O erro poético


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O erro pode ser fonte de criação e de fagulha poética. Até mesmo o erro produzido por ignorância ou desinformação. João Saldanha contou numa crônica a discussão que viu num ônibus entre dois sujeitos e um deles afirmava com veemência: “Você é um indivíduo sem crepúsculo!”. Se eu ouvisse isso, ficaria maravilhado com a finura de percepção poética do litigante. Um indivíduo que não tem crepúsculo é decerto um indivíduo que não conhece sutilezas, transições… Uma beleza, se bem que Saldanha adverte que o cara na verdade quis dizer “sem escrúpulos”. Não muito diferente do locutor de uma rádio de Campina que escutei, após a conquista de um título pelo Treze, berrar entusiasmado ao microfone: “A torcida do Galo está comemorando enfurecida!”  Pelo contexto, acho que ele quis dizer “eufórica”, mas euforia é assim, às vezes ela se sabota a si mesma.

Em outras situações de erros desse tipo – quando estamos ouvindo, e não falando – a palavra que entendemos mal cria um ruído em nossa mente e nosso primeiro esforço é para corrigir esse ruído, transformando a palavra que não faz sentido em algo que nos é familiar. Uma vez eu estava no aeroporto e havia umas senhoras idosas, visivelmente novatas em voos aéreos, pedindo explicações sobre como proceder para embarcar. A moça da empresa disse a uma: “Primeiro, a senhora precisa fazer o check-in”, e mostrou um bilhete de embarque que tinha na mão. A senhora voltou para junto das amigas e disse: “Ele disse que tem que fazer o chequinho, tem que ir ao balcão e pegar aquele chequinho ali” – e macacos me mordam se naquele tempo um bilhete de embarque não tinha mesmo o formato de um cheque bancário.

Philip K. Dick dizia que nossa mente tem sede de sentido, sede de que as coisas tenham significado, de que o inexplicável possa ser explicado, não importa como.  Em outra situação, vi duas pessoas novatas tentando acessar um saite na Web.  Uma delas disse: “Eles falaram que a gente tem que clicar nesse espaçozinho ali em cima e escrever a URL.” A outra, estranhando: “A o quê?” “A URL, foi o que eles disseram.” (Como se sabe, URL quer dizer ‘Uniform Resource Locator”, é aquele endereço começando por “http” que a gente digita para chegar onde quer chegar.) A outra num esforço de tradução, perguntou, intrigada: “A arruela?…”, e fez com os dedos a forma circular do objeto. E a primeira, visivelmente aliviada, repetiu o gesto e disse: “Sim!  A arruela! É como um link!”. E é desse jeito que acabamos chegando ao destino certo por vias tortas, e mesmo virando à direita ao sair da porta podemos dar a volta ao quarteirão e chegar no prédio vizinho à nossa esquerda. Tipo assim.

 

 

 

 

 

 

 

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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail:btavares13@terra.com.br




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