O navio como o elogio do naufrágio


…………..Fiódor Dostoiévski, o navio como o elogio do naufrágio

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Chicago, 21 e 22 de novembro de 2014

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O conto O sonho de um homem ridículo, do bom e velho Fiódor Dostoiévski, desponta como uma narrativa peculiar em meio à obra agônica do escritor russo. Como o homem do subsolo, protagonista das Memórias do Subsolo, o homem ridículo não é nomeado. No entanto, à diferença de Memórias do Subsolo – e de praticamente toda a obra de Dostoiévski –, O sonho de um homem ridículo narra uma trajetória redentora para o protagonista. O homem ridículo, a princípio um niilista à iminência do suicídio, encontra, por intermédio de um sonho escatológico, uma verdade espiritual que o alça para além do nada que quase o levara a dar um tiro na própria têmpora.

É bem verdade que Raskólnikov, protagonista de Crime e Castigo, passa por um longo e doloroso processo de conversão após cometer um duplo assassinato. O ex-estudante de Direito vertera sangue alheio para testar, pragmaticamente, se era possível matar o Não matarás e ocupar o trono que a morte histórica de Deus deixara vago. Ocorre que Raskólnikov, contra seu ímpeto hedonista, contra sua vontade de poder, não consegue suportar o fardo de Caim: o criminoso sucumbe diante da culpa, o crime se ajoelha diante do castigo. [Nietzsche bem poderia dizer que o homicida, no momento em que comete o assassínio, está para além do bem e do mal; as decorrências do crime, no entanto, fazem com que o (suposto) super-homem volte a rastejar entre os homens ordinários, para os quais nem tudo – ou pior, quase nada – é permitido.] Sônia Marmieládova, uma síntese dostoievskiana entre Maria e Maria Madalena, uma fusão inconsútil entre a santa e a prostituta, entre o céu e a terra, encarna o sentido da redenção para Raskólnikov. O homicida encontra em Sônia uma companheira que se dispõe a abandonar a si mesma para segui-lo durante o degredo siberiano – para consolá-lo durante o processo prisional de expiação e cicatrização de sua culpa. É assim que, ao fim de Crime e Castigo, nos deparamos, em linhas gerais, com o processo de redenção de Raskólnikov:

“Ela [Sônia] passou todo esse dia intranqüila e à noite chegou até a adoecer. Mas ela estava tão feliz que quase se assustava com a sua felicidade. Sete anos, apenas sete anos! No começo da sua felicidade, em outros instantes, os dois estavam prontos para considerar esses sete anos como sete dias. Ele não sabia nem que essa nova vida não lhe sairia de graça, que ainda deveria pagar caro por ela, pagar por ela com um grande feito no futuro…

Mas aqui já começa outra história, a história da renovação gradual de um homem, a história do seu paulatino renascimento, da passagem progressiva de um mundo a outro, do conhecimento de uma nova realidade, até então totalmente desconhecida. Isto poderia ser o tema de um novo relato – mas este está concluído.”

Aquilo que Crime e Castigo apenas esboça, vale dizer, o processo de transvaloração de Raskólnikov, constitui a quintessência de O sonho de um homem ridículo – “a história da renovação gradual de um homem, a história do seu paulatino renascimento, da passagem progressiva de um mundo a outro, do conhecimento de uma nova realidade, até então totalmente desconhecida” –, com a diferença de que, como veremos, o sonho escatológico do homem ridículo desponta não como uma renovação gradual, mas como uma explosão efetivamente dostoievskiana.

