PHB, desleitor de João Cabral


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A estreia de Paulo Henriques Britto, com Liturgia da matéria (1982), já continha    um ingrediente básico de toda a  sua poesia: o jogo tenso entre acolhimento  e recusa do legado de João Cabral, por  meio de sutis operações que captam e reprocessam em desleitura alguns traços marcantes  do poeta pernambucano. Nesse sentido, a obra de Britto acabará, em parte,  sendo tecida contra a cabralina, sem que o contra implique hostilidade;  trata-se de  deslocamentos e desestabilizações de matriz altamente considerada no interior do dissídio. Bem diferente, por exemplo, da oposição  movida,  na década de 1970, por vários  nomes  da   geração marginal, para quem  João Cabral foi autor descartado, e igualmente  diverso do acolhimento acrítico por parte dos subCabrais que cerebrinamente  lhe copiavam os procedimentos mais explícitos. Nesse panorama, cindido entre os “espontâneos” e os “afilhados da vanguarda”, a voz inicial de Paulo Henriques já soava  com desassombrado talento e individualidade.

Se, como supomos, PHB lê e deslê João, importa assinalar certas afinidades entre ambos, para a seguir  percebermos a demarcação de diferenças. Na contramão do discurso atomizado na linhagem da poesia-minuto, ambos  são poetas da sintaxe, vale dizer, neles a poesia reside   antes no processo da   construção do que no fulgor ocasional de um verso. O primeiro e o sétimo  dos “Dez sonetos sentimentais”, de Britto,  desdobram-se  num solitário período gramatical. O texto  seccionado em segmentos numerados e vazado em quadras (cf. “Elogio do mal”) também é constante em Cabral, bem como a prática da métrica regular e das  formas fixas. Nos sonetos, Paulo Henriques tende a mostrar-se mais ortodoxo no campo  da métrica, fazendo incidir no decassílabo as usuais   cesuras em quarta ou sexta sílaba, ao passo que  João, no verso longo, abdica das marcações rítmicas do heroico e do sáfico e tece variações entre 9 e 11 sílabas, sem, todavia,  renunciar à rima, toante. Em Britto, por seu turno, a utilização da rima, nos livros  iniciais,  é esporádica, em prol dos versos brancos.

Mas, paralelas aos  aspectos da técnica versificatória (crucial para os dois poetas), avultam diferentes estratégias para urdir o esvaziamento do sujeito lírico. João Cabral se vale de recursos  explícitos, na sempre referida  busca da “objetividade”, ao  subtrair  de  cena a primeira pessoa do singular. A poesia de PHB, aparentemente,  investe no oposto, encharcando-se de subjetividade.

Examinada de perto, contudo, a questão está longe de ser tão simples assim, de um e outro lado. Certas obsessões cabralinas duplicam-se  nos  seres e situações que as representam; de certo modo, eles e elas  compõem um sistemático,    posto que oblíquo,  retrato do artista, chegando-se  portanto,  por meio dos tais  objetos de eleição, à elaboração de  uma  autobiografia    em terceira pessoa: “eles” são  “eu”. Em  Paulo Henriques, ao contrário, inexistem  vetores de estabilidade que constituam   imagem sólida de uma persona poética: “eu” não sou “eu”. Se Cabral mostra-se coeso e coerente por sob o véu dos   outros a que  delegou poder de   representação (o  sol,  a seca, a pedra), Britto elabora uma “autobiografia desautorizada”, divagações  de  um “eu” (e de um “tu” também, inconstante e amável leitor) em perpétuo descrédito. Incisivas doses de autoironia impedem a cristalização de crenças e apontam a fragilidade de projetos alicerçados  na falácia  da unidade do sujeito. Conforme dirá no segundo dos “Sete sonetos simétricos”, de Macau (2003),  tudo é irrisório, quando circunscrito ao  “cais úmido e ínfimo do eu” (p.42).

Em Liturgia da matéria três poemas parecem responder quase  pontualmente  a incitações cabralinas. No ano de 1947, João escrevera, na Psicologia da composição:  “Esta folha branca/ me proscreve o sonho”(p. 69);  Paulo Henriques replica, na “Logística da composição”: “Só o sonho é inevitável” (p.39). Na mesma direção, “Persistência do sonho” evoca “névoa densa e teimosa/ que não há sol que a dissolva” (p.56), enquanto Cabral, “Num monumento à aspirina” (1966), elogiava o medicamento por constituir-se no “mais prático dos sóis” e assim dissipar os borrões do entorno, propiciando um clima “cartesiano” (p.335). Os complexos raciocínios do poeta pernambucano desenvolvidos em “Rios sem discurso” e “Os rios de um dia” (1966) encontram revide  em “Dos rios”, de Britto: “os rios foram feitos pra fugir,/ fluir, não para analisar” (p.64).

