O Homem Duplicado


……………….Redescobrindo O Homem Duplicado de Saramago

saramago enemy1

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 01 de julho de 2014)

.

Quem não leu O Homem Duplicado — que até agora eu considerava o mais fraco entre os romances de José Saramago[1] — pode pensar que o diretor canadense Dennis Villeneuve (utilizando um roteiro de Javier Guillón) mexeu muito na trama. No geral, entretanto, a versão cinematográfica (em cartaz no momento) manteve-se fiel ao original, com pequenas transposições, simplificações convincentes e uma curiosa gravidez da esposa do duplo. Pena que o único elemento diferencial importante (as recorrentes aranhas) tenha sido utilizado de forma tão grosseira e tosca. O que poderia ser uma realização digna dos claustrofóbicos filmes de Polanski acaba flertando com o lado mais discutível (e de mau gosto) do universo de um David Lynch (com um toque cronemberguiano), mesmo nos seus melhores trabalhos. Uma pena, se lembrarmos da entrega de Jake Gyllenhaal aos seus dois personagens, da fotografia e da maneira como ele filma o espaço urbano.

Mesmo assim, Enemy valeu por me fazer revisitar o livro. E não é que gostei bastante de O Homem Duplicado doze anos após seu lançamento (no ano em que o admirável escritor português chegava aos oitenta)?

Como se sabe, o professor de história Tertuliano Máximo Afonso (o qual, apesar do nome pomposo, assaz repetido página a página, sempre de forma completa, é um indivíduo apagado, vivendo uma existência desbotada) descobre através de um vídeo alugado um sujeito (ator com irrisória participação em diversas produções) em tudo semelhante a ele. Utilizando alguns expedientes, narrados com minúcia, fica sabendo o nome, o telefone o endereço de António Claro (cujo nome artístico é Daniel Santa-Clara). Ao entrar em contato, desestabiliza-lhe o casamento, já minado, saberemos depois, por várias infidelidades (o filme se apressa em esclarecer de saída esse lado menos simpático).

A inusitada aparição de Tertuliano Máximo Afonso parece (com o detalhe importantíssimo da preocupação em estabelecer quem é o “protótipo” e quem é a “imitação”) acionar em António Claro a mola da rivalidade, com certos requintes de perversidade: resolve tomar Maria da Paz, que é apaixonada pelo professor, e cujas tentativas em entrar mais profundamente na vida dele esbarram na sua relutância, como amante —como uma espécie de desagravo de macho, fazendo-se passar pelo outro (não sem antes informá-lo e até ameaçá-lo). Será uma decisão trágica, que impedirá, entre outras coisas, que Tertuliano retome a própria vida.

Ainda persiste a impressão de que Saramago caprichou mais nas pesquisas de seu protagonista com relação ao ator (o primeiro contato ocorre apenas na pág. 195, de um total de 316, na edição brasileira[2]) e depois precipita demais os eventos (aliás, uma desarmonia gritante em seus romances pós-Nobel, à exceção de A Viagem do Elefante, que considero uma de suas obras-primas). Mas não tacharia mais de bisonha a solução final, como se me afigurou na primeira leitura. O que ainda continua meio estranho é o afloramento súbito de uma sordidez (o lado cafajeste) que então parece característica de António Claro (nesse ponto, é preciso reconhecer que o filme preparou com mais inteligência estratégica esse comportamento — que serve para enfatizar a condição de inimigos entre os dois, já que um deles está “sobrando”).

É impossível não se divertir com a questão dos disfarces, ou não reconhecer que, mais uma vez, Saramago se mostra um mestre nas personagens femininas (Maria da Paz; Helena, a esposa; a mãe de Tertuliano). Seu maior feito, e dou a mão à palmatória por não ter reconhecido isso, é ter se safado do déjà vu do tema do doppelganger (da duplicação), com larga tradição na literatura, ao mostrá-lo tão entremeado ao irrisório do dia a dia, ao paradoxo capitalista de incutir o fetiche da individualidade, de ser “único”, quando tudo contraria essa ilusão: a uniformidade das experiências, o alcance tentacular das obrigações, laços muitas vezes forçados e da nossa “fisionomia social”, o nosso “nome”, por assim dizer.