O homem ridículo é o antípoda por excelência de uma gama de personagens dostoievskianas que encarnam as diversas fenomenologias da vontade de poder. O homem do subsolo lança mão de sua consciência hipertrofiada para diagnosticar o niilismo de sua época e se regozijar, de forma sadomasoquista, com a impossibilidade de estabelecer relações verdadeiramente humanas com os demais. O homem do subsolo se vangloria por poder se resguardar em sua cripta, por ter um refúgio de onde pode observar o mundo – sem entrar em contato efetivo com a vida. O prazer do subsolo se confunde com a dor do recluso. Já Svidrigáilov (Crime e Castigo) e Stavróguin (Os Demônios) auferem prazer da sexualidade desenfreada que não poupa sequer as criancinhas. Se Deus não existe e tudo é permitido, apenas a manada respeita as normas que não têm repercussão alguma senão aqui e agora. Se não há eternidade, raciocinam as personagens dostoievskianas, toda e qualquer transgressão só terá repercussão se a sanha do meu prazer for castrada; em outras palavras, se eu não for ardiloso o suficiente para me deixar punir pelos hipócritas da lei – aqueles que querem nos fazer acreditar que suas leis, isto é, as leis de seus interesses e de sua classe têm validade universal.

Imbuído do ímpeto do suicídio, o homem ridículo diria que o homem do subsolo, Svidrigáilov e Stavróguin não estão sendo suficientemente radicais em seu niilismo. Ser um sádico, ser um assassino, ser um pedófilo, ser o Todo-Poderoso, tudo isso é agir em um mundo que, após o crepúsculo dos deuses, já não faz sentido algum. Imbuído da dialética dostoievskiana, o homem ridículo sentencia que querer romper a norma, ainda que por intermédio da destruição, significa ovacionar o mundo. Para o homem ridículo, a única conclusão escatologicamente coerente para o desterro transcendental dos homens é o suicídio. Toda e qualquer tergiversação após a morte de Deus – à direita e à esquerda, para a conservação ou a revolução, a fim de destruir ou criar – não passa de mera covardia. Quando o homem ridículo compreende que o flagelo do tempo é a substância de todas e quaisquer experiências, o suicida ressoa Mefistófeles, para quem tudo o que existe merece perecer. Os entes queridos, a amada, os amigos, nada e, sobretudo, ninguém permanecem. Sendo assim – prossegue a (escato)lógica do homem ridículo –, tudo tanto faz. Tanto faz se ela diz que me ama em meio à felicidade da nudez ou se fico a espreitar a neve pela janela para driblar a solidão; tanto faz se o filho (não) perdoou o pai moribundo; tanto faz se a mãe se despediu dos filhos. Tanto faz, tudo tanto faz. Tudo passa a ser indiferente. Em verdade, em verdade, o homem ridículo nos diz: só há apenas uma ação verdadeiramente niilista – o suicídio.

É assim que Dostoiévski nos leva a uma gélida noite de São Petersburgo. O homem ridículo caminha a esmo e, quando olha para o céu e espreita uma estrelinha brilhante, ele decide que é chegado o momento de o niilismo filosófico se transformar em túmulo. Naquela noite, sem mais, ele se suicidaria.

Se estivéssemos diante de uma narrativa bíblica – se estivéssemos, por exemplo, diante do altar que o patriarca Abraão preparara para imolar seu filho Isaac ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus –, um anjo do Senhor apareceria no momento derradeiro para impedir a consecução da tragédia. Se Dostoiévski quer refletir, narrativamente, sobre os estertores do niilismo, isto é, sobre o nada como a quintessência do homem-que-se-sabe-para-a-morte, é preciso criar uma situação limítrofe que submeta o desprezo e a indiferença a um último desafio – a um desafio derradeiro. Assim será possível descobrir, vivencialmente, se tudo o que existe merece perecer.

Súbito, enquanto caminha pelo ocaso noturno de São Petersburgo, uma menininha pálida e desesperada resvala a indiferença do homem ridículo.

– Me ajuda, senhor, me ajuda, por favor, minha mamãe, minha mamãe!

O homem ridículo a enxota como a um vira-lata, mas aquela menininha acabara de lhe trazer a semente da discórdia. Aquela menininha indefesa a lhe pedir ajuda, na verdade, e sem o saber, estendera a mão (e a vida) ao homem ridículo.

