O mestre dos diálogos


 

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Desde que estreou na literatura, no fim dos anos 1960, com Tremor de terra (vencedor do Prêmio Nacional de Ficção), a prosa de Luiz Vilela destaca-se por duas características fundamentais: o resgate das histórias comuns, que transcorre numa atmosfera narrativa que busca a simplicidade e a clareza, sem perder a densidade; e a contenção formal, particularizada pela utilização do diálogo,  recurso que o autor manuseia com abundância , sem incorrer em obviedade ou repetição.”

Em “Perdição” (Record, 400 págs.), que marca seu retorno triunfal ao romance, esses aspectos tornam-se ainda mais evidentes, porque trabalhados com mais rigor e estilo, e adensam o enredo. A trama se passa numa fictícia Flor do Campo, microcosmo do interior mineiro, a partir do qual descortina-se um cenário de mazelas e conflitos.

Leonardo — Leo — é o personagem principal, âncora de uma bem-humorada história sobre os descaminhos de um jovem perdido e a inviabilidade da vida interiorana. Aliás, o humor em Vilela é a crítica e a reflexão em estado de sutileza e refinamento e funcionam em todo o conjunto como uma espécie de amálgama, equilibrando  forma e conteúdo.

Pelas mãos de Ramon, jornalista de um pequeno jornal local, seu amigo de infância e narrador da história, conhecemos o percurso, às vezes sem sal, às vezes atilado, de um pescador, que vende os peixes na feira. Entediado com a vida que leva e com a falta de perspectiva de sua atividade, repentinamente afetada pela chegada da empresa de Disk-Peixe, que veio explorar o ramo na cidade, ele decide tentar outra sorte. Só que sua esperança vai bater em outras águas, seduzido por um pregador de uma nova igreja, cuja cantilena o seduz a ir para o Rio com a missão de salvar do pecado os homens, a partir do que se traveste no Pastor Pedro, numa alusão ao pescador de almas da Bíblia.

Ao entrar num mundo completamente desconhecido, atraído pela promessa de vida nova e de salvação, na verdade Leo (Pastor Pedro) encontra a própria perdição ao perceber que foi manipulado pelo vezo maniqueísta e comercial de um tal Mister Jones, figura que muito bem metaforiza essa onda protestante avassaladora e hipócrita que vem tomando conta do nosso país com seu impune estelionato espiritual.

Leo, como milhões de fieis que acabam caindo no conto do vigário das pregações massificantes e histriônicas, acaba migrando para esse despudorado mercado da fé. Hipnotizado por uma promessa que não se realiza, a engrenagem o aprisiona e ele afunda cada vez mais nesse terreno pantanoso, babélico e ilusório. Por fim percebe a canoa furada em que se meteu, sendo forçado a abandonar aquela máscara e a retornar à sua terra natal, voltando à vidinha sem ênfase de sempre e enfrentando o julgamento e a execração dos que o viram partir.

Durante toda a história, Vilela desloca sua narrativa para outros pequenos focos, ao apresentar fatos e ocorrências que mobilizam a vida do pequeno lugar, mas que têm, no fundo, a função de revelar esse caldeirão de tipos e situações, muitas vezes bizarras, expondo todo um universo povoado pelas crendices, pelo misticismo, pela politicagem e pelo vazio da falta de horizontes.

Em Perdição está em jogo essa luta entre o bem e o mal, entre a mentira e as falsas verdades das instituições, entre o sagrado e o profano das relações, bem como a guerra entre a carne e o espírito, algo que vem sendo apropriado ─ indevidamente e com todo o fanatismo e fervor farisaico  ─ pelas seitas protestantes que procriam por aí, principalmente com a exposição frequente de falsos milagres na tevê, o que na obra de Vilela é sutilmente denunciado, quando a história do acidente da filha de Leo vem à tona e mostra a incapacidade da fé e da religião de curá-la. Não há graça possível, só a desgraça real no mundo de verdades e caminhos perecíveis.

Vale ressaltar a força dos diálogos em toda a obra vileliana e que nesse caudaloso romance funcionam como um grande rio por onde escoam as perplexidades, as dúvidas, as angústias e as críticas dos personagens. No espaço das conversas corriqueiras, alimentam o dia a dia dessa gente, verdadeiras pérolas garimpadas na prosa dos observadores da vida quotidiana, discutem-se valores e inquietações, tudo carregado de uma ironia ferina, compondo um painel psicológico, moral e profundamente humano de Flor do Campo.

No romance, personagens secundários — como Gislaine, a mulher de Leo, Dona Nenzinha, a dona da pensão, e Mosquito, vendedor de pimentas — constituem um caleidoscópio de hipocrisia, pequenez, preconceito e cinismo de uma sociedadezinha refratária e sem rumo. E a pescaria simboliza o mergulho de Leo em águas profundas, nas quais ele enfrentará a escuridão e o lodo e conhecerá uma outra verdade – a do engodo das crenças – que verdadeiramente o libertará, trazendo-o de novo à tona, à claridade de suas raízes, ainda que doloroso o retorno, sem a pretendida salvação ou redenção.

Ao tocar em temas tão profundos que habitam a alma e a consciência das pessoas, mas encontradiços em qualquer lugar do mundo, Vilela aponta para o universalismo de sua prosa, sem necessidade de contorcionismos de linguagem nem afetações estilísticas. O que é essencial e profundo na condição humana é o ponto central em toda a obra do autor, e em “Perdição” é captado com maior liberdade e tensão crítica. Vilela expõe um senso agudo de objetividade e clareza, calcado na sua experiência com a cultura oral, com o imaginário rural e com a coloquialidade, cujas verdades e sentimentos não requerem nenhuma invencionice formal ou técnica, tão somente a reconstrução da realidade a partir de sua atmosfera mais elementar, para o que a linguagem concorre com sua carga de realismo e espontaneidade e a que, o diálogo, repita-se, como forma de recontar esse mundo, empresta autenticidade, leveza, crueldade e poesia.

Vilela é um desses estuários que formam o oceano de uma grande literatura. Assim como um Graciliano Ramos e um Tchecov, sua ficção é virtuosa, porque a palavra não é usada para enfeite, mas para comunicar, dizendo sempre mais com o mínimo de recursos. E no bojo de seu projeto criativo, que incorpora uma visão estética da arte e do homem, sua literatura tem um compromisso ético com a verdade e com os destinos do mundo.

 

 

 

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Ronaldo Cagiano é autor de “Dicionário de pequenas solidões“ (contos) e “O sol nas feridas” (poesia), dentre outros. É mineiro de Cataguases e vive em São Paulo. E-mail: ronaldo.cagiano@caixa.gov.br




Comentários (1 comentário)

  1. CHICO LOPES, Mestre dos diálogos, de fato. Na minha vida toda, só li um livro de Vilela, que me caiu nas mãos quando eu nem sonhava em ser escritor: “No bar”. Virou mitológico, pra mim, pela força e a agilidade daqueles diálogos realistas, abruptos, decisivos. E o próprio autor se tornou um mito – ouvia falar dele, mas continuei sabendo pouco, devido talvez ao seu isolamento deliberado no interior de Minas. Hoje, também morador do interior do Minas, creio que o entendo melhor, mas, infelizmente, não tenho lido seus últimos livros. No entanto, sei que ele ocupa um lugar ímpar em minha formação. Vilela, se ler este comentário, saiba que sempre te admirei muito. E foi bom ver – pra mim, pela primeira vez – teu rosto na chamada da página inicial do Musa. Um rosto tranquilo e ligeiramente irônico.
    2 abril, 2012 as 13:56

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