O começo da história


 

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E assim se começa uma história…

 

Como é que se começa uma história? Talvez uma das coisas mais difíceis em escrever ficção para crianças, jovens ou adultos é como começar um texto. A primeira palavra, frase, a primeira voz, o primeiro encontro, o primeiro som, ruído que irá ser causado entre leitor e autor é, sem dúvida, um grande desafio para muitos escritores.

Quando escrevo para crianças quero, num primeiro momento, conquistar o leitor, no sentido de trazê-lo comigo para efetivar o mergulho em meu universo imaginário, encantá-lo se possível com esse convite, com essa história que tomei de empréstimo, e com essas primeiras palavras me preparo para operar um sequestro poético. Quero que ele me acompanhe nessa jornada. Para narrar.

Das histórias que li para pequenos e jovens leitores e me capturaram desde o princípio, aqui estão alguns exemplos que considero de mestres. E creio, também tenham apanhado o leitor de todas as idades:

“Um dia o rei ficou surdo. Não como uma porta, mas como uma janela de dois batentes. Ouvia tudo do lado esquerdo, do direito não ouvia nada”. (Marina Colasanti, in: As notícias e o mel)

“Em sua busca do legendário país da Bobolândia, o gracejólogo e absurdônomo de fama internacional, Estanislau Toquinho, certo dia descobriu, no meio do oceano, uma ilha que não constava de nenhum mapa”. (Michael Ende, in: Espirrapé e Beijanariz)

“Era uma vez Pinóquio. Mas não aquele do livro de Pinóquio, um outro. Era feito de madeira também, mas não era o mesmo. Não tinha sido feito por Gepeto, tinha se feito sozinho”. (Gianni Rodari, in: Pinóquio, o esperto)

“Sob a palma de uma das mãos, o menino se conscientizou da crosta de um velho corte no joelho. Curvou-se para frente a fim de examiná-la de perto. Uma crosta sempre foi uma coisa fascinante, significava um desafio especial ao qual ele jamais conseguiria resistir”. (Roald Dahl, in: O desejo).

“Nunca tinham cortado o cabelo dela. Nem mesmo para aparar as pontas. Margarida não queria. Por isso ele era tão comprido. Compridíssimo. Sua trança preta chegava a dar a volta no quarteirão”. (Elsa Bornemann, in: Uma trança muito comprida)

“Na terra de Ingary, onde coisas como botas-de-sete-léguas e mantos de invisibilidade existem, é um verdadeiro infortúnio ser a mais velha de três irmãs. Todos sabem que é você que vai sofrer o primeiro, e maior, fracasso se as três saírem em busca da sorte”. (Diana Wynne Jones, in: O castelo animado)

“Um gato nunca pensaria em fincar as garras no rosto de uma pessoa e ficar pendurado ali: uma pata em cada bochecha. Não é confortável para eles”. (Índigo, in: Hormônios assassinos).

“Nasci com água no cérebro.

Tudo bem, esta não é exatamente a verdade. De fato, nasci com excesso de fluido cerebroespinhal dentro do crânio. Mas fluido cerebroespinhal é apenas um jeito elegante de os médicos se referirem à graxa dos miolos”. (Sherman Alexei, in: Diário absolutamente verdadeiro de um índio de meio expediente)

“Enquanto o Pequeno Polegar, abandonado na floresta, semeava pedrinhas para depois poder achar o caminho de volta, nem desconfiava que estava sendo seguido por uma avestruz que devorava suas pedrinhas, uma por uma”. (Jacques Prévert, in: A avestruz).

“Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer. Logo eu! que não tenho coragem de matar uma coisa viva! Até deixo de matar uma barata ou outra”. (Clarice Lispector, in: A mulher que matou os peixes)

Esses começos dizem ao jovem leitor que a partir do início da leitura, estaremos juntos: leitor/autor/palavra em um acordo mútuo. São trechos de inícios de histórias que nos tomam da realidade ordinária para o imaginário do escritor. Mas que, de alguma maneira, deixam em nós uma vontade de seguir adiante com aquela narrativa. Somos capturados pelo COMO foi escrito aquilo que sendo dito numa conversa informal perderia o interesse. Essa possibilidade de começar a contar e prender o leitor remonta a ancestralidade dos primeiros contadores de histórias, assim como da busca pela qualidade literária do texto. O que se dá pela escrita em comunhão com o imaginário.

E é assim que se começa a contar uma história. E é assim que se escrevem histórias para crianças e jovens; o escritor na mediação do encontro entre leitor e palavra.

 

 

 

 

 

 

 

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Marcelo Maluf é escritor, apanhador de palavras dançarinas e terapeuta corporal. Mestre em Artes pela UNESP. Medita no metrô e dança com sua sombra. Escreveu as novelas infantojuvenis Meu pai sabe voar (FTD) em parceria com Daniela Pinotti, Jorge do pântano que fica logo ali (FTD), organizou a antologia de contