O livro do juízo final


 

Doomsday Book (que acabei de traduzir para a Suma de Letras) ganhou os três prêmios principais da FC norte-americana: o Hugo, o Nebula e o Locus. O livro é de 1992, e depois Willis publicou mais títulos nessa série de viagens no Tempo envolvendo historiadores de Oxford: To Say Nothing Of The Dog (1998), Blackout (2010), All Clear (2010) e outros.

O livro é contado em paralelo, do ponto de vista de Kivrin Engle, a estudante que viaja no Tempo, rumo ao passado, e do seu professor, James Dunworthy, um historiador cinquentão para quem a idéia de mandar uma moça de vinte anos à Idade Média é condená-la à morte e a algo pior do que a morte.

Kivrin salta para o século catorze. No ano de 2050, de onde ela saiu, primeiro a Universidade e depois toda a cidade de Oxford são varridas por uma epidemia de gripe, tão perigosa quando a famosa Gripe Espanhola que matou dezenas de milhões. Natal sob epidemia e quarentena. Todo mundo doente, instalações interditadas. Como trazer a estudante de volta?

Willis é uma escritora bem humorada, e confessa uma influência das comédias screwball norte-americanas dos anos 1930-40, de Preston Sturges, Frank Capra, Howard Hawks e outros. Isso não a impede de narrar com eficácia longas sequências trágicas. Qualquer manual de escrita criativa preparado nos EUA nos adverte que o mais importante é fazer com que o leitor se importe com o personagem, se preocupe com ele, acredite nele.  Na maioria de suas histórias, ela consegue.

Esse veio de comédia (menos presente em forma de piadas, e sim nas interações entre os personagens, e em certas ações absurdas que as pessoas não conseguem deixar de executar) ajuda a diluir o sentimentalismo que nos faz simpatizar com A e antipatizar com B. Seus tipos começam caricaturais, mas Kivrin, ao conviver com os aldeões do século 14, tanto confirma informações livrescas que trazia como quebra a cara porque nem tudo é como tem no livro.

Mas a História (não a ciência histórica, mas isso que as redes sociais de hoje chamariam “a Narrativa, o arco civilizatório da humanidade”), para acontecer, precisa que a donzela desobedeça à proibição do pai (ou as advertências do sr. Dunworthy) e mergulhe no bosque escuro. Isso fica ainda mais interessante quando sabemos que Willis já praticava em 1992 o que alguns chamam agora a “Lei de (George R. R.) Martin”: quanto mais querido um personagem, maior o risco de vida que ele corre.

Connie Willis é uma escritora de gênero, ou seja, formada dentro da cultura de pulp fiction, dos fanzines e clubes, dos colecionadores e fãs. Um dos seus contos mais emotivos mostra, em Portales (New Mexico), turistas do futuro que vão àquele remoto sertão do faroeste porque foi lá que viveu grande parte da sua vida Jack Williamson (1908-2006), o veterano criador da “Legião do Tempo” e “Legião do Espaço”. Os turistas parecem já saber os menores detalhes da vida do escritor. Há uma corrente de emoção, mas subterrânea, na medida em que percebemos o significado de alguns detalhes, e de outros não.

Por outro lado, há momentos no Doomsday Book em que ela parece ceder ao zás-trás do melodrama. Um personagem, em menos de um mês, passa por severas doenças que quase o aniquilam, e fica com o cabelo completamente branco. Pelo que entendo, o cabelo pode até embranquecer, mas a partir daquel ponto apenas, começando a crescer já branco. Os cabelos que eram de outra cor não embranquecem em pouco tempo, a não ser em Ponson du Terrail ou Michel Zevaco.

Há uma hipótese em favor disso, indicando uma reação do corpo a algo contido no pigmento do cabelo, de modo que os cabelos com mais pigmento tendem a morrer e cair, enquanto o que há de cabelos brancos se mantém.

Talvez isso seja um detalhismo bobo, como o dos leitores de Julio Cortázar, surpresos pelo fato do personagem chegar depois de meses viajando e ligar a ignição do carro, na garagem, logo de prima. Cortázar dizia: ele deixou uma cópia da chave com algum vizinho, algum amigo, para ficar usando o carro, ou para dar-lhe uma esquentada de vez em quando. “Meus romances são fantásticos,” dizia ele, “não é por detalhes assim, é por outra ordem de coisas.”

 

 

 

 

 

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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail: btavares13@terra.com.br




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