O Sol nas Feridas


A relação entre o tempo e espaço em “O Sol nas Feridas” de Ronaldo Cagiano

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Apenas o poeta sabe a dor do parto da palavra. Há, na verdade, dores que só o poeta as conhece. Mas há dores maiores, dores de carne, o fulgor do que a sociedade vive e padece.

Isso remete-nos de imediato à uma dor física, eis porque Ronaldo Cagiano coloca-nos estendidos ao sol para assarmos e fermentarmos as dores que as grandes metrópoles enfrentam que sobre caiem directamente ao cidadão.

“O Sol nas Feridas” em 63 poemas reunidos, entre a lírica amorosa e a crítica social, é a solução vista por muitos olhos, mas que só um poeta embondeiro, maduro e vivido sabe justificar a dor do corpo com a sagacidade que o assunto exige.

Lembrar Maria Teresa Horta nestas alturas pode-nos ser uma saída mais eficaz para justificar o sentido desta análise. De acordo com a escritora portuguesa, a escrita e a vida caminham juntas “tem que viver para se ser escritor” – diz ela.

Em Moçambique, de onde me chegou o livro enviado atrevidamente pelo autor, sem temer os oceanos que o mesmo atravessaria desde o Brasil, há um outro embondeiro, Suleiman Cassamo, autor do clássico e símbolo nacional “O Regresso do Morto”, tornar-se-ia cúmplice da poesia deste “velho poeta”, pois disse uma vez que “é preciso ter vivido para escrever”.

É o escritor, o poeta, e os seus devaneios; é o poeta, o cidadão e as razões da sua poesia missionária, não alheia aos mistérios do corpo. Ronaldo Cagiano sabe ser o que tem que ser na indagação e no desassossego a que a sina poética nos remete. Com a devida serenidade é lírico, cuida de si e dos seus sentimentos, mas com a incompreensão dos tempos é externo, exógeno, sente no lugar dos outros refém da engajada posição do poeta zelador e consciente de que “o ofício da verdade é proibido pôr algemas nas palavras”. Liberta-se e fala de sangue, abismos, precipícios, a gênese e o fim.

Reinaldo Cagiano, este meu desconhecido poeta “conta” na sua poesia convulsiva em “O Sol nas Feridas” que “entre a fuga/e os deslizes/ o poema vinga”, mas mais do que esse olhar atento em “Gênese”, o encontramos a consciência e a saudade de algum tempo ao olhar já nós, atentamente o poema “Escamas”:

(…) A vida, em suas estranhas latitudes,

território lisérgico onde dormiam meus fantasmas

já não é mais o cemitério onde cultivo desilusões

hoje, planeta do qual não me escondo,

catapulta-me sobre os abismos.

Ao a poesia de Cagiano, com certeza não se sairá sem se indagar: como esconder as ferias do sol, quando o meio mundo desconhece, o seu próprio paradeiro? E a poesia é chamada a tão estremo papel de contar o que todos sabem.  A essa dura tarefa cabe ao poeta que poderá não ser compreendido.

Sobre esse aspecto, Reynaldo Damazio já chama atenção na sua nota de leitura no livro ao dizer que “ o sentimento de impermanência e de precariedade ronda a poesia e exige do poeta uma tomada de posição, no sentido de enfrentamento das verdades provisórias.” É essa a posição que Ronaldo Cagiano escolheu tomar ao ver o que viu:

Enquanto o cortejo seguia

alheio aos gestos automáticos

das mãos que cerravam as portas

Outros continuavam a vida

imunes à que passava,

despojada de sua última chamada.

A cidade não seria diferente

porque amanhã

outras notícias viriam

É assim que Ronaldo Cagiano faz a relação dos males do seu tempo desde a nascença em Cataguases, Minas Gerais, passando por Brasília, onde formou-se em direito chegado à São Paulo onde reside e tem o seu trabalho. Mas não parou por aí escalou Buenos Aires, Teerã, Berlim, Pirapetinga, Lisboa, Paris, Adrogue, Alentejo, Morrinhos, Persépolis, Itabira, essas “geografias do acaso/ no arremate dos acasos/ onde pululam pássaros aziagos/ e homens ensimesmados/ habitam cidades sem memória,/ cemitério dos vivos.

É assim que o poeta faz a sua poesia, não omitindo o tempo e o espaço, numa forma perplexa de lidar com o texto que quer também contar histórias dos nossos dias. Uma poesia, que se pode dizer de combate aos males de hoje, inclusive a da falta de amor, saudade e das irmandades manobradas pelos contextos.

Certamente seja por isso que até os males do passado são elementos indispensáveis dessa matéria concentrada nessa obra que pode-se chamar de antologia, onde o autor termina com uma pergunta, no mínimo socorrista “Onde está Deus/ cujo poder não exercita?/ cuja vontade não realiza?/ cujas bênçãos nunca vêm?” pergunta o poeta, sabendo da ineficiência da sua função perguntativa. Pergunta para não dizer que não perguntou e que todos testemunhamos. Quem o responde?

 

 

 

 

 

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Eduardo Quive reside na Matola, província de Maputo em Moçambique. É jornalista cultural, poeta, escritor e fotógrafo. É editor da Literatas – Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona, do Movimento Literário Kuphaluxa, agremiação de que é membro fundador. Também responde pelo pseudónimo de Xiguiana da Luz, com o qual publicou o seu primeiro livro de poesia intitulado Lágrimas da Vida Sorrisos da Morte (FUNDAC, 2012). Semanalmente faz crítica literária no semanário Sol e tem a sua prosa poética publicada às segundas-feiras no diário O País.  Corresponde, em Moçambique, para o jornal Cultura de Angola. É também dinamizador cultural, organizador de vários eventos literários. Blogues pessoais: http://quivismo.blgspot.com e http://noitesdalma.blogspot.com Email: eduardoquive@gmail.com




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