Ora, se tudo tanto faz e se tudo lhe é diferente, o homem ridículo não pode se apiedar pela menininha que clama pela mamãe; o homem ridículo não pode pensar que, sem a proteção da mamãe, a menininha acabaria caindo nas garras de pedófilos e cafetões como Svidrigáilov e Stavróguin. “Se eu vou me matar (…) daqui a duas horas, então o que é que me importa a menina? (…) Eu me transformo num nada, num nada absoluto”. Se o nada é a verdade, não há lugar para a piedade.

Ocorre que o homem ridículo, assim como Raskólnikov, sente a náusea do outro – a dor conjunta, a com-paixão. [Nietzsche diria que o niilista, ainda uma vez, não está à altura de seu niilismo. Se o pensador alemão assim o fizesse, o homem ridículo poderia perguntar a Nietzsche se a gaia ciência conseguiria esboçar uma ideia de convívio social para além da competitividade utilitária da vontade de poder. É como se o homem ridículo descobrisse, após o encontro com a menininha, que Nietzsche e sua gaia ciência pressupõem, unilateralmente, a altivez do jovem e a (suposta e contingente) independência do burguês, seu egoísmo por excelência. Em verdade, em verdade, o homem ridículo nos diz: a lógica do senhor, Nietzsche, é a lógica daquele que tem medo de se tornar escravo. Ocorre, Nietzsche, que, a despeito da magnanimidade de Zaratustra – ecce homo, eis o homem! –, o tempo não apenas envilece os homens como também os envelhece. Se até mesmo Júlio César foi posto de joelhos, Nietzsche, que dizer do jovem diante de seu vir a ser senil? Que dizer do retrato de Zaratustra enquanto velho? Apoiado em sua bengala, o outrora super-homem logo voltará a usar fraldas como um bebê de colo. (Se a vontade de poder só pode suplantar o niilismo negativo do suicídio com um niilismo momentâneo de afirmação jovial da vida – Svidrigáilov e Stavróguin afirmam que o homem como que engana a letalidade do tempo enquanto o pênis se mantém ereto –, a escatologia do homem ridículo sentencia que, após o êxtase do prazer que não perdura, o niilista orgíaco deve se matar.]

No limite máximo do niilismo, já à beira do penhasco de seu exílio, o homem ridículo reencontra um bastião de humanidade em sua compaixão pela menininha desesperada e indefesa. [Eis a maestria de Dostoiévski em encontrar pontos de inflexão existenciais: se o homem ridículo tivesse sido interpelado por um mendigo (o enésimo maltrapilho…), sua comiseração nem de longe teria sido tensionada em comparação com o choque que nos traz a fragilidade de uma criança indefesa (uma menininha ainda por cima!) a clamar pela mamãe. E não se trata de qualquer amor, mas do amor de mãe, um dos últimos redutos de verdade em meio ao mundo rasgado pelo niilismo do cálculo utilitário.] Então, como um espasmo antiniilista em estreita conexão com a compaixão, o homem ridículo esboça a seguinte reflexão:

“Ocorreu-me de repente a estranha consideração de que, se eu vivesse antes na lua, ou em Marte, e lá cometesse o ato mais canalha e mais desonesto que se possa imaginar, e lá fosse achincalhado e desonrado como só se pode sentir e imaginar às vezes dormindo, num pesadelo, e se, vindo parar depois na Terra, eu continuasse a ter consciência do que cometi no outro planeta e, além disso, soubesse que nunca mais, de jeito nenhum, voltaria para lá, então, olhando a lua da Terra – tudo me seria indiferente ou não?”

A consciência moral é, de fato, uma mera questão de escapatória em relação ao farisaísmo dos usos e costumes? Cometer uma vilania em Chicago, com a condição de que dela eu me pudesse safar, não me traria quaisquer comiserações em São Paulo? Possíveis respostas a essa pergunta seguem direções centrífugas e tanto nos levam ao sonho do homem ridículo quanto nos apresentam novas aporias para pensarmos sobre as reconfigurações da trajetória redentora da personagem dostoievskiana em meio à contemporaneidade.

