O heroico, o sagrado e o profano Bandeira


O HEROICO, O SAGRADO E O PROFANO EM MANUEL BANDEIRA

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A literatura sempre reservou um lugar especial à mulher. Retratada de maneira idealizada como as musas da Antiguidade ou de forma mais humana. Exprimindo inclusive desejo, foi representada, ora de uma forma, ora de outra, de acordo com as perspectivas históricas e culturais de cada povo. No Brasil, por conta da forte cristianização, iniciada, principalmente, pelos jesuítas, no século XVI, a predominância é pela representação de mulheres idealizadas, que prefiguram a mãe ou a Virgem Maria, mãe de Deus, e, por isso, de toda Imaculada. Ou das prostitutas, o outro lado da história, execradas, mas sempre úteis ao sistema patriarcal e capitalista, por evitar tensões no casamento, por conta das incursões sexuais dos homens. O sagrado e o profano, o sublime e o desejo, retratados pela literatura.

O termo “prostituta sagrada” representa um paradoxo para a nossa mente ocidental, que dissocia o sexual do divino, fazendo escapar seu significado mais profundo, relacionado à natureza do feminino. Segundo a autora, “natureza feminina, do latim natura, significa nascimento ou universo. ‘Natureza’ implica naquilo que é inato, real, não artificial” (QUALLS-CORBETT, 1990). Estamos, portanto, enfrentando, atualmente, uma grade dicotomia corpo-alma, sagrado-profano, visão oriunda do sistema capitalista em que vivemos. Ao mesmo tempo, angustiante e confusa, tal diferenciação nos impede de compreender como no passado a prostituição poderia ser sagrada, conforme afirma essa autora:

Dentro da evolução da consciência humana, não estamos no mesmo ponto em que estavam as prostitutas sagradas de outrora. Séculos de divisão entre espírito e matéria nos deixaram distantes tanto de compreender quanto de experimentar a matéria como algo sagrado. (IDEM, p. 10)

Quando a deusa do amor ainda era honrada, a prostituta sagrada era virgem no sentido original do termo, pessoa íntegra que servia de mediadora para que a deusa chegasse até a humanidade. Assim, esse livro mostra como nossa vitalidade e alegria de viver dependem de restaurarmos ou não a alma da prostituta sagrada, a fim de nos proporcionar uma nova compreensão da vida. Seria restabelecer o diálogo sagrado-profano que habita em cada um de nós.

Nessa compreensão, o erotismo, por se tratar de assunto polêmico e contestado pela sociedade, como benéfico ou não, é visto por alguns estudiosos como elemento essencial para a completude humana, que se expressa por variados meios, desde o sexo até a arte. Parte da sociedade, partidária de uma ideologia mais conservadora, vê o erotismo como elemento prejudicial às relações humanas, sendo que as expressões mais ousadas do erótico podem vir a ser chamadas pornográficas, termo que carrega uma semântica extremamente negativa. Para esses, o erótico está unicamente ligado ao sexo utilitário, ou seja, àquele cujo objetivo é a reprodução da espécie (LUCENA JR., 2008, p. 1).

Nesse sentido, podemos dizer que predominou, no Brasil, desde o Barroco até o Romantismo, o ideal de mulher santa, imaculada, abnegada, dedicada ao lar, esteio da família e apoio do homem. A mulher que se regozija com as coisas da casa é a mais ditosa de todas, inclusive elogiada na bíblia, no livro do Eclesiastes: “Se você encontrar uma esposa fiel e dedicada achará um tesouro mais valioso que ouro e pedras preciosas” (PR 31, 10)

No romantismo, essa representação atinge seu auge, quando a mulher é colocada num patamar acima dos homens e toda digna de virtudes. Uma mulher admirável, mas inacessível, nenhum homem estaria à altura de possuí-la; ela, portanto, só poderia ser cortejada, cantada em versos, em referência ao amor cortês europeu da Idade Média. Desse modo, o Trovadorismo, portanto, que fincou suas raízes, também, na Península Ibérica, era uma perfeita idealização da mulher. Sendo, geralmente, de classe abastada, ela só era disponível aos menos favorecidos para ser elogiada nas canções de amigos.