Como heróis, somos atores de terceira categoria, parece dizer o irônico autor de Ensaio sobre a Cegueira. A dimensão política é tão forte quanto a voragem existencial evidenciada pelo relato. Afinal, ele mesmo já afirmou que hoje mais importante que o nome é o número do cartão de crédito.

the-double16631844_nbHpB

Alguém poderá replicar: que observação mais óbvia! E justamente, caro alguém, aí reside o que O Homem Duplicado tem de melhor: ao invés de ser uma diluição do estilo saramaguiano, ele representa sua depuração madura, essa voz narrativa que se cristalizou, tornando-se inconfundível — ao  mesmo tempo em que faz um relato[3], se vale do senso comum para interpelar seu personagem, e que utiliza certo prosaísmo “chão”  como motor para o discurso narrativo[4].

Como neste trecho maravilhoso:
.

“Também em tempos que já lá vão, houve na terra um rei, considerado de grande sabedoria que, em um momento de inspiração filosófica fácil, afirmou, supõe-se que com a solenidade inerente ao trono, que debaixo do sol não havia nada de novo. A estas frases não convém tomá-las nunca demasiadamente a sério, não se dê o caso de as continuarmos a dizer quando tudo à nossa volta já mudou e o próprio sol já não é o que era. Em compensação, não variariam muito os movimentos e os gestos das pessoas, não só desde o terceiro rei de Israel como também desde aquele dia imemorial em que um rosto humano se apercebeu pela primeira vez de si mesmo na superfície lisa de um charco e pensou, Este sou eu. Agora, onde estamos, aqui, onde somos, decorridos que foram quatro ou cinco milhões de anos, os gestos primevos continuam a repetir-se monotonamente, alheios às mudanças do sol e do mundo por ele iluminado, e se de algo ainda necessitássemos para ter a certeza de que assim é, bastar-nos-ia observar como, diante da lisa superfície do espelho da sua casa de banho, António Claro ajusta a barba que havia sido de Tertuliano Máximo Afonso com os mesmos cuidados, a mesma concentração de espírito, e talvez um temor semelhantes àqueles com que ainda não há muitas semanas, Tertuliano Máximo Afonso, noutra casa de banho e diante de outro espelho, havia desenhado o bigode de António Claro na sua própria cara. Menos seguros porém de si mesmos que o seu bruto antepassado comum, não caíram na ingênua tentação de dizer, Este sou eu, é que desde então os medos mudaram muito e as dúvidas ainda mais, agora, em vez de uma afirmação confiante, o único que nos sai da boca é a pergunta, Este quem é…” Ou então: “e agora vai dizer a Helena a palavra que ainda falta para que a incrível história dos homens duplicados se acabe de uma vez e a normalidade da vida retome o seu curso, deixando as vítimas atrás de si, conforme é uso e costume.

No final, os que somos leitores apaixonados de sua obra (creio que a experiência de ler O Homem Duplicado satisfará menos quem o pegar como introdução a ela) descobrimos a pólvora pela milésima vez: as pessoas podem ser duplicadas (miragens de territorialidade individual à parte), o estilo saramaguiano é único.

O Homem Duplicado José Saramago Lídia Jorgeenemy-teaser-trailer-09202013-145307

 

 

.

NOTAS

[1] Tive a impressão que ele estava imitando o próprio estilo, que já mostrava sinais de desgaste, mercê da produção ininterrupta.

Sobre outros romances pós-Nobel de Saramago, ver os links:

http://armonte.wordpress.com/2012/05/20/saramago-e-as-paisagens-alegoricas/

http://armonte.wordpress.com/2012/06/09/atos-de-insurreicao-etica-segunda-parte-ensaio-sobre-a-lucidez/

http://armonte.wordpress.com/2012/06/08/a-molecagem-do-sisudo-saramago-caim/

[2] Agora também há uma edição de bolso.

[3] A própria intervenção do narrador é muito característica:

“Por respeito à verdade, devemos dizer que António Claro, até agora, e apesar das inúmeras voltas dadas ao assunto, não conseguiu chegar a um traçado razoavelmente satisfatório de um plano de ação merecedor desse nome. No entanto, o privilégio de que gozamos, este de saber tudo quanto haverá de suceder até à última página deste relato, com exceção do que ainda vai ser preciso inventar no futuro, permite-nos adiantar que o ator Daniel Santa-Clara fará amanhã uma chamada telefônica para casa de Maria da Paz, nada mais que para saber se há alguém, não esquecer que estamos no verão, tempo de férias…”

De passagem, não é ocioso chamar a atenção para o fato de que Saramago brinca brilhantemente com a metalinguagem, de forma simples e natural, sem fanfarras, como na passagem abaixo (quando Tertuliano volta para casa, após uma viagem de visita à casa da mãe), onde de raspão ele ainda dá um peteleco no creacionismo que propõe um design inteligente da criação do mundo:

“De acordo com as convenções tradicionais do gênero literário a que foi dado o nome de romance e que assim terá de continuar a ser chamado enquanto não se inventar uma designação mais conforme às suas atuais configurações, esta alegre descrição, organizada numa sequência simples de dados narrativos em que, de modo deliberado, não se permitiu a introdução de um único elemento de teor negativo, estaria ali, arteiramente, a preparar uma operação de contraste que, dependendo dos objetivos do ficcionista, tanto poderia ser dramática como brutal ou aterradora, por exemplo, uma pessoa assassinada no chão e ensopada no seu próprio sangue, uma reunião consistorial de almas do outro mundo, um enxame de abelhões furiosos de cio que confundissem um professor de História com a abelha-mestra, ou, pior ainda, tudo isto reunido em um só pesadelo, uma vez que, como se tem demonstrado à saciedade, não existem limites para a imaginação dos romancistas ocidentais, pelo menos desde o antes citado Homero, que, pensando bem, foi o primeiro de todos eles. A casa de Tertuliano Máximo Afonso abriu-lhe os baços como uma outra mãe, com a voz do ar murmurou, Vem, meu filho, aqui me encontras à tua espera, eu sou o teu castelo e o teu baluarte, contra mim não vale nenhum poder, porque sou tua mesmo quando estás ausente, e mesmo destruída serei sempre o lugar que foi teu. Tertuliano Máximo Afonso pousou a mala no chão e ligou as luzes do teto. A sala estava arrumada, sobre os tampos dos móveis não havia um grão de pó, é uma grande e solene verdade que os homens, mesmo vivendo sozinhos, nunca conseguem separar-se inteiramente das mulheres, e agora não estávamos a pensar em Maria da Paz, que por suas pessoais e duvidosas razões, apesar de tudo o confirmaria, mas à vizinha do andar de cima, que ontem passou aqui toda a manhã a limpar, com tanto cuidado e atenção como se a casa fosse sua, ou mais ainda, provavelmente, que se o fosse. O gravador de chamadas tem a luz acesa (…) a terceira chamada era a que António Claro deixou no outro dia, a que começava assim, Boas tardes, fala António Claro, calculo que não estaria à espera de uma chamada minha, bastou que a voz dele  tivesse ressoado naquela até aí tranquila sala para se tornar evidente que as convenções tradicionais do romance atrás citadas não são, afinal de contas, um mero e desgastado recurso de narradores ocasionalmente minguados de imaginação, mas sim uma resultante literária do majestoso equilíbrio cósmico, uma vez que o universo, sendo embora, desde as suas origens, um sistema falto de qualquer tipo de inteligência organizativa, dispôs em todo o caso de tempo mais que suficiente para ir aprendendo com a infinita multiplicação das suas próprias experiências, de modo a culminar, como o vem demonstrando o incessante espetáculo da vida, em uma infalível maquinaria de compensações, que só necessitará, também ela, de um pouco mais de tempo para mostrar que qualquer pequeno atraso no funcionamento das suas engrenagens não tem a mínima importância para o essencial, tanto faz que haja que esperar um minuto ou uma hora, como um ano ou um século. Recordemos a excelente disposição com que o nosso Tertuliano Máximo Afonso entrou em casa, recordemos, uma vez mais, que, de acordo com as convenções tradicionais do romance, reforçadas pela efetiva existência da maquinaria de compensação universal a que acabamos de fazer fundamentada referência, deveria ter dado de caras com algo que no mesmo instante lhe destruísse a alegria e o afundasse nas vascas do desespero, da aflição, do medo, de tudo o que sabemos que é possível encontrar ao virar uma esquina ou ao meter a chave a uma porta. Os monstruosos terrores que então descrevemos não passaram de exemplos simples,  poderiam ter sido aqueles, poderiam ter sido piores, e afinal nem uns nem outros, a casa abriu maternalmente os braços de seu proprietário (…) enfim, para não ter de usar mais palavras, parecia que nada poderia estragar o regresso feliz de Tertuliano Máximo Afonso ao lar. Puro engano, pura confusão, ilusão pura. As rodagens da maquinaria cósmica tinham se transportado para os intestinos eletrônicos do gravador de chamadas,  à espera de que um dedo viesse premir o botão que abriria a porta da jaula ao último e mais temível dos monstros, não já o cadáver ensanguentado no chão, não já o inconsistente consistório de fantasmas, não já a nuvem zumbidora e libidinosa dos zangões, mas a voz estudada e insinuadora de António Claro…”