Após o trauma (redentor) em face da menininha, o homem ridículo, tensionado por sentir que nem tudo lhe é indiferente, consegue pregar os olhos – coisa que não conseguia fazer há dias. Em sonho, ele dá um tiro no próprio coração com o revólver que jaz junto à sua poltrona. Súbito, o suicida se vê confinado em um caixão, através de cuja campa se infiltra uma goteira que passa a lhe torturar o olho esquerdo, com toda a indiferença do universo, a cada 60 segundos. Além de descobrir que continua vivo após a morte, o homem ridículo sente o gotejamento infinito como um castigo pelo suicídio – ao que, em sumo desespero, ele responde com uma súplica repleta de agonia. É quando o caixão se rompe e nossa personagem é resgatada por um ser nebuloso para viajar pelas infinitudes estelares. (Os leitores logo tendemos a pensar em um anjo da guarda.)

Caro leitor, cara leitora, vocês se lembram da estrelinha brilhante para a qual o homem ridículo olhara no momento em que se decidira pelo suicídio? Pois o acalento do sol – um afago que restitui ao homem ridículo a vinculação com seu próprio corpo – o faz se emocionar com o brilho esmeralda da Terra, a estrelinha rediviva, vista do espaço. Mas será mesmo possível haver tais duplicações no universo? – pergunta o homem ridículo estupefato. O anjo da guarda já não está ao seu lado. A viagem estelar, que lhe fizera saltar por sobre o espaço e o tempo, o transportara até um paraíso mítico em que as águas e a terra, as plantas e os animais, os homens e as mulheres vivem na mais perfeita simbiose. O Éden revela ao homem ridículo que, inscientes sobre si mesmo, inscientes sobre a nudez, inscientes sobre as convenções morais – a bem dizer, inscientes sobre quaisquer convenções –, os seres vivem em completa organicidade. Há morte no paraíso? Sim, mas um sentido inato de eternidade faz com que a morte seja vivenciada como um até breve.

Ora, que fazemos quando a felicidade alheia estende a mão para que saiamos do charco da dor que nos acossa?

A pergunta parece ociosa – e ingênua. Não parece haver outra alternativa senão abandonar o charco e se livrar da dor, não é mesmo?

Ora, se assim fosse, Nietzsche não teria se referido a Dostoiévski como um dos únicos psicólogos com quem tinha algo a aprender.

A dor e o ressentimento têm recalcitrâncias que levam o homem ridículo a aceitar o abraço amoroso de seus novos amigos – apenas para que eles também comecem a sentir prazer com a consciência do próprio aviltamento.

Atado ao aguilhão de seu niilismo assim como o cativo que começa a se afeiçoar pelo sequestrador que, afinal de contas, o alimenta de vez em quando e lhe dá guarida, o homem ridículo passa a macular a organicidade do paraíso assim como a serpente que seduzira Eva.

Eis o êxtase do poeta marujo que sente em cada fímbria de seu corpo o ápice da beleza quando o navio vai a pique. O navio como o elogio do naufrágio.