Um gesto interlocutório sem subterfúgios ocorre em “Indagações” (de Mínima lírica, 1989), cuja parte inicial intitula-se “Para João Cabral”. Em 1985, o poeta pernambucano publicara em Agrestes o texto-homenagem “Dúvidas apócrifas de Marianne Moore”, com o qual o poema de Britto estabelece sofisticado diálogo de formas. Senão, constatemos: nos títulos dos  dois textos comparece o nome de outro poeta; ambos contêm quatro estrofes; as terceiras e quartas encerram-se igualmente em pontos de interrogação; o substantivo “coisa”, no singular ou no plural, surge no verso 1 das duas terceiras estâncias, e o advérbio “não” abre as respectivas estrofes 2. Por fim (ou no começo), os dois poemas partem de versos bastante próximos, uma espécie de mote do que na sequência se lerá. Em Paulo Henriques Britto: “Não escrever sobre si” (p.88). Em João Cabral: “Sempre evitei falar de mim” (p.522).

Em “Dois amores rápidos” – “Dar tanto, tanto/ para dar no que deu.//Pensando bem,/ o errado fui eu.//Mas já que terminou,/ adeus” (p.83) – , assoma o veio lírico e sintético, de fatura e humor leminskianos, inexistente  em Cabral, cuja impregnação, porém, é nítida  nos quatro belos sonetos em decassílabos rimados de “Mínima poética”. O primeiro  registra: “Palavra como lâmina só gume/ que pelo que recorta é recortada,/…/a fala – esquiva, oblíqua, angulosa – / do que resiste à retidão da prosa” (p. 90). Para além da clara evocação  de Uma faca só lâmina (1956), destaca-se imagem aparentada à de “Menino de engenho” (1980), de JCMN:  “A cana cortada é uma foice./ Cortada num ângulo agudo/ ganha o gume afiado da foice/ que a corta em foice, um dar-se mútuo” (p.391). No soneto 2 há sentidos contrastivos: Cabral, diversas vezes, elogiou o caráter duro e incorruptível da pedra, sua frieza e densidade, enquanto Britto parece replicar: “A pedra só é bela, embora dura/ se meu desejo em torno dela tece/ uma carne  de sentido, e acredita/ que desse modo abranda e amolece” (p.91). O terceiro soneto, endosso da  potência do verbo, mas repúdio  à sua fetichização, ataca a intransitividade da metalinguagem, por meio de  léxico aparentado ao cabralino “A palo seco”, então relido, em alguns tópicos,  num viés de recusa. Paulo Henriques invectiva a “forma subversa, insignificante, / [que] se fecha em não – canto sem quem o cante” (p.p.92), ao passo que Cabral louvara  “o cante sem mais  nada”, o “cante que  não canta” (p.226). Por fim, no soneto 4, Britto associa escrever a “pintar, mas não como aquele que pinta/ de branco o muro que já foi caiado” (p.93); João, em “Paisagem pelo telefone”, destacara  o branco de “muros caiados” (p.202), de algum modo tornados ainda  mais alvos  pela luz  do sol que neles incidia.

O livro seguinte, Trovar claro (1997), comporta peças com a marca da  rima toante, obsessiva em Cabral: assim “O prestidigitador”, o primeiro dos “Dois noturnos”. O ideal de um mundo nítido e ordenado, tão patente  em João desde “O engenheiro” – “O engenheiro sonha coisas claras:/ superfícies, tênis, um copo de água.// O engenheiro pensa  o mundo justo/ mundo que nenhum véu encobre” (p.46) é  solapado pelo “Idílio” henriquiano, que, após simular a adesão aos valores da ordem e da transparência – “Desejo de formas  claras e puras/ de nitidezes simples, minerais,/ certezas retilíneas  como agulhas” – acaba  associando-os ao abafamento  da pulsação e da nervura  da existência: “Nada de nebuloso, frouxo ou úmido/…/sem olhos malcheirosos e carnais./ O sonho quer estrangular o mundo” (p.77) – o sonho da  razão imperativa, entenda-se.  PHB acolhe e acalenta o espaço da imprecisão, ainda que seja rigoroso no gesto de formulá-lo. Como dirá em “História natural” (título, aliás, homônimo a peça cabralina), o sujeito almeja “a forma exata da sombra difusa” (p.83).

