O mais feliz dos silêncios


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Este livro é um trem, um ônibus, um relógio, um carro enguiçado, uma carruagem forrada de veludo negro.

Introspectiva e com flor de plástico no cabelo, Ayla nos guia com palavras precisas e regurgitadas no box de um banheiro, cujos azulejos de um tom amarelo desgastado rutilam às exatas duas da tarde. Ela nos guia de mãos dadas à distância, “sem a ajuda do vento”, ao seu Mais feliz dos silêncios.

Nem tão feliz assim: Ayla (em seu nome lê-se um doloroso e latino-americano ay).

Com voz de Clarice Lispector ao narrar o ventre seco da empregada Francisca, com olhos de Karim Aïnouz, nos contos supernordestinos e brilhantes como neón  Leide da Night e o Marceneiro e Marta, com mãos de exímia cordelista ao escrever o impressionante e aliterado Raimundo, Regina e o repentista, Ayla Andrade espanta e te faz comungar em silêncio um doloroso Ay, caramba!

Mas  ela também é engraçada e também faz rir se valendo de um humor sutil. Sem perceber ou de propósito mesmo, ela “rebola no mato” um humor ocluso, cearense, elegante.

Esses trinta e três contos divididos em capítulos marcados por horas imprecisas foram erguidos em construções classudas. O rebojo do mar, o vilarejo onde nada acontece, mas num torvelinho absurdo, algo enceta no coração de alguém.

E o coração da Ayla é grande. Vê-se pelo tamanho do seu silêncio e da sua figura discreta sentada ao pé da calçada, ainda desprendendo mormaço. A noite cai sem explicação e Ayla recolhe-se para sua cama vazia, trazendo você junto, como um brinquedo quebrado, a peça faltante de um quebra-cabeças num conto de Natal.

Quando você se dá conta, está também deitado no quarto escuro de Ayla, com a janela aberta e “sem brisa”.

São tantos os desencontros, que o mundo não gira, o mato cresce, o trem não chega e as estrelas caem indefinidamente. A realidade é cortante como os olhos daquele que não veio. É asfixiante como o silêncio do outro, como “aspirar pó de madeira”, como o nó da gravata que enforca o engravatado ao cair da tarde.

Mas uma hora o trem chega, o ônibus sacode e freia, e Ayla sobe ou e desce, lançando a você, leitor desconhecido, um precioso e  inesquecível tchau.

 

Natércia Pontes

 

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Confira um conto do livro:

 

GARAGEM

 

A moça Francisca, que já nem tão moça, nunca teve vida própria. Desde menina trabalha como há duzentos anos trabalhavam os seus: para os brancos que moram bem e têm coisas.

Mas a moça Francisca nem queria coisas: Os brancos, que moram bem, têm família. Filhos. Filhos, pensava a moça Francisca. Os dela.

Dar banho, vestir, alimentar, dar banho de novo. Enquanto isso Francisca fechava os olhos e os via. Os seus meninos. Como ela os chamava. Nem tinham nome, os meninos. Fechava os olhos e os via. Mas os que ela banhava, vestia e alimentava não a chamavam mãe. E Francisca não podia fechar os ouvidos. Nem os poros, nem os pulmões. Assim a moça Francisca continuava.

– Comprar pão na padaria, Francisca.

– Ô Francisca, vai lá na bodega e traz qualquer coisa pra eu comer.

– Ah, Francisca isso eu não queria, não. Vai lá e troca.

E assim passavam os dias da moça Francisca. Mas nem eram dias. Eram anos. Anos que escorregaram no ralo da pia, na pilha de roupas sujas, na pilha de pratos por lavar, na pilha de comida que sobrava pra guardar, na pilha das crianças que não acabava nunca pra Francisca sonhar com os seus.

Francisca nem se importava de vestir as roupas de segunda mão que ganhava de bom grado da família. Sim, por que diziam a ela:

– Francisca, você é como se fosse da família.

Francisca também não se importava de almoçar depois da família. Também não ligava se não a levavam para os passeios de fim de tarde no calçadão nem aos passeios de fim de ano e muito menos aos passeios do fim da vida. Francisca só sentia doer à noite, quando no quarto arranjado, lhe sobrava tempo pra si. E o que fazer com o tempo para si quando o dedicou todo aos outros?

Sentia as mãos vazias, os olhos vazios, a boca vazia, o peito vazio e tudo mais que se pudesse preencher, vazio. Mas não a cabeça de Francisca. Essa dava voltas no quarto. Involuntariamente ocupava os espaços com o berço branco, o guarda-roupa, a cômoda, as fraldas, as cortinas, os tapetes, as paredes e seu colo negro que combina perfeitamente com os seus meninos.

E dando voltas adormecia. Como o tempo para si era pouco e doía, adormecia.

Anos a fio e cheios de nó, Francisca devotava obrigatoriamente à família. Primeiro cuidou da avó, depois da filha, depois dos filhos da filha e aquilo não tinha fim como a linha do trem, pensava Francisca.