Na poesia de Manuel Bandeira, seguindo uma estética modernista e vanguardista, para o início do século XX, ao contrário, a mulher aparece sempre representada de forma erótica; a mulher como fonte de desejo; a mulher carnal, a mulher feminina, mas de uma feminilidade sensual, não maternal, como era cantada, mesmo nessa época, por alguns de seus contemporâneos, a exemplo de Vinícius de Morais, em sua primeira fase católica (BACIU, 1985, p. 54). A essa visão da mulher, do desejo materializado em versos, damos aqui o nome de erotismo poético. Assim, num trecho de “Evocação do Recife”, o poeta descreve o primeiro momento, ainda na infância, em que a mulher aparece como objeto de desejo:

Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado, coração batendo/ Ela se riu/ Foi meu primeiro/alumbramento (BANDEIRA, 1993, p. 135 – grifo nosso)

Alumbramento. É dessa forma que a mulher se apresenta para o poeta e também homem Manuel Bandeira: um ser que se extasia, que “alumbra”. Mas, ao mesmo tempo, a mulher carinhosa, reminiscência das lembranças de sua infância, no reino de Pasárgada – a casa de seu avô materno na Rua da União. Assim, no poema transcrito abaixo, temos, então, um raro trecho que transmite certo apelo filial, um desejo pueril do menino Bandeira:

Eu me deitei no colo da menina/ e ela começou a passar a mão nos meus cabelos”. (BANDEIRA, 1993, p. 135)

Às vezes, porém, esse voyeurismo, essa admiração pueril, toma ares adultos  de erotismo e aparece de forma tão explícita que chega a espantar, como em “Infância”:

Uma noite a menina me tirou a roda de coelho/ saí, me levou, imperiosa e/ ofegante, para um desvão da casa de D. Aninha Viegas, levantou a sainha e disse:/ mete. (BANDEIRA, 1993, p. 208).

Em análise a esse poema, Wilma Martins de Mendonça, em posfácio ao livro Manuel Bandeira, Poeta até o Fim (CERVINSKIS, 2006), destaca esse erotismo materializado de Bandeira, que realiza, através de suas figuras de linguagem, o maior elogio à mulher na literatura brasileira, afastando-o da perspectiva dos românticos da primeira geração, que remetia todas as mulheres à figura materna, como podemos aferir no seguinte trecho:

Em Manuel Bandeira, a mulher deixa de ser romanticamente representada apenas como mãe – a mater dolorosa – emergindo em toda sua sensualidade e plenitude. Como diz André Cervinskis, na poesia de Bandeira, “a mulher aparece sempre de forma erótica, mulher – desejo, mulher carnal”, num claro descompasso com a figura feminina hegemônica no Romantismo. Nessa superação, que se processa dialeticamente pela via da tradição, Bandeira se aproxima da poesia amorosa de um Gonçalves Dias e de um Castro Alves, enquanto rompe com a cristianização do corpo feminino, representando-o como alumbramento poético e viril, tecendo, em meio à sua poética, o maior elogio feito ao corpo da mulher em nossa literatura (MENDONÇA 2006, p. 117).

Aliás, a mulher bandeiriana quase nunca evoca a figura da mãe. Essa quase ausente, em sua poesia, senão lembrada em boa ocasião: o passado com a mãe, com o pai, com o irmão, a família; enfim, a vida anterior que perdera. Essa feminilidade erótica (e de um erotismo elegante, diga-se de passagem), aparece no seu fabuloso Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá”. Poema muito sugestivo, tirado de um cartaz de propaganda e que retrata todas as expectativas do poeta em relação à mulher:

As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam./ Oh, as três mulheres de sabonete Araxá, às 4 horas da tarde!/ O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!./ Que outros, não eu, a pedra cortem/ Para brutais vos adorarem,/ Ó brancaranas azedas,/ Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata/ Ou celestes africanas:/ Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!/ São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Araxá?/ São prostitutas, declamadoras, são acrobatas?/ São as três Marias?/ Meu Deus, serão as três Marias?/ A mais nua é doirada borboleta./ (…)/ Se me perguntassem: queres ser estrela? queres ser rei? queres uma ilha no Pacífico? um bangalô em Copacabana?/ Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca, eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá:/ O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá! (BANDEIRA, 1993, p. 150)

