Os acrobatas da linguagem


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Vivemos um bom momento quanto à circulação de revistas culturais no Brasil. O mundo virtual das redes sociais, e dos sites e blogs independentes, expressam bem a diversidade como marca maior deste novo contexto. Com a internet, multiplicaram-se as experiências e os diálogos entre editores, autores e leitores. Por outro lado, não devemos esquecer que as revistas culturais de variedades, em formato impresso, no país, estão morrendo pouco a pouco, a exemplo da Bravo, que recentemente deixou de circular de forma definitiva.

Entretanto, mesmo sendo um ato de resistência, algumas revistas culturais vêm surgindo de forma impressa e, ao mesmo tempo, virtual no Brasil, mostrando o valor e a importância deste suporte no que se refere à divulgação, à produção e à reflexão da cultura, em especial da literatura brasileira contemporânea. Exemplo é a Revista Acrobata, advinda da cidade de Teresina, Piauí, e editada por Aristides Oliveira, Demetrios Galvão, Meire Fernandes e Thiago E.

A Revista segue uma linha de publicações de literatura, audiovisual “e outros desequilíbrios” (no dizer dos próprios editores) que, de forma marcante, já no editorial do seu primeiro número (lançado em junho de 2013), explica o nome dado ao periódico, bem como o seu objetivo maior “Acrobata: metáfora que mobiliza linguagens – ação que inventa mundos. Articular pessoas e fazeres, movimentos e afetos, ideias e geografias, desfolhar bandeiras e atravessar-cortar-perfurar-possibilitar-vazar as barreiras da insensatez”. Portanto, a Revista Acrobata se coloca como uma alternativa atual no que se refere à publicação de textos que exaltam, de maneira independente e articuladora, a reflexão sobre o campo artístico-cultural no país.

O número de estréia da revista Acrobata traz a marca da diversidade, porém privilegiam três tipologias de publicações: poemas, ensaios sobre literatura e ensaios sobre o audiovisual. Destaque para os poemas dos paulistanos Augusto de Campos e Ademir Assunção, que desfilam juntamente com os do maranhense Salgado Maranhão e a africana Conceição Lima (natural de São Tomé e Príncipe), além de produções de valores locais que vêm se destacando, como a potiguar Sinhá e o piauiense Rodrigo M Leite. Ainda no campo literário, podemos citar ainda o conto de Marcelino Freire, única ficção nas páginas do periódico.

Numa montagem bem equilibrada, de textos e imagens, a revista se direciona para uma poesia quase sempre inventiva, de herança surrealista, concretista ou beat, assim como um cinema de arte com feições sofisticadas, como nos enfoques sobre o cinema indígena, em texto de Charles Bicalho, e as reflexões sobre o cinema de Godard, por Nayhd Barros.  Sem contar a preocupação da Acrobata em compreender, através de panoramas ou relatos de memórias, o contexto cultural do país ou de Teresina, como nos casos dos esclarecedores textos “Revistas Literárias no Brasil”, do poeta e editor Edson Cruz, e “O Cenário da Poesia em Teresina”, de Wanderson Lima.

Entre os pontos altos da publicação, não há como deixar de destacar a ótima e longa entrevista realizada com o poeta e editor Sergio Cohn, no qual houve um aprofundamento da compreensão das ações deste dedicado articulador cultural – responsável por importantes projetos editoriais no Brasil, que, à frente da Azougue,  lançou recentemente, por exemplo, a caixa Poesia.br – um importante panorama da história da poesia brasileira.

Desta forma, como um bom acrobata, a Revista Literária piauiense estreia em grande estilo, com um desempenho raro de destreza cultural para um primeiro número, demarcando em suas páginas uma visível sofisticação, independência e labor visual. Os editores se utilizaram muito bem dos pêndulos e trapézios, dialogando com o Brasil e o mundo. O Acrobata nasceu impresso, mas já está disponível para os leitores em formato virtual  http://issuu.com/revistaacrobata/docs/acrobata_issuu_ok , revelando nestes dois suportes que, na terra de Torquato Neto e Mário Faustino, se faz, sim, o melhor da poesia inventiva nordestina, em sintonia com todo o universo da linguagem.

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Bruno Gaudêncio é escritor, jornalista e historiador. Co-editor da Revista Literária Blecaute: http://revistablecaute.com.br/

 

 

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Uma pequena amostra:

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Poemas Presentes na Revista Acrobata
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Antes do Poema

I

Quando o luar caiu

e tingiu de magia os verdes da ilha

cheguei, mas tu já não eras.

Cheguei quando as sombras revelavam

os murmúrios do teu corpo

E não eras.

Cheguei para despojar de limites

o teu nome

Não eras.

As nuvens estão densas de ti

sustentam a tua ausência

recusam o ocaso do teu corpo

mas não és.

