Passagem para a Vida


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Rubens Figueiredo é um tradutor tarimbado. Professor de tradução. Só para Companhia das Letras, traduziu mais de 40 livros. Também é escritor premiado – já ganhou dois Jabutis. A palavra aventura é a mais adequada para descrever o novo romance de Figueiredo. Uma aventura pra dentro, quase clichê, uma aventura interior. Pedro é um moço de quase trinta anos que toda sexta-feira pega o mesmo ônibus para visitar a namorada. Ele é nosso anti-herói, nosso herói devolvido. E, no itinerário do ônibus, Pedro viaja nas minúcias dos corpos dos passageiros, em seus defeitos físicos e em seus hábitos. São pensamentos voláteis que podem voltar a qualquer momento como um bumerangue perdido.

A ideia de um romance que se passa num ônibus não é original. Mas é justamente essa facilidade que Rubens Figueiredo procura. E atinge. Não somente com a linguagem simples, coloquial até, mas com a identificação do cotidiano de pessoas humildes, trabalhadores braçais que moram nas periferias das metrópoles. O romance não faz referência a nenhuma cidade. Mas fica claro que a cidade em questão é (a do autor) o Rio de Janeiro. Isso fica óbvio quando o narrador descreve os conflitos civis e a geografia acidentada (muitos morros) do local. Há uma tensão que começa no ponto de embargue e segue por todo o trajeto. A tensão de um povo em pânico, de bairros em chamas, com ônibus incendiados, barricadas e muitas fogueiras nas periferias.

Pedro (vale lembrar que Rubens Figueiredo publicou em 2006, o livro Contos de Pedro, em que o personagem central de cada conto se chama Pedro) está indo para o Tirol. O Bairro mantém um conflito armado com a vizinhança da Várzea. No percurso, ler um livro que relata uma visita do cientista Charles Darwin à cidade em questão. Pedro vai traçando um paralelo entre a cidade no tempo em que o cientista inglês visitou, há uns 200 anos, e a cidade como está agora. O paralelo parece se estender aos humanos, aos pobres que tiveram de se adaptar e resistir a tudo para permanecer sobrevivendo, numa espécie de teoria da seleção natural de Darwin.

Impressiona como o autor retrata com precisão o cotidiano dos mais pobres. Inclusive com uma crítica velada aos planos assistências do governo. Exemplo disso é quando o pai e a tia da namorada de Pedro, por conta de um cartão alimentação que não funciona, são obrigados a repor nas prateleiras de um supermercado uma a uma as mercadorias que não conseguiram adquirir. O retrato do drama dos brasileiros pobres vem acompanhado do retrato do pobre na sua maneira de ser e de viver. Um pobre retratado sem caricaturas, sem dramas psicológicos.

No livro de Darwin aparece algumas vezes a luta entre a vespa e a aranha. Predador e presa. Assim como, também dentro do ônibus, Pedro lembra de várias passagens, contadas por sua namorada, de exploração entre proprietários e proletariados. Com analogias do gênero, o autor faz radiografia da população mais carente do país. A sucessão de pensamentos de Pedro dentro do ônibus é muito rápida: num momento está lembrando de um conflito entre vendedores ambulantes e a polícia, no qual ele saiu ferido e com uma pequena sequela; num outro está passando toda a trama de um jogo de computador. Algumas lembranças, e são justamente as lembranças que formam o romance, são demasiadamente longas. Em outras passagens, o autor se detém em detalhes desnecessários. As lembranças muito longas e a ênfase nas minúcias, às vezes, causam um pouco de enfado ao leitor. Com exceção desse preciosismo, o livro traça retrato irretocável da periferia carioca.

 

 

 

PASSAGEIRO DO FIM DO DIA / RUBENS FIGUEIREDO / COMPANHIA DAS LETRAS / 200 PÁGS.

 

 

 

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Cláudio Portella é escritor, poeta, crítico literário e jornalista cultural. Colabora nas mais importantes publicações do Brasil e do exterior. E-mail: clautella@ig.com.br




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