O homem ridículo estimula a consciência individual contra a integração comunitária – a difamação se esgueira sob a confissão, figas começam a aparecer atrás das costas, a dúvida do soslaio deforma os olhares, o eu passa a viver os limites de seu corpo como o portão que já lhe cerca a casa, já que, sim!, é decretada a delimitação das propriedades, as facções se tornam clãs, os clãs se dilaceram e apenas se unem, taticamente, para mais saques e pilhagens, e assim as nações hasteiam suas bandeiras e perfilam seus exércitos. Os diferentes povos só abandonam a rapina comercial para se entrelaçarem através das guerras, a mestiçagem é a filha dileta do butim – e do estupro. A coragem do mártir também é filha da guerra, a coragem do mártir deve suportar a tortura, a vaidade do mártir é mórbida a ponto de se regozijar com as lendas que seus compatriotas narrarão sobre o que restar de seu cadáver. O herói se regozija com os golpes de seu algoz na medida em que já imagina a magnanimidade de seu mausoléu. O amor é expulso a pontapés, o amor é reduzido a um ideal, uma quimera longínqua e fadada à exaustão. Quando a poesia exalta a paixão, o amor já foi exilado. A poesia entaltece o amor apenas para que Rapunzel não se atire de sua torre – a ironia, filha dileta da dúvida, insinua que a poesia enaltece o amor apenas para que Rapunzel, irmã de Pandora, permaneça cativa de sua própria esperança. Quando o homem ridículo reconhece Caim à beira de um precipício, a moralidade há muito é exaltada como a insônia do remorso, “eu matei Abel, eu matei meu irmão!” O protagonista se apieda e vai até Caim – o homem ridículo mal percebe que se transformara na menininha que suplica por ajuda, “socorro, socorro, minha mamãe!” Caim o enxota como a um vira-lata e, antes de ser tragado pelo abismo, seu rosto transparece o alívio do moribundo que se vê livre do coma de sua vida.

É quando o sonho termina.

O homem ridículo vê o revólver ao lado de sua poltrona e o enxota como a um vira-lata. Apesar do sonho que percorrera a história humana como o transcurso da queda mítica, como a nostalgia do paraíso perdido, ele ainda sente o aroma das folhas e das flores que farfalhavam para lhe dar as boas-vindas, ele ainda parece afagar a pelagem dos animais que lhe ofereciam o dorso, ele ainda vive a comunhão dos homens e mulheres.

Ao narrar a história humana como a nostalgia do paraíso perdido (tese) e ao resgatar uma personagem que encontra a verdade para rechaçar o suicídio (antítese), Dostoiévski esboça uma síntese trêmula em meio à qual o homem ridículo passaria a pregar a dialética do torpor que, levado às últimas consequências, pôde despertar de sua letargia quando a dor e o desespero do outro lhe mostraram que algo ainda pulsava para além da pasmaceira do niilismo. “(…) É claro que teria me matado, se não fosse aquela menina”.

Dostoiévski narra a partilha dos escombros: é como se os homens e as mulheres precisassem se reencontrar em meio à ruína de suas relações para que a nostalgia da morada perdida os impulsionasse à construção de um novo abrigo. O frio e a frieza clamam pela trégua ao redor da fogueira.

Mas em verdade, em verdade, o homem ridículo sentencia:

– “Ah, como é duro conhecer sozinho a verdade!”

Se “(…) onde está o teu tesouro, lá também está teu coração”, também é verdade que “onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mateus, 6, 21; 18, 20).

A verdade seria a partilha, e não a redenção individual. A verdade requer novos corações e, necessariamente, uma sociedade outra.

O homem ridículo ressignifica a história humana como a cicatrização do espírito. O caos das guerras sublevou os homens para além do provincianismo de suas vilas, comunas, cidades e nações. A noção ecumênica de humanidade é filha da guerra e da exploração. É como se, dialeticamente, a possibilidade efetiva de uma universalidade precisasse reconciliar as contradições dos mais díspares e dispersos particularismos e antagonismos. (Reconciliar tais contradições sem que o todo cale e/ou extermine suas partes.) Para a dialética histórica do homem ridículo, a dor, o sofrimento e, no limite, a destruição tensionam os homens para além de si mesmos. É como se os homens e as mulheres precisassem renascer a partir de suas próprias cicatrizes. Foi à iminência do suicídio que o homem ridículo pariu a si mesmo.