 

Pedra a pedra encho a noite

do teu rosto sem medida

para te construir convoco os dias

pedra a pedra

no tempo que te consome.

 

As pedras crescem como vagas

no silêncio do teu corpo

Jorram e rolam

como flores violentas

no silêncio do teu corpo

E sangram. Como pássaros exaustos.

A noite e o vento se entrelaçam

no vazio que te espera.

 

II

 

Súbito chegaste

quando falsos deuses subornavam

o tempo.

Chegaste para despedir

a insónia e o frio

Chegaste sem aviso

quando a estrada se abria

como um rio

Chegaste para resgatar

sem demora o princípio

 

Grave o silêncio rodeia o teu corpo

hostil o silêncio agarra teu corpo

Mas já tomaste horas e caminhos

já venceste matos e abismos

já a espessura do obô

resplandece em tua testa.

 

E não bastam pombas em demência

no teu rosto

Não bastam consciências soluçantes

em teu rasto

não basta o delírio das lágrimas libertas.

 

Eu cantarei em pranto

teu regresso sem idade

teu retorno do exílio na saudade

cantarei sobre a terra

teu destino de rebelde

 

Para te saudar no mar e no palmar

na manhã do canto sem represas

cantarei a praia lisa e o pomar.

 

Direi teu nome e tu serás.

 

Conceição Lima

 

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A VERTIGEM DO CAOS

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um estranho entre estranhos, nômade

entre escombros, procuro sem

procurar, um não-lugar, o ventre

de látex de uma replicante quase

humana, as ruínas enfim apaziguadas

da bombonera, as águas que refluem

pra dentro da baía de todos

os infernos, ali, onde a eternidade

são os dentes de estanho do último sol

mastigando oceanos como fatias

de pizza, lançadas ao ocaso

do fundo de um naufrágio, ante

a dança misteriosa de um feiticeiro cherokee

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Ademir Assunção
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ESPINHAÇO DE BJORK

 

Meus olhos reconhecem a paisagem guardada em tua voz.

A colina acidentada do tempo que tão logo a escalamos dá em outra com sua imensidão de reflexos hospedados no desejo.

A folhagem líquida de meus olhos reconhece os segredos que fomos esquecendo enquanto me perdias por trás de cada beijo.

Escrevo que vim apenas te buscar,

e tudo à nossa volta transcreve as vertigens mais íntimas.

Os meus olhos abrigam a paisagem refeita,

o lápis numinoso de tua voz onde o tempo recobra suas árvores.

Silhueta ancorada no abismo com seu plano decifrado pelo acaso.

Escrevo o que soletram as tuas costelas,

eco entrecortado de silêncios onde a noite transborda.

Quantas luzes deformam os vultos que foram por ti compostos para meu regresso?

Será verdade que já estive aqui alguma vez?

Quantos ficamos antes da multiplicação de tua voz?

 

Ninguém saberia dizer o que acontece agora se começas a cantar.

 

Floriano Martins
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enquanto submerge fatigada

 

tornozelo pulsa quente

retratos são paredes descascadas

aguardam a volta ao corpo-lar

 

as partes úmidas da memória

descolam fatias, trechos

inteiros adormecem ou acomodam-se

em outra história, tatuagem recontada

para novas feridas

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Henrique Dídimo
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KRYOS


eis o panorama da finitude humana num dia do século 35: todo
necrotério está tutelado pelo setor privado
conglomerados financiam obras de faraônicos apart-hotéis congelados
nos distritos mortuários
hidras e cadáveres nadam em jacuzzis de hidrogênio líquido | todo o
nervo do tempo banhado lá estanca a necrose
mas só para quem pode pagar | perderá a alma ou a aura [o próprio
Homem] na era de sua reprodutibilidade técnica?
necronautas encarcerados à vigília de seus últimos hospedeiros
“falecidos” tampouco reencarnam [são estátuas Ka] cativos ao sacerdócio pseudo-egípcio dos neo-mumificadores da ALCOR na
California ou da Crionics S.A. |
plantadas lado a lado as cabeças de Timothy Francis Leary e Jack
Kevorkian tentam abrir os olhos
crânios vestindo rostos de familiares visitam a eternidade enquanto
todo o oceano interditado [“o outro lado”] | são pomares de órgãos | o que fazer da arte da hereditariedade seus
economistas da vida e da morte
[seus juristas / as famílias] quando os ricos, legam aos seus próprios
clones, suas fortunas e suas dívidas?

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Alexandre Guarnieri
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(Para os interessados na versão impressa da revista Acrobata entrar em contato pela página da revista https://www.facebook.com/revistacrobata?fref=ts ou pelo email: demetrios.galvao@yahoo.com.br)

 

 

 

 




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