Os Cegos de E. Berliner


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Não há esforço interpretativo, se podemos apontá-lo, ele é inibido pela perigosa cadeia que liga indivíduos que frequentam as mesmas livrarias, salas de cinema e o mesmo círculo de amigos. E para não ofendê-los com suas opiniões, se possuem alguma, estes localizam sobre a superfície da obra aquilo que lhe é menos característico e individual, investindo todo seu esforço para exaltá-lo como condensador das supostas qualidades do que vêem; e se acompanharmos ponto por ponto o que ali está dito, certificando-nos de checá-lo minuciosamente, tristemente perceberemos que, em se tratando de pintura, solicitamos a cegos suas impressões.

Isto, maiormente, se dá na crítica contemporânea e faz com que alguns nomes alcancem renomada reputação: ou por repetirem os releases ou trechos de conversa escutados durante o vernissage ou da própria conversa com o artista; e mesmo por abordarem, ordinariamente, o fenômeno da pintura com simplificações do tipo “é um particular trabalho em que o olhar atua…” ou “a narrativa subjacente nos trabalhos impressiona”, tudo do que prescinde uma boa pintura e que lhe deveria ser usual, é ressaltado como se somente a sua presença fosse um indicativo da individualidade do pintor e de seu talento. Quando são apenas atributos dos quais não se pode abrir mão quando se é um iniciado no universo da pintura em geral.

Esta reflexão deriva da à exposição do pintor Eduardo Berliner, no CCBB/RJ, aconselhada por uma artista de sensibilidade e talento, que se esforça, não apenas em exercer a sua arte, confeccioná-la de melhor modo possível, mas, em questioná-la, averiguá-la. E refletir sobre o caminho em que ascende para não dar passos em falso ou cair em armadilhas comuns àqueles que trilham a mesma estrada e se contaminam com o excessivo individualismo vigente – um individualismo tão nocivo que está fazendo com que os criadores não se alinhem a tradição e intentem reinventá-la.

E alinhar-se à tradição não quer dizer venerá-la sem expor-lhe os erros, mas compreendê-la como uma plataforma em que suas experimentações dialoguem com aquilo que já realizado, acrescentando àquela velha sensibilidade as novas cores de horizontes diferenciados.

Para reforçar a linha do que digo, assalta-me a memória um livro pertencente a uma coleção que se debruça sobre poetas contemporâneos, em especial sobre o ensaio a respeito da obra de Armando Freitas Filho. E dentro das análises efetuadas sobre o poeta, há um depoimento que é levado em conta do poeta Sebastião Uchoa Leite, afirmando que a poesia de seu contemporâneo está calcada sobre o binômio: poesia e vida.

Nessa sentença há esforço interpretativo? Ou apenas uma afirmação banalíssima, destas com que nos deparamos em coletivos ou em bares? E não da boca de intelectuais, investidos de aura e de títulos, dos quais, se não novidades, ansiamos por peculiaridades que se esquivem daquilo que é matéria comum ao trabalho do artista?

Assim a obra de Eduardo Berliner fez com que minha memória recordasse do escritor Milan Kundera e de seus ensaios sobre Francis Bacon.

Em particular do livro O Encontro. E, afunilando-se ainda mais minha lembrança, utilizo-me do trecho transcrito:

“E é por isso que a palavra “horror”, que se aplica obstinadamente à sua pintura, o irrita. Tolstói dizia sobre Leonid Andreiev e seus romances noirs: “ele quer me assustar, mas não tenho medo”. Existem hoje muitas pinturas que querem nos assustar, mas nos entediam. O temor não é uma sensação estética e o horror que encontramos nos romances de Tolstói nunca está ali para nos assustar; a cena emocionante na qual operam sem anestesia André Bolkonski, mortalmente ferido, não é desprovida de beleza; como nunca é desprovida de beleza uma cena de Shakespeare; como jamais é desprovido de beleza um quadro de Bacon.”

E retomo, para a discussão, a afirmação de Tolstói sobre Andreiev para especular sobre o universo pictórico de Berliner.

Dito isto, esse passo representa mais do que vi e constatei daquilo que foi escrito sobre o pintor, porque representa a tentativa de uma reflexão teórica pretendida como séria, embora não em estrito senso, a ponto de exibi-la como uma verdade sobre o entrevisto durante a exposição. Ele quer me assustar, mas não tenho medo, foi exatamente como me senti quando me deparei com os quadros. E arrisco que há na pintura de Berliner – esta em que os objetos estão impostos como enigmas ao espectador – algo que me remeteu as experimentações de Francis Bacon.

Embora nos trabalhos menores – as aquarelas – certo convencionalismo esteja insinuado e destoe da ambientação criada pelas telas maiores. E, principalmente, das inquietações transmitidas por elas.

Contudo, se me faço um observador mais exigente, pelo risco de tê-lo colocado ao lado de Francis Bacon – em minha sensibilidade, questiono o “eu” travestido em alegórico, sem a coragem deformatória preexistente no seu coetâneo, misturado aos bombardeamentos televisivos de tragédias competidores diretas do universo simbólico violento do autor. E pergunto como pode ele,o artista, transcendê-lo sem o abandono o laivo da emoção estetizante em algum nível, retirados seus pés da vala comum da notícia jornalística ou de um surrealismo tardio – sobrevivente às ruínas pós-modernas, sem apoio algum senão da própria ilogicidade do real?

No entanto, Eduardo Berliner, o pintor, se opõe ao gosto pelo aleatório. Realmente há no que o artista realiza um gesto seqüencial, um planejamento que o desinstala imediatamente desse jogo. Apesar de aludir em suas falas sobre seu processo criativo – a desconstrução como meio para a composição da obra – isto não se transpõe como resultado para a tela.

Este aparte crítico, subtraído da longa conversa com Martins, especialista em Cultura Contemporânea, é uma contribuição para descoberta de vínculos que essa pintura possa vir a ter, além dos sinais que já traz em si mesma.

Eduardo Berliner é talentoso – ouço, enquanto (des) vario sobre a mulher que detém em suas mãos uma cobra coral e um lagarto sobre uma passadeira de roupas, enquanto é observada pelo menino deitado sob esta última. Resolvemos apelar para os circunstantes. Eles, mais espertos do que nós, tinham prontas as respostas para o que viam. E sobre esse quadro, afirmavam é uma alegoria sobre o desejo e sobre aquele outro do homem, com fantasia de monstro, despenando o que pareciam anjinhos, asseveravam é sobre a nossa queda. E daí por diante, emendavam considerações umas nas outras. E não eram desprovidas de interesse sobre o que viam, embora me parecessem acessos fáceis/frágeis demais. Minha esposa, que dividia conosco o prazer da exposição, aproxima-se e sublinha que talvez nós sejamos os cegos.

 

 

 

 

 

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Mariel Reis é ensaísta e escritor. Escreve no blog Cativeiro Amoroso e Doméstico (www.cativeiroamoroedomestico.blogspot.com ). É autor de Vida Cachorra (contos), Editora Usina de Letras e A Arte de Afinar o Silêncio (contos), Editora Ponteio. E-mail: marielreis@ig.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. JD Lucas, Muito bom o texto.
    22 março, 2013 as 7:08

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