Que não conhecia a Da Silva. Se a conhecesse calçava os tamancos, as vestes da pequena patroa e assumia a casa e os demais como seus. Como seus, viu? Propriedade de Chica.

Mas Francisca não era moça de propriedades. Era ela mesma sem propriedade. De seu andar, de seu falar, de seu olhar e até de seu suspirar.  A única coisa que era sua e seria enterrada com ela era seu sorriso de diamante. Tão raro quanto um. Ah, mas quando Francisca resolvia rir era uma nova aurora na rua dos sobrados. Tudo se alumiava. Não sobrava nuvem no céu e o sol se acanhava. Era comum a criançada da rua, os canelais, como dizia a pequena patroa, correrem com espelhos nas mãos tentando roubar uma nesga de brilho do sorriso de diamante da moça Francisca.

Mas não tendo motivos pra rir, ficava a rua dos sobrados numa escuridão conhecida, um breu aceitável como a condição de Francisca para os demais. Talvez por isso, guardava a criançada, fios do sorriso de Francisca. Eram úteis na penumbra do dia daquela rua. Eram úteis para riscar a cara dos que não enxergariam, nem se quisessem, o ar de pintura a óleo que tinha Francisca.

E como uma pintura a óleo, ficava a moça Francisca pregada naquelas paredes de pedra. Já até faziam parte dela, aquelas pedras todas. Eram o seu sangue e seus nervos de pedra. Eram seus cabelos e tetas de pedra, suas juntas e substrato de pedra. Assim Francisca era uma estátua sem praça, uma masmorra sem príncipe, uma muralha sem guerra. E sem exército travava suas batalhas íntimas. Só um pedaço de Francisca continuava terra de ninguém: o ventre. Caverna abissal que tomara pra si as contas do tempo e que sobrara para Francisca contar.

Mas a moça Francisca há muito parou de juntar os números, as horas e as primaveras sem florescer. Ela mesma não florescera e não achava entre os jardins aquela que por tristeza ou alegria, torvelinho ou mansidão, boniteza ou feiura lhe destinasse outro fim que não a oca garagem da rua dos sobrados.

 

 

 

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SOBRE A AUTORA

Ayla Andrade é poeta, escritora, assistente social, feminista e mãe. Há escreveu para blogs e jornais, e assina o blog http://umaescadaparaonada.blogspot.com.br . Já publicou contos em algumas antologias, entre elas “Encontos e desencontos”, “Antologia Massanova” e “O conto fantástico no Ceará”. Seu nome está ligado a projetos de literatura e intervenções urbanas, como o recente “Trânsito de leituras”; curadorias e produções do “Literatura de lua”, que ocorria semanalmente na Livraria Lua Nova; das “Zonas poéticas Liberadas – ZPL”, que ocorriam no Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura; do “Poesia em revista” do CCBNB, e da ONG Ceará em foco. A arte de capa é da artista Tereza Dequinta https://www.facebook.com/tereza.dequinta/, que participa do Acidum Project.           https://www.facebook.com/acidumproject/info

 

 

SOBRE A EDITORA

A Editora Substânsia foi criada com o intuito de publicar livros de autores contemporâneos, dos mais variados gêneros, e perspectivar novas condições de diálogo entre os criadores brasileiros das mais variadas artes; abrindo novas possibilidades no mercado editorial brasileiro. A exemplo de outras editoras independentes, o que nos move é a paixão pela literatura, o prazer de editar livros e criar elos que fortifiquem a intelectualidade dos novos escritores, reconhecendo a contribuição dos que buscam firmar conteúdos de qualidade, abertos para o debate colaborativo.

Criada a partir da união de três profissionais das Letras – Nathan Matos (Mestrando em Letras da UFC, escritor e editor da Revista Substânsia e do portal literário LiteraturaBr),Madjer Pontes (Mestrando em Letras da UFC, poeta eeditor da Revista Pechisbeque) e Talles Azigon (Produtor cultural, contador de histórias, poeta, integrante do grupo Templo da Poesia, criador da página Poesia Brasileira, e estudante de Letras da UFC) –,a Editora estreou com o Lançamento do Livro “núcleo selvagem do dia”, de Madjer Pontes, no mês de maio desse ano e já possui três livros publicados.

 

SERVIÇOS:

Lançamento do livro “O mais feliz dos silêncios”, Ayla Andrade

Quando: 09 de Outubro às 18:30

Onde: Biblioteca Municipal Dollor Barreira. Av da Universidade 2572, Benfica. Fortaleza-CE

Formato: 14×21 | Brochura

Número de Páginas: 102

Gênero: Conto

Editora: Substânsia

MAIS INFORMAÇÕES:

Através do e-mail editorasubstansia@gmail.com

Telefones (85) 86437120 ou 99134651 – Talles Azigon

http://www.editorasubstansia.com.br/

 




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