Numa evocação daquela célebre frase de Vinícius: “As feias que me desculpem, mas a beleza é fundamental”, Bandeira dedica um poema à figura feminina com o título “Mulheres”:

Como as mulheres são lindas!/ Inútil pensar que é do vestido”…/ E depois não há só as bonitas:/ Há também as simpáticas./ E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isto:/ Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha./ Como deve ser bom gostar de uma feia!/ O meu amor porém não tem bondade alguma./ É fraco! Fraco!/ Meu Deus, eu amo como as criancinhas (BANDEIRA, 1993, p. 126)

Nessa esteira, nem a representação dos santos foge a esse erotismo poético, em sua obra. Assim, contrariando os tabus sexual-religiosos da época, relacionados com o corpo, Manuel Bandeira relaciona o desejo à santidade no poema Balada à Santa Maria Egipcíaca”  do livro Ritmo Dissoluto (1924). O terceiro, ainda querendo libertar-se do parnasianismo:

Santa Maria Egipcíaca seguia/ Em peregrinação à terra do Senhor./ Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir./ Santa Maria Egipcíaca chegou/ À beira de um grande rio./ Era tão longe a outra margem!/ E estava junto à ribanceira,/ Num barco,/ Um homem de olhar duro./ Santa Maria Egipcíaca rogou:/ Leva-me ao outro lado./ Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe./ O homem duro fitou-a sem dó./ Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir./ Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe./ Leva-me ao outro lado./ O homem duro escarneceu: – Não tens dinheiro, /mulher, mas tens teu corpo. Dá-me o teu corpo, e vou levar-te/ E fez um gesto. E a santa sorriu,/ Na graça divins, ao gesto que ele fez./ Santa Maria Egipcíaca despiu/ O manto, e entregou ao barqueiro/ A santidade da sua nudez”.

(BANDEIRA, 1993, p. 106).

A história de Santa Maria Egipcíaca (c. 344 – c. 421 ou 422) é instigante. Maria do Egito, antes de cumprir doze anos de idade e levada por seu amor à liberdade, decidiu ir embora de casa. Era uma garota que não sabia controlar suas paixões e caiu na prostituição, à qual se dedicou por 17 anos de sua vida. Contudo, não fazia isso por interesse ou por dinheiro, mas por gosto. Ninguém conseguiu persuadi-la a não seguir esse caminho. Ao contrário, houve muitas tentações para cair e permanecer. Certo dia, decidiu juntar-se a um grupo o de peregrinos que se dirigiam à Terra Santa, movida pela curiosidade (alguns alertam, porém, que Maria queria também desviar peregrinos de suas intenções puras, dormindo com eles.) Além disso, devido a uma licença poética do poeta (mas que reflete sua história), ela pagou a passagem com o próprio corpo, prostituindo-se com os marinheiros. Depois disso, Maria decidiu cumprir sua promessa e se retirou ao deserto, onde levou uma vida de intensa oração e amizade com Deus. Mas esse tempo não foi tão fácil para ela, já que durante 17 anos foi tentada a continuar com a vida de antes. Todavia, confiando no amor de Nossa Senhora, ela obtinha forças para resistir. Muito tempo depois, o abade Zózimo a encontrou ali e levou-lhe à comunhão.  Após isto, combinaram para ver-se algum tempo depois para que Maria recebesse de novo a comunhão; porém quando o abade Zózimo regressou, encontrou-a morta, no deserto, numa sexta-feira da paixão (SANTA MARIA EGIPCÍACA, 2017).

A principal fonte de informação sobre Santa Maria do Egito é Vita, escrita por Sofrónio, patriarca de Jerusalém (634 – 638). Muitos escritos a ela se referem como prostituta, durante esse período, mas, Sofrónio, na sua obra Vita, afirma que se negou, frequentemente, a aceitar o dinheiro oferecido em troca dos seus favores sexuais. Terá sido, segundo a hagiografia, impulsionada por «um desejo insaciável e uma imparável paixão». Na mesma linha, a Vita expõe que vivia, principalmente, da mendicidade, trabalhando na fiação de linho (NAVEIRA, 2002). Na verdade, o mio dessa santa está algo no meio, entre o sagrado e o profano, a mulher prostituta e santa, ao mesmo tempo em que se entregou a diversos santos e a Deus de maneira absoluta.

