Os da minha rua


…………………………………Ondjaki by Jordi Burch

 

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Encantadoras, as páginas de Os da minha rua, de Ondjaki; erguem-se como mais um belo título de uma literatura que, já afirmada entre os críticos das academias, deverá, cada vez mais, ganhar leitores num lastro maior: a literatura angolana.

Ondjaki, ainda que muito jovem, com algumas incursões pela poesia, mostra-se um prosador de grande sensibilidade, capaz de envolver o leitor ao mesmo tempo em que revela traços marcantes de seu espaço social, sem esquecer o diálogo com a já rica tradição literária de seu país.

De sua obra, podemos citar: Actu sanguíneu (2000) e Há prendisajens com o xão (2002), livros de poemas; temos também os romances Bom dia camaradas (2003) e Quantas madrugadas tem a noite (2004), os contos de E se amanhã o medo (2005) e a novela O assobiador (2002), entre outros títulos.

No Brasil, já contávamos com a edição do romance Bom dia camaradas, publicado através da Editora Agir, em 2006. Poderemos agora desfrutar da bem cuidada edição de Os da minha rua, livro de contos publicado em 2007, pela Língua Geral. Esta, uma interessante editora, criada no Rio de Janeiro, por um outro grande escritor, José Eduardo Agualusa, que, certamente, é mais um nome da literatura angolana afirmando-se como referência para leitores brasileiros. A jovem e promissora Língua Geral brinda-nos em seus primeiros passos, com a coleção ponta-de-lança, voltada para dar a conhecer novas vozes ou aquelas que, embora não tão novas, encontram-se ainda pouco divulgadas e pouco conhecidas. Vozes literárias vindas da África, da Ásia e da Europa, de todos os lugares que se expressam na nossa Língua Portuguesa. A Língua Geral nos chega seguindo as trilhas do acalantado sonho de uma comunidade de língua portuguesa espalhada pelos continentes. Oxalá saibamos sempre sonhar acordados.

Ondjaki, na coletânea de 22 contos curtos de Os da minha rua, ao adotar em todos eles a perspectiva infantil, sutilmente nos revela os problemas e as contradições de uma Angola pós-independência (a independência oficial data de 1975). A prosa coloquial, marcada por um lirismo que em si mesmo busca reconstituir o universo da infância, nos faz acompanhar tanto as vicissitudes de uma experiência individual quanto os conflitos que configuram a experiência coletiva. Se por um lado o narrador-menino nos fala livremente dos companheiros de brinquedo, da vida escolar com os professores cubanos, da vida familiar; por outro lado, também nos fala dos problemas de abastecimento ligados ao desempenho do regime econômico adotado, da destruição da guerra, da presença de uma indústria cultural, especialmente a brasileira, que marca indelevelmente a experiência. Podemos dizer que a adoção da perspectiva infantil desvela o mundo, afastando-se de qualquer ranço ideológico.

Queremos destacar aqui o conto “A televisão mais bonita do mundo”, escolha absolutamente arbitrária, que se prende a dois objetivos: ilustrar o que dissemos acima e, com essa ilustração, realizar o mais sincero convite à leitura deste e dos outros contos do livro. Neste conto, o narrador-menino e personagem principal em todos os contos, acompanha tio Chico à casa do amigo Lima, onde o menino fará uma grande descoberta: Lima acabara de receber uma televisão nova e com imagem colorida. Grande foi o seu espanto, só não tão grande quanto a sua inveja dos filhos do Lima, “que todos os dias iam ver cores naquela televisão a cores”. E encantados acompanhariam a novela brasileira O Bem amado ou a Pantera-cor-de-rosa, e, quem sabe ainda, embalados por Roberto Carlos. São constantes as referências à cultura para as massas nesses contos de Ondjaki; boa parte, oferta brasileira.

No percurso para a casa do Lima, o narrador informa que é preciso cuidado para não pisar nas poças de água nem na dibinga (fezes) dos cães, pois a rua era bem escura. O menino diz para tia Rosa tomar cuidado com as “minas” e, depois, nos informa de que “minas era o código para o cocó quando estava assim na rua pronto a ser pisado”. Esta linguagem da criança nos faz vislumbrar um contexto em que a guerra tornou-se já um fato do cotidiano, contaminando, inclusive, a linguagem mais corriqueira.

Outro dado interessante é o alto valor conferido à aquisição de um objeto novo em uma casa. Como diz o menino: “Nessa altura, em Luanda, não apareciam muitos brinquedos nem coisas assim novas. Então nós, as crianças, tínhamos sempre o radar ligado para qualquer coisa nova”. Neste trecho, vemos de modo claro, a presença de um tempo histórico feito de limitações no que tange à oferta de produtos industrializados, marcas da opção pela economia planejada e controlada pelo Estado.

Assim, a exemplo deste, os contos de Os da minha rua revelam traços da sociedade angolana, numa prosa apenas aparentemente inocente. Vale lembrar de um clássico nosso, atualmente pouco lido e, talvez, até esquecido, Minha vida de menina (1942), o diário de Helena Morley. Sendo, de fato, o diário de uma adolescente, permanece entre o documento e a ficção, nas palavras de Alexandre Eulálio. Minha vida de menina nos permite acompanhar através do diário de uma adolescente a vida de um Brasil rural e patriarcal de fins do século XIX. Numa prosa simples, que encontra o lírico no cotidiano, Helena vai nos mostrando as festas, as crendices, as instituições, as relações sociais, o lugar social da mulher, entre muitas outras coisas. Certamente vale a aproximação do Ondjaki de Os da minha rua (ou de Bom dia camaradas) com o diário de Helena, pois em ambos encontramos o desvelamento do mundo por olhos infantis. A opção pelo retrato da infância revela, em Ondjaki, o intenso diálogo do autor com a tradição literária de seu país.

Um belo ensaio de Tânia Macedo, intitulado “Monandengues, pioneiros e catorzinhas: crianças de Angola”, publicado no recente A Kinda e a misanga – encontros com a literatura angolana (2007), nos demonstra a enorme força que a infância possui enquanto tema, estando presente em grandes autores como Luandino Vieira, Pepetela, Boaventura Cardoso e Manuel Rui, entre outros, incluindo autores surgidos nos últimos anos.

A ensaísta mostra ser possível seguir as fases da recente história de Angola através das denominações atribuídas às crianças. Assim temos os monandengues, no período da luta de libertação, palavra de origem quimbundo, simbolizando uma forma de compor e afirmar os valores locais; após a independência temos os pioneiros, expressando um momento ainda de grande aposta na construção da nação; e, finalmente, as catorzinhas (prostitutas adolescentes) ou outras crianças vivendo nas ruas, marca dos tempos atuais em que todo sonho parece ter sido abortado.

Muito embora Os da minha rua seja um livro publicado no tempo das catorzinhas, acompanhamos em suas páginas o tempo dos pioneiros, muito presente na memória do autor. Quer entendamos como refúgio, quer entendamos como uma marca de resistência, valerá a pena o mergulho nessa leitura!

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Ondjaki. Os da minha rua. Col. ponta-de-lança.
Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007.

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A Revista Crioula é uma publicação científica dos alunos de pós-graduação da Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (ECLLP-DLCV-USP).

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Alexandre Gomes Neves
é mestrando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. Universidade de São Paulo (USP).

 




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