[4] O narrador (ou seu protagonista, professor de história que pode ter lacunas no conhecimento literário) comete um pequeno equívoco, na pág. 260, num diálogo entre Tertuliano e sua mãe. Ali lemos:

“O que a mãe tem é vocação para Cassandra, Que é isso, A pergunta não deve ser que é isso, mas quem é essa, Então ensina-me, sempre ouvi dizer que ensinar quem não sabe é uma obra de misericórdia, A tal Cassandra era filha do rei de Tróia, um que se chamava Príamo, e quando os gregos foram pôr o cavalo de madeira às portas da cidade, ela começou a gritar que a cidade seria destruída se o cavalo fosse trazido para dentro, vem tudo explicado em pormenor na Ilíada de Homero…”
.

Não, nada disso vem explicado na Ilíada, ali não consta o cavalo de madeira. Será Ulisses na Odisséia que evocará o estratagema que possibilitou a vitória grega contra os troianos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

.

Alfredo Monte, 46 anos, é natural da Baixada Santista, corinthiano, doutor em teoria literária e literatura comparada, professor apaixonado pelo ensino fundamental e crítico literário do jornal A TRIBUNA de Santos há 19 anos. Mantém o blog literário Monte de Leituras há três anos. E-mail: armonte2001@yahoo.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. Aline T.K.M., Muito bom o texto, gostei bastante do seu ponto de vista. Assisti ao filme e penso que a atmosfera esteve bastante interessante, porém não gostei da maneira como foi colocado o “transtorno” do personagem através da figura da aranha. Gosto da ideia do surreal, mas acho que poderia ter sido melhor explorada, como você bem colocou. No mais, gosto muito do livro; gostei do desenvolvimento dos personagens e gostei da solução de tudo – achei-a irônica, debochada, característica que no filme não captei. Abraço! Livro Lab
    2 julho, 2014 as 21:48

Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook