O poeta, Platão e a enganação


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Toda obra de ficção está ancorada num conceito, já decantado e discutido ad eternum, que é o de mímesis. Há livros clássicos sobre a questão, como o de Erich Auerbach (Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental) e o de Luiz Costa Lima (Mimesis e modernidade), incontornáveis se quisermos entender melhor o conceito através dos tempos.

Todo grande conceito como esse merece, vez ou outra, ser retomado em sua base fundadora e repensado a partir daí. Quem sabe este exercício poderá nos trazer alguma visão diferenciada no cipoal de interpretações que se fizeram necessárias com o correr do relógio histórico.

No caso da mímesis vamos retornar ao pai da matéria: Platão.

O conceito de mímesis que aparece nos Livros III e X de sua obra famosa, República, é considerado o conceito central da concepção platônica de poesia e talvez de sua “estética”. Segundo o estudioso da obra de Platão, Eric Havelock, o termo mímesis é “a mais instável das palavras do seu vocabulário filosófico”.

Vejamos então como se dá esta instabilidade no decorrer dos livros da República.
No livro III, 393c, Platão nos diz que “os poetas fazem a sua narrativa por meio da imitação” ou mímesis. Faz a distinção entre uma narração onde não haveria imitação – a narrativa simples – de uma narração, em prosa ou poesia, que seria toda imitação; e outra narrativa constituída por um misto das duas.

Nesse primeiro momento, então, Platão emprega a palavra mímesis para definir um método de composição, uma classificação de estilos. O termo começa a ficar ambíguo logo em seguida quando Platão desloca-o para descrever também a atuação por parte de um ator, ou orador.

Num terceiro momento o contexto da discussão desvia-se da questão artística, para o da educação. Mímesis, passa a ser aplicado ao trabalho do aprendiz que imita aquilo que busca aprender e dominar.

O foco da discussão está agora na formação dos ‘guardiães’ da cidade ideal e o treinamento adequado para transformá-los em homens com uma conduta moral ilibada. Seria necessário para isso, discernir os gêneros inadequados de mímesis para a sua formação.

Na cidade ideal, seria então admitida a imitação sem mistura do ‘homem de bem’; aquela que possa servir como modelo de comportamento e conduta.

No final de 393d, podemos perceber no texto o caminho que será desenvolvido no livro X; pois se no livro III, nem toda poesia mimética será banida, no livro X Platão diz exatamente o contrário: a “poesia na medida em que é mimética” deverá ser banida da cidade ideal.

Conforme Havelock, da forma como se desenrola a discussão no Livro X, evidencia-se que a mímesis deve ser considerada como equivalente a toda a poesia. E é isso que particularmente nos interessa nesse pequeno ensaio: a poesia. Além disso, Platão a utiliza em relação ao envolvimento do público na representação, manifestando assim sua preocupação com o domínio público da poesia e com o relacionamento entre poeta e ouvinte.

A poesia é definida como se encontrando a três graus afastada do verdadeiro ser, da forma ou idéia. Ou seja, há a idéia da coisa (sua forma primordial), a coisa em particular e a sua representação artística.

A noção de mímesis, no Livro X, adquire um sentido mais técnico, definindo a condição e o valor da poesia em relação à episteme e a verdade. Esta definição indica que todo discurso poético seria um tipo de ilusionismo. E isto se aplicaria ao conteúdo de todo o discurso poetizado.

A verdade nesse tipo de discurso seria expressa de maneira condicional, em oposição às certezas da episteme, derivada do mundo das Formas.

O poeta seria então um ilusionista, quase um falsário, um enganador. Platão é cruel com os poetas.

mímesis como imitação daquilo que já é imitação, aumentaria ainda mais a distância do suprassensível ao sensível. Aproximar-se-ia então da doxa (como ficará claro no diálogo Sofista de Platão), e tende, como a opinião, ao não-ser. Opinião todos temos e elas, do ponto de vista platônico, de nada valem, ou para ser justo com Platão, valem pouco. Pouco acrescentam à iluminação do mistério do ser em sua relação com a verdade. Não é necessário esforço para ser um enganador. Qualquer um, em tese, já o é.

mímesis, deste ponto de vista, tem uma característica muito parecida com a do sofista. Quando pensamos que a agarramos ela escorrega por entre os dedos. Havelock chama atenção ao seu caráter “protéico”, em outras palavras, o mesmo caráter polimorfo do Sofista de cem cabeças. Você segura em uma e há mais noventa e nove.

Se Platão jogou pesado com os poetas, o que dizer dos sofistas? Ele simplesmente os destruiu. Em seu diálogo Sofista ele faz um retrato basicamente pejorativo do sofista.

Na boca do Estrangeiro de Eléia ele coloca várias definições do sofista. Entre essas várias definições, que visam capturar o escorregadio sofista, as cinco primeiras são claramente pejorativas. Ele é visto como um caçador interesseiro de jovens ricos, aquele que recebe dinheiro a pretexto de ensinar. Na segunda definição é tido como um comerciante em “ciências”, aquele que vai de cidade em cidade negociando discursos e ensinos relativos à virtude. Na terceira e quarta definições, ele é identificado como o pequeno comerciante de primeira ou de segunda mão. Em relação às “ciências da alma”, revela-se um varejista, um produtor e vendedor destas ciências. Na quinta definição, o sofista é visto como o Erístico mercenário, o contestador que recebe dinheiro por disputas privadas; o atleta do discurso que cobra pelos seus feitos.

A sexta definição já é um pouco melhorzinha: a do refutador que purifica as almas das opiniões que seriam um obstáculo às ciências. O Estrangeiro de Eléia reluta em associar este aspecto ao sofista, para não lhe dar muita honra.

A definição do sofista como refutador leva-nos a uma sétima definição do sofista como um “mimetes”, um imitador, um fabricante de imagens. O sofista nos dá a impressão de ter a ciência das matérias que refuta. Como ele refuta todas as matérias, dá a impressão de ter uma ciência universal, que se aplica a todas as coisas. Como a mímesis tem uma dupla divisão: a que produz a “cópia” e a que produz o “simulacro”, o Estrangeiro fica em dúvida em qual incluir o sofista. Ao decidir, nos sugere a oitava definição.

Nela o sofista é visto como o “doxomimetes”, o que imita o modelo conhecido apenas pela opinião, pela aparência, portanto, sem ciência. Esta última definição do sofista, traz consigo uma ambiguidade onde seu lado pejorativo explícito carrega também um lado que pode ser visto positivamente. A habilidade em manipular as aparências – que na concepção platônica é um limite – poderá nos surpreender favoravelmente, pelo bom êxito neste procedimento.

Fica claro que, para Platão, nem o poeta muito menos o sofista podem servir como modelo de comportamento e conduta. Eles fazem mal à saúde do estado e à convivência social dos seres.

As ideias de Platão ficaram para trás, mas é lamentável observar que hoje em dia poetas parecem ter se tornado inúteis, em estado de dicionário. Não fazem mal a saúde de ninguém (a não ser a dos próprios), não derrubam estados e convivem passivamente com um sistema que está longe de ser o ideal. Os poetas já não são expulsos da “cidade ideal”. Não é mais necessário, pois eles se tornaram inofensivos.
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Bibliografia

PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da R. Pereira.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.
Livro X. Trad., ensaio e comentário crítico de Daniel Rossi Nunes Lopes. Campinas, SP: 2002.

Sofista. Tradução e notas de Jorge Paleikat e João Cruz Costa.
São Paulo: Nova Cultural, 1987.

HAVELOCK, E., Prefácio a Platão. Campina: Ed. Papirus, 1996.

 

 

 

 

 

 

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Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta, editor e revisor. Desgraduou-se em muitas coisas: Psicologia, Música e Letras. Foi fundador e editor do site de literatura Cronópios (até meados de 2009) e da revista literária Mnemozine. É professor no Curso de Criação Literária, da UnicSul/Terracota Editora, no módulo Poema. Lançou em 2007, Sortilégio (poesia), pelo selo Demônio Negro/Annablume e, como organizador, O que é poesia?, pela Confraria do Vento/Calibán. Lançou, também, uma adaptação do épico indiano, Mahâbhârata, pela Paulinas Editora. Em 2011, lançou Sambaqui, livro contemplado pela Bolsa de Criação da Petrobras Cultural. Em janeiro de 2012, colocou no ar seu novo projeto: o site MUSA RARA. Escrevia com frequência no blog: http://sambaquis.blogspot.com E-mail: sonartes@gmail.com




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