O patchwork de Luci Collin


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“Aqui fados, acontecimentos que apenas são. Nada precisa notificar temeridades nada foi sob encomenda. Não é epopeia Ninguém sairá do lugar Nada aqui tem incumbência de ser ancestral Nem urgência de ser eternidade […] Esta narrativa fecunda em incidentes menores é saga banal.”

Assim começa o novo romance da escritora paranaense Luci Collin, Nossa senhora d’aqui (Editora Arte e Letra), que com uma estrutura diversificada conta “incidentes menores” da vida de personagens que giram em torno de Frau Homera Kortmann, a “protagonista” da narrativa.

O protagonismo de Frau Kortmann está, a meu ver, no fato de ela costurar a história, ou melhor, de alinhavar fatos e personagens, ainda que ela mesma não apareça em primeiro plano.

Frau Kortmann é professora de corte e costura. Aliás, cortar e costurar, parece-me, é a metáfora que “esclareceria” a estrutura do livro. Não sem razão, uma das epígrafes escolhidas por Luci Collin é, justamente, uma frase de A. Robbe-Grillet que diz: “a metáfora não é nunca uma figura inocente”.

No romance de Luci, os cortes, às vezes, são bem abruptos e uma história se alinhava a outra história de modo muito sutil. Nossa senhora d’aqui seria então um grande patchwork, para prosseguir na metáfora do corte e costura, que tem “o todo refletido nos cacos”, como se lê no romance.

A propósito do gênero romance, David Lodge afirma que ele “é a forma narrativa que melhor se presta a representar a subjetividade”. Esse, no entanto, não é o caso do romance de Luci Collin, que prefere se manter na superfície dos acontecimentos e do comportamento humano: “Rezam os textos definitivos que tudo passa num pulso. Que tudo não passa de um lapso entre o fato que ali e aquele outro […] que todos tenham pelo menos a pálida chance de se divertir em meio ao sintético e fulgurante […]”.

Esse caráter “raso” do discurso imitaria, de forma satírica, a vida árida da contemporaneidade. Afinal, lê-se no romance, “os périplos hoje são a ida e a volta silenciosamente. Epopeia falhada – há de ter seu charme. Eu fui a esquina comprar um projeto de pão. A dona Margarida detesta o seu próprio nome”.  Portanto, prossegue o narrador: “Preste bem atenção pois: podemos ter problemas sérios, podemos ter problemas gravíssimos, podemos ter vítimas. Podemos levar uma vida sem graça, uma vida sem enredo, uma vida sem tratamento”.

Nossa senhora d’aqui não oferece ao leitor, em momento algum, uma posição privilegiada dos fatos; muito pelo contrário, joga nas costas do leitor o peso de sua interpretação. Aliás, o narrador não poderia oferecer detalhes dos fatos, já que nem mesmo ele os conhece: “E parece que dava aulas particulares não me lembro do quê. Matemática, será?” ou “Me lembro bem de uma senhora estrangeira de Santa Catarina! Frau alguma coisa, […]”. Parece ser realmente verdade que, como se lê no romance, “às vezes esquecemos de: fatos importantes, datas importantes, nomes importantes ou ilustres, frases importantes”.

De repente, a narrativa se “perde” totalmente. No capítulo “Homens & Numes”, os episódios são enumerados; mas, quando chega o episódio “Sete”, o narrador já não sabe exatamente o que contar e divaga, deixando-se absorver por uma prosa poética: “Sete pode ser apaixonado. Sete pode ser roxo. Cardinal ordinal ordinário divisor. Sete pode ser tomar de empréstimo. Sete pode ser o sexo […]”.

A enumeração das páginas também já não obedece a sua ordem. Na página setenta a enumeração passa a ser decrescente até chegar ao fim.

Nessa confusão toda, resta ao narrador (que são muitos ao longo do romance) orar: “Senhor, senhora (se for o caso), tende piedade de mim porque me cerquei de onomatopeias e acreditei que com isso o entardecer seria facilmente as cores em dégradé”. Ele sabe que “Não há mais corpo nesta história”, mas há, contudo, poesia que, “a cada alumbramento”, convida o leitor a permanecer ali.

De fato, a essa altura, o leitor já não pode mais abandonar o romance, foi enredado por ele.

Além disso, o leitor é também mais um fio desse emaranhado narrativo e se torna responsável por ele: “Quero muito que saiba. Quero que complete a história com esse pedaço faltante, inflamado, revoltoso”.

Resumiria bem o romance, a meu ver, a seguinte sentença: “Pronto. Agora estamos satisfeitos. É isso e só. Olho pra colcha, esta colcha com estampa espalhafatosa, não combina. Mas não combina com o quê?”.

 

 

 

 

 

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Dirce Waltrick do Amarante é autora de Pequena Biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores (Iluminuras). E-mail: dwa@matrix.com.br




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