As obras subsequentes darão continuidade ao diálogo crítico entre  incorporação e recusa do legado de Cabral. A Psicologia da composição, conforme vimos, antes já transformada em “logística”, é reapropriada como “Fisiologia da composição”, em  Macau (2003). Suas partes encontram-se separadas e sequenciadas por algarismos romanos, recurso similar ao da Psicologia de João. O dissenso, porém, já irrompe na declaração  anticabralina que arremata o segmento I: “Por fim o acaso./ Sem o qual, nada” (p.13).  O poeta recifense sempre  tentou minimizar a importância do acaso em sua produção. No desfecho da Fábula de Anfion (1947), o protagonista prefere silenciar a render-se ao poder sem controle da criação. Alguns traços  do cabralino “Tecendo a manhã” (1966) reaparecem, difusos, na parte V da “Fisiologia”: nos dois se evoca a  construção de um objeto, o balão-poema, e o esforço para fazê-lo decolar. “Estrutura”, “coisa sólida”, “artificial”, signos recorrentes  em Cabral, surgem para serem sutilmente  ironizados no desígnio final do texto-balão de Britto, que  demanda “Menos arquitetura/ que balística. É claro  que é difícil” (p.17). Em “Bagatela para a mão esquerda”, de Paulo Henriques, e “O sim contra o sim”(1960), de João Cabral, porém, ambos os poetas se irmanam no endosso ao poder criador que ultrapassa a maestria automatizada: “A esquerda (se não se é canhoto)/ é mão sem habilidade;/ reaprende a cada linha,/ a cada   instante, a recomeçar-se” (p.274, JCMN); “À mão esquerda é vedado/ o recurso falso e fácil/ de dispensar  partitura, / a fraqueza (dita força)/ do hábito). (p.19, PHB)

No livro Tarde (2007), o já citado “Num monumento à aspirina”  é reprocessado em “Para um monumento ao antidepressivo”. Enquanto o texto cabralino celebra o efeito do medicamento, o de PHB atenta para o fato de que o alívio momentâneo somente mascara a revelação “dura, doída” da “humana condição” (p.63).

Finalmente, Formas do nada (2012) releva, em “Fábula”, o fértil poder do improviso e do acaso (tão duramente repelido na “Fábula de Anfion” cabralina), em confronto com o impasse estéril  e autofágico da mentação excessiva: “Um pensamento pensado/ até a total exaustão/ termina por germinar/ no mesmo exato lugar/ sua exata negação.// Enquanto isso uma ideia/ trauteada numa flauta/ faz uma cidade erguer-se –/  é claro, sem alicerces,/ mas ninguém dá pela falta” (p.42).

A João Cabral incomodava o soar aleatório  da flauta (“Uma flauta: como/ dominá-la, cavalo/ solto que é louco?”, p.68); em Paulo Henriques Britto não há como descer desse cavalo, ainda que não saiba direito para onde aquilo tudo – o poema, a vida – conduz. Enquanto um poeta sinaliza  a poética do “não”, da contenção e do silêncio, o outro, em Trovar claro,  aconselha, desabusado: “Escreve, escreve até estourar. E tome valsa” (p.85).

 

 

Referências bibliográficas

As edições de que nos valemos vão a seguir indicadas. Para evitar constantes remissões a notas no corpo do ensaio, os versos virão acompanhadas do número da página de onde foram transcritos.

BRITTO, Paulo Henriques. Mínima lírica. São Paulo: Duas Cidades, 1989. Inclui Liturgia da matéria e Mínima lírica.

——. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

——. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

——. Tarde. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

——. Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

MELO Neto, João Cabral de. 2. ed. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

 

 

 

 

 

 

 

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Antonio Carlos Secchin nasceu no Rio de Janeiro. É Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982). Professor de Literatura Brasileira das Universidades de Bordeaux, (1975-1979), Roma (1985), Rennes (1991), Mérida (1999), Nápoles (2007), Paris Sorbonne (2009) e da Faculdade de Letras da UFRJ. Membro de 42 editorias ou conselhos, no Brasil e no exterior, sobretudo de periódicos de investigação literária. Total de 15 prêmios nacionais, destacando-se: 1.o lugar, categoria “ensaio”, do Instituto Nacional do Livro (1983); Prêmio Sílvio Romero, da Academia Brasileira de Letras, 1985, ambos para João Cabral: a Poesia do Menos; Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Nacional (2002); Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2003); Prêmio Nacional do PEN Clube do Brasil (2003), atribuídos a Todos os Ventos como melhor livro de poesia. Poeta com vários livros publicados, destacando-se Todos os ventos (poesia reunida, 2002), que obteve os prêmios  da Fundação Biblioteca Nacional,  da Academia Brasileira de Letras e do PEN Clube para melhor livro do gênero  publicado no país em 2002. É membro da Academia Brasileira de Letras. E-mail: acsecchin@uol.com.br

 




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