Ora, a reconciliação que, não sem profundas contradições, pode ser vislumbrada para o homem ridículo individualmente considerado torna-se radicalmente tensa em relação à sociedade como um todo, isto é, em relação à história como a consecução de um sentido – a história como emancipação. Eis a sensação de que,

“(…) depois de Auschwitz, comete-se uma injustiça contra as vítimas com toda afirmação de positividade da existência [isto é, Deus]; uma afirmação (…), com toda tentativa de arrancar de seu destino um sentido qualquer [isto é, Deus], por mais exíguo que seja, (…) [condena] ao escárnio a construção de um sentido da imanência que emane de uma transcendência positivamente posicionada [isto é, de Deus]. (…) A faculdade metafísica é paralisada porque o que aconteceu [em Auschwitz, no navio negreiro, em Hiroshima, em Nagasaki e no Gulag soviético] destruiu para o pensamento metafísico especulativo [o pensamento sobre a espiritualidade] a base de sua unificabilidade com a experiência [isto é, com a história] (Theodor Adorno, Dialética Negativa; grifos e adendos da dialética que empareda o homem ridículo).”

O bom e velho Theodor Adorno deporta a dialética do homem ridículo para Auschwitz.

O navio negreiro e os campos de concentração, à direita e à esquerda, transformaram a morte em um refúgio.

Em Treblinka e em Dachau, a morte deixa de ser uma temeridade.

Em Auschwitz, o suicídio redime.

A fé em Deus e no sentido e a construção da história como um movimento emancipatório sobre os escombros dos fornos crematórios dos campos de extermínio pressupõem a instrumentalização de milhões de vidas humanas para que, como cobaias, as pessoas jamais se esqueçam do terror do etnocentrismo e do nacionalismo levados às últimas consequências com o holocausto. Ora, a pedagogia espiritual que instrumentaliza a aniquilação da vida não é apenas cúmplice; ela transforma a tragédia em apologia para que os seres humanos aprendamos com o afogamento no dilúvio e a asfixia nas câmaras de gás.

Quando a tragédia histórica transforma o Apocalipse em mera anedota, os condenados da terra perguntam a Dostoiévski como o sonho do homem ridículo pode dar à luz uma nova Gênesis.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor universitário e autor de “Tiro de Misericórdia” (Editora nVersos, 2014) e “O Evangelho segundo Talião” (Editora nVersos, 2013) e organizador de “Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade” (Editora Intermeios, 2012). Durante o mestrado em Teoria Literária (2008-2010) pela FFLCH-USP, o escritor Fiódor Dostoiévski fez com que Flávio Ricardo se embrenhasse pela Rússia, durante um ano (2008-2009), para aprofundar, junto à Universidade Russa da Amizade dos Povos, em Moscou, o aprendizado da língua que as “Memórias do Subsolo” legaram a Stálin. Agora, durante o doutorado em Teoria Literária (2012-2015) pela FFLCH-USP, Dostoiévski e a dialética fazem o autor nômade migrar novamente, desta vez para a fronteira oposta da Guerra Fria: entre setembro de 2014 e agosto de 2015, Flávio Ricardo realiza um estágio doutoral junto à Northwestern University, em Evanston, Chicago, nos Estados Unidos. Segundas-feiras, quinzenalmente, o autor apresenta, a partir das 22h, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z, www.tvgz.com.br, o Portal Heráclito e o YouTube. Periodicamente, atualiza o Portal Heráclito, www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, páginas em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

 




Comentários (2 comentários)

  1. Jorge Luís da Silva Hais, Turgueniev não me assombra mais que esse seu texto, profundíssimo e alinhado com o que Dostoiévsky propôs, me veio à luz dos olhos aqueles relatos de `de repente minha vida toda passou diante de mim`. Mas deixa inquietações e tarefas. 1 – Preciso reler o conto 2 – Preciso terminar de ler Crime e Castigo. Maravilha.
    24 novembro, 2014 as 16:42
  2. Arthur França, Excelente texto. Jorge sou também um admirador de Dostoievski
    18 dezembro, 2014 as 23:11

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