC/SP. Autor de Lirismo com siso – notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica; 2015), Ahô-ô-ô-oxe (poesia; 2015), Barrocidade (2003).

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Lançamento: 16/Abril
Onde:
Patuscada – Livraria, bar & café
Informações:
https://www.facebook.com/events/361567654448635/

Organizado por Editora Patuá




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