Parada do Trem se despede


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O tipo de humor que predomina há anos na Campanha de Popularização do Teatro e da Dança de Belo Horizonte é uma mola propulsora para a alienação e disso a sociedade não está precisando.  Esse humor sem graça – e, muitas vezes, preconceituoso – presta um desserviço à cultura, pois funciona como um distrator anestesiante e até como um impulsionador de ideologias machistas, homofóbicas e racistas. Nesse contexto, iniciativas como a do diretor, dramaturgo e iluminador Geraldo Octaviano se tornam ainda mais exemplares e cruciais para vislumbrarmos uma mudança de direção no que tange à arte que é massivamente consumida e apoiada por grandes eventos, promovidos com o apoio de entidades públicas.

A peça Parada do Trem – contemplada com o Prêmio FUNARTE de Teatro Myriam Muniz e produzida pelo Teatro Olho Nu – tem texto, direção e iluminação de Octaviano e está em cartaz na Funarte MG (Antigo Galpão da Estrada de Ferro Central do Brasil), de 18 a 27 de julho de 2014. O elenco é composto por Cláudio Márcio, Júnia Pereira, Lucas Pradino e Priscila Maria. No dia 20, estivemos lá no pequeno Galpão 4 e pudemos experimentar um momento de fruição, reflexão e humor cortazariano – esse humor que apela concomitantemente à descontração e à percepção crítica, que engaja o espectador numa consciência coletiva de questões que necessitam de sua intervenção não como ser individual, mas como membro de uma sociedade.

A causa que perpassa o espetáculo é a do descaso das instâncias governamentais com a malha ferroviária brasileira para o transporte de pessoas e deste ponto é um passo para a reflexão acerca dos caminhos que as políticas de transporte têm tomado em nosso país. O estímulo à compra de carros, por exemplo, é revelador de um método que estimula o cidadão a se responsabilizar pela sua mobilidade, enquanto o Estado se isenta da obrigação de investir em transporte público suficiente e de qualidade. Parada do Trem toca explicitamente nessas questões partindo do caso particular da Estação Ferroviária da Gameleira, que completará cem anos em 2017 e está prestes a desabar. Metonimicamente, esse caso particular é um pequeno caco que compõe o mosaico da complexa questão referente aos rumos que têm tomado as políticas públicas de transporte no Brasil.

Para espessar as interpretações dos quatro atores, a peça mergulha no universo de dois nomes fundamentais da poesia brasileira e de um escritor único no contexto hispano-americano. Os textos de Tu não te moves de ti, da poeta Hilda Hilst; do Poema Sujo, de Ferreira Gullar; e o cômico e crítico relato do progresso dos transportes às avessas “El Tesoro de la Juventud” – presente no livro-almanaque Último Round –, de Julio Cortázar, enriquecem o desenvolvimento do espetáculo. A peça incorpora ainda o trecho do Poema Sujo que se tornou a letra d’O Trenzinho Caipira, um dos movimentos da Bachiana Brasileira nº 2 de Heitor Villa-Lobos.

Um teatro que se faz a partir e através da realidade e do resgate de uma memória que poderia ter como destino o esquecimento, porque, infelizmente, não interessa ao modelo gestor que se instalou nas instituições governamentais. A própria história do teatro vive uma decadência generalizada endossada pelos poderes públicos. Fazendo um contra-caminho, Geraldo Octaviano – que tem em seu currículo as peças Juca Mulato, Miguilim e Cilada – faz parte da história do teatro brasileiro, mesmo sendo um nome (ainda) pouco falado. Ele coloca em diálogo não apenas a linguagem herdada por um Jerzy Grotowski ou um Augusto Boal, mais que isso, o teatro de Octaviano revela uma linguagem de pesquisa cênica. O que é teatro no terceiro milênio, se, afinal, a sociedade hoje é uma sociologia de espetáculos? A poética de Geraldo Octaviano é uma linguagem em processo de identidade que se alimenta das artes experimentais. Parada do Trem confirma a sua tendência a um teatro-verdade ao colocar a história como sua poesia de base. Resta-nos desejar – e, enquanto cidadãos, exigir – que iniciativas como essa se tornem mais e mais recorrentes.

 

Belo Horizonte/MG, 22 de julho de 2014

Bianka de Andrade Silva e Wilmar Silva de Andrade

 

[ANDRADE, Wilmar Silva de; SILVA, Bianka de Andrade. Parada do Trem se despede. Hoje em Dia, Belo Horizonte, 25 jul. 2014. Almanaque Hoje, p. 3.]

 




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