Alguns críticos relacionam Santa Maria Egipcíaca a Maria Magdalena, mas há algumas diferenças: Maria se entregou aos homens porque quis, tinha prazer nisso. Depois, se converteu e, segundo o poema de Bandeira, nunca deixou de se prostituir, completamente, pois se entregou ao barqueiro em troca de uma passagem de barco para seguir a Jerusalém. Lucas 8,2 diz-nos que, entre as mulheres que seguiam Jesus e o assistiam com seus bens, estava Maria Magdalena, ou seja, uma mulher chamada Maria, que era originária de Migdal NunayahTariquea, em grego, uma pequena povoação junto ao lago da Galileia, a 5,5 km ao norte de Tiberíades. Dela, Jesus havia expulsado sete demônios (Lc. 8,2; Mc. 16,9). Essa mulher, que muitos relacionam como a que lavou os pés de Jesus, na passagem de Lucas (Lc. 7,36-50), em sua visita à casa de Simão, na verdade, depois de conhecer o senhor, sendo, inclusive, sua primeira testemunha da ressurreição e só se entregou a Deus em oração, levando uma vida condizente com os santos.

Maria Egipcíaca é um mito forte da igreja antiga. É venerada como patrona das mulheres penitentes, em especial na Igreja Copta, mas, também, na Igreja Católica, Anglicana e Ortodoxa. Esta última celebra sua data festiva em seu «descanso», dia 1 de abril, e no “Domingo de Santa Maria do Egito“, o sexto domingo da Grande Quaresma (NAVEIRA, 2002).

Mas Manuel Bandeira não foi o único a fazer intertextualidade, referir-se a essa narrativa hagiográfica: a vida dessa santa chamou a atenção, também, de mais duas escritoras modernistas: Rachel de Queiroz e Cecília Meireles.

Em 1957, Cecília Meireles compunha “Oratório de Santa Maria Egipcíaca”, para fechar o tríptico, composto por “Pequeno Oratório de Santa Clara” e “Romance de Santa Cecília”, os três  publicados num mesmo volume, em 1996. Católica fervorosa, apaixonada pela vida dos santos, Cecília achou, no Flor Sanctorum, livro medieval sobre vidas de santos, sua motivação maior para esse poema. Dialogando com a voz mística, Deus, em direção a Alexandria, assim proclama a santa:

Não há fogo no céu nascente/ não há fogo de sol ardente/ que se compare à labareda minha./ Olha os meus braços que seguem na minha frente, finas/ cordas de seda muito seguras,/ olha o meu vasto cabelo sombrio,/ que é uma vela redonda de noite e de vento./ Olha o meu corpo como um navio/ cortando as horas escuras/ e a louca espuma fosforescente…/ Olha na minha boca o mel das tamareiras… (MEIRELES, 1996, p. 34)

Segundo Naveira (2002), Maria Egipcíaca, a que fugiu de casa para ir a Alexandria se prostituir, é, portanto, “inconsciente da divindade inerente à matéria” e manipula sua sexualidade para preencher o seu ego, para justificar sua luxúria e licenciosidade sexual. Somente quando encontrar o amor genuíno poderá viver sua verdade. Este amor poderá acontecer por meio de outro ser humano ou por meio da aproximação com o divino, com o Crucificado, enunciado pela Voz Mística (NAVEIRA, 2002, p. 61). Essa, portanto, é uma perspectiva ascensional, de conversão, enfatizada por Cecília, mas menos compartilhada por Queiroz e Bandeira, como veremos a seguir.

Em “A Beata Maria do Egito”, Queiroz faz como que uma adaptação à peregrinação da santa, unindo-a à história de Padre Cícero Romão, que incentivou, no Ceará, no começo do século XX, quase que um governo paralelo, a exemplo da Guerra do Contestado, em Santa Catarina. e Canudos, na Bahia. Um texto dramatúrgico-narrativo, em que a identidade do sertão está arraigada e há um diálogo constante entre a santa do Egito e os sertanejos da região de Juazeiro do Norte,  no Ceará. O nome dessa peça foi a sua principal personagem: era uma beata, seguidora de Padre Cícero, homônima à santa do Egito, não displicentemente.

Em resumo, numa determinada época de sua vida, padre Cícero dedicou-se à política. Assim, em 1913, ele cria em Juazeiro, no Ceará, um tipo de governo municipal, que agrada muito ao povo, mas Franco Rabelo era presidente do estado do Ceará e tentou a ferro e fogo impedir padre. Cícero de governar. Gerou-se daí um grande conflito da população, liderado por uma beata, seguidora de padre Cícero: Maria do Egito, contra o governo Franco Rabelo.   Toda a culpa recaiu sobre Maria do Egito. O coronel Chico Lopes, a mando de Franco Rabelo, obriga o delegado da cidadezinha a intimar e prender a beata. Depois de interrogada e após muitos argumentos dados, o tenente soube que as forças políticas foram derrotadas pelos populares, no primeiro enfrentamento em Juazeiro, prende-a acusando-a de chefiar fanáticos contra o governo. Após prender Maria do Egito, o tenente ficou sentindo um incômodo muito grande. Sua vida resumia-se a fumar e vigiar a presa. A beata, na cadeia, contava apenas com sua fé e a bondade do cabo Lucas, sujeito simples, que não crê na culpa da beata, mas nada pode fazer por ela, pois é pau-mandado do tenente, que lhe depositava plena confiança. Certo dia, após um pedido dela, cabo Lucas levou um recado aos romeiros, no qual a beata disse: “não ataquem a delegacia, pois logo tudo se resolverá e serei solta”. Após o recado dado, em uma noite, o tenente ouve uma conversa do cabo com a beata, descobrindo tudo. Ficou irado e diz que perdera a confiança no cabo Lucas. Manda-o sair da carceragem, falando que jamais soltaria a beata, pois seu trabalho era fazer cumprir a ordem, a qual ela descumpriu. Após longa conversa com a beata, o tenente confessou-se a ela, segredando que todo o incômodo que sentia era amor, pois havia se apaixonado por ela, desde a primeira vez que a vira e que se ela o aceitasse lhe daria o mundo. A beata fez-lhe um pedido de soltura e ele deu-lhe a entender um sim. Maria, em um ato de pagamento, entrega-se ao tenente naquela noite. De manhã, o tenente radiante de felicidade, vai ver Maria, que lhe pediu a liberdade, pois tem pressa, pois padre. Cícero corria perigo em Juazeiro. O tenente não entende nada e pergunta a ela se não se lembrava da noite que passaram juntos. Ela disse que sim, mas, se aquele era o preço de sua liberdade, já havia pagado e queria que ele cumprisse o trato. O tenente sentiu-se enganado e a beata também. Depois da decepção, o tenente falara que jamais a soltaria para guerrear. O tempo passava e a beata continuava presa. Os romeiros prepararam o ataque à delegacia para resgatar a santa deles. Coronel Chico Lopes e soldados da delegacia, vendo que não resistiriam àquela guerra, passam para o lado dos romeiros. O tenente, entretsnto, resistiu e continuou com a ideia de jamais deixar a beata seguir os romeiros. Os romeiros atacaram a delegacia. O tenente não viu saída e fez a beata de refém. Cabo Lucas, não vendo outra maneira de a santa beata sair viva, matou o tenente com dois golpes de faca. Maria deu glória a Deus e ficou livre para cumprir junto aos romeiros a missão de salvar o padre Cícero.

Como percebemos, através desses breves resumos e comentários, a visão de Cecília Meireles e Rachel de Queiroz exalta, respectivamente, o lado heroico no sentido cristão, como santa convertida (Meireles) ou como líder político-revolucionária, heroica mesmo (Queiroz), no sentido que Joseph Campbell explica muito bem:

O herói é aquele que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo. […] na essência, pode-se dizer que não existe senão um herói mítico, arquetípico, cuja vida se multiplicou em réplicas, em muitas terras, muitos povos. Um herói lendário é normalmente o fundador de algo, o fundador de uma nova era, de uma nova religião, uma nova cidade, uma nova modalidade de vida. Para fundar algo novo, ele deve abandonar o velho e partir em busca da ideia-semente, a ideia germinal que tenha potencialidade de fazer aflorar aquele algo novo (CAMPBELL, 1990, p. 131.145)

Percebemos isso, perfeitamente, nos exemplos citados. Mesmo no sentido de Cecília Meireles (santa), o caráter heroico apresenta-se ao enfatizar a figura de uma santa convertida, que enfrentou, certamente, discriminações sociais e as agruras do deserto, voltando-se para as coisas do alto, através dos sacramentos (a comunhão que o abade Zózimo veio dar-lhe por duas ocasiões). Embora a Maria Egipcíaca, de Rachel de Queiroz, tenha agido, bravamente, contra as forças do Estado, sendo presa inclusive por isso e dando seu corpo como passaporte de liberdade, da mesma forma que a santa original se deu ao barqueiro, em desmerecer os méritos literários, que não subvertem a história nem questionam a sexualidade e a santidade de Maria do Egito. Não chegam a dessacralizar o papel dos santos nem questionam sua pureza, fazendo um contraponto entre o sagrado e o profano.

Manuel Bandeira, diferentemente dessas autoras, inovou, na visão que tinha de Maria do Egito. Prefere trabalhar os aspectos humanos dela, não desmerecendo os heroicos. Ao trabalhar o tema da recaída dessa santa, no citado poema, o poeta questiona o dogma da virgindade como condição sine qua non para a santidade. Desse modo, Manuel  Bandeira desmitifica Santa Maria Egipcíaca, fazendo-a deixar de ser a mulher intocável. Com isso, Bandeira desmitifica o mito. Procura, através da imagem de uma santa católica, tornar a mulher que representa em sua poesia mais humana, objeto de prazer, em que o homem passa a matar o seu desejo (CERVINSKIS, 2006, p. 14). Dando seu corpo em troca do óbolo do barqueiro, Maria evoca a prostituição sagrada, que usa do corpo com objetivos religiosos; no caso, a continuidade de sua peregrinação, jornada de arrependimento e conversão.

Também, percebemos o erotismo de modo discreto nesses versos. Ao responder afirmativamente, ao gesto obsceno do barqueiro, despindo-se, demonstrou o lado humano dos santos, que também caem em tentação. Mostrou que sexo e espiritualidade andam juntos e nos acompanham por toda vida. Bandeira aproximou Maria do Egito do destino de todos nós.

Essa maneira humana e de intimidade com os santos não deve ser, contudo, surpresa para o leitor. Noutro livro, falando sobre a religiosidade em Manuel Bandeira, (CERVINSKIS, 2008), demonstramos como, através do uso de diminutivo e coloquial com os santos católicos, Bandeira empreende esse movimento de aproximação dos fieis com esses baluartes da fé, como podemos observar em “O anjo de guarda” e em “Oração a Santa Terezinha do Menino Jesus”:

Quando minha irmã morreu/ (Devia ter sido assim)/ Um anjo moreno, violento e bom – brasileiro/ Veio ficar ao pé de mim./ O meu anjo da guarda sorriu/ E voltou para junto do Senhor./ Quer a alegria? Me dá alegria,/ Santa Teresa!/ Santa Teresa não Teresinha…/ Teresinha… Teresinha…/ Teresinha do Menino Jesus” (BANDEIRA, 1993 p. 138).

A devoção aos anjos, aliás, é recorrente em diversos poemas, como conotações explicitamente religiosas ou não (“A Estrela e o anjo”, p. 164; “Jacqueline”, p. 157), como no Acalanto a John Talbot : “Dorme, meu filhinho,/ Dorme sossegado/ (…) O anjinho da guarda/ que o Senhor te deu,/ Pode adormecer/Pode descansar/ Que te guardo eu” (BANDEIRA, 1993, p. 181). No poema Oração a Santa Teresa (BANDEIRA, 1993, p. 304), a relação do poeta com Teresa, a Grande, é expressa nos seguintes versos:

Santa Teresa olhai por nós/ Moradores de Santa Teresa/ (…) Antigamente, o bonde era no largo da Carioca atrás do chafariz/ Na estação tinha uma casa de frutas/ Onde o chefe de família/ Podia comprar a quarta de manteiga de sal/ a lata de biscoitos Aimoré/ a língua do Rio Grande/ O homem das balas recebia recados, guardava embrulhos/ De vez em quando havia um desastre na manobra do reboque/(…) rogai pelos tísicos/ Rogai pelos cardíacos/ Rogai pelos tabéticos/ Rogai pela gente de fôlego curto/ Rogai por mim e pelo pintor Artur Lucas/ (…) Nos fundos do Teatro Lírico/ Tem um mictório/ Rogai pelas donzelas do morro obrigadas a passar diariamente em frente ao [mictório/ Santa Teresa rogai por nós/ Moradores de Santa Teresa/ Estamos comendo da banda podre/ Faz um ano”.

Como vimos, Bandeira apresenta a uma de suas santas de predileção (a outra é Santa Teresinha) pedidos simples (comprara lata de biscoitos Aimoré) ou “a quarta de manteiga de sal”), de uma maneira coloquial, usando termos populares (‘comendo da banda podre”). Não reza somente por si (“tísicos’, “gente de pouco fôlego” – Bandeira era tuberculoso), mas, também, por outros infelizes: cardíacos, tabéticos (que sofrem de sífilis da medula espinhal) e até por um amigo, Artur Lucas.

Numa outra leitura, numa perspectiva de gênero, poderíamos, também, ler esse poema numa visão nitidamente machista, em que a figura da mulher é apresentada de forma passiva, cedendo ao pedido do barqueiro. Não obstante isso, a santa sobrepõe à pureza a satisfação de desejo alheio, e, nisso, o seu próprio. Ou seja, não foi um estupro, mas uma troca, uma entrega. Embora um tanto pressionada, santa poderia ter se recusado a isso. Inclusive, há outra versão da história, capitaneada por Cecília Meireles, em seu oratório, em que, voluntariamente, Maria segue o caminho de Jerusalém para tentar os peregrinos com seduções, fazendo-os pecar na carne e afastando-os do objetivo da peregrinação, ou seja, o arrependimento.

Estimulados pela grandeza moral e intrepidez dos santos, que tudo enfrentaram em respeito a seus ideais religiosos, os autores modernistas, aqui expostos, de diferentes gerações, inocularam, porém, sua marca autoral e visão de mundo, através das releituras do mito de Santa Maria Egipcíaca. Se Raquel de Queiroz e Cecília Meireles dão ênfase à sua saga de heroína ou convertida (religiosa), Manuel Bandeira prefere aproximá-la de nós, simples mortais, que, não obstante boas intenções ou desejos ascéticos, deixamos resvalar, em desejos tão humanos e instintivos quanto o sexual, justificando ou não, como Maria do Egito, essa atitude, em nome de um bem maior.

Essa desmitificação de Manuel Bandeira, de certa forma, torna Santa Maria um pouco o que eram os deuses gregos para os homens: criaturas imortais, mas com defeitos  tais quais os humanos. Se isso não os torna menores do que são aos olhos da história, certamente nos sentiremos mais reconfortados por enxergarmos, nessa santa, um pouco de nós, acreditando ainda ser possível, pela força do Alto e de nossa vontade, ascendermos a degraus superiores da humanidade (ou santidade).

 

 

 

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REFERÊNCIAS

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 34.ª edição, Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

CERVINSKIS, André. Manuel Bandeira, poeta até o fim. 2.ª edição, Recife: Livro Rápido, 2006.

___. A representação do feminino em Manuel Bandeira. Artigo.http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Textos/Anais/ABRALIN_2009_vol_2/PDF-VOL2/Microsoft%20Word%20-%20Andr%C3%A9%20Cervinskis.pdf. Acesso em 20 de julho de 2017.

____. A identidade do Brasil em Manuel Bandeira. Recife: Livro Rápido, 2008.

MENDONÇA, Wilma Martins. O Bandeira de André Cervinskis. In: CERVINSKIS, André. Manuel Bandeira, poeta até o fim. 2.ª edição, Olinda: Livro Rápido, 2006.

NAVEIRA, Raquel. Maria Egipcíaca. Campo Grande: UCDB, 2002.

 

 

 

 

 

 

 

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André Cervinskis é jornalista, ensaísta, mestre em Linguística pela UFPB. Produtor cultural, com vários projetos aprovados pelo FUNCULTURA-PE na área de Literatura. Com várias premiações nacionais e internacionais, tem 13 livros publicados em autoria própria e coautoria. Colabora com o site Interpoética e o jornal U-carboreto, ambos de Pernambuco, e o periódico Correio das Artes na Paraíba. Mora em Olinda-PE e teve avós lituanos. E-mail: acervinskis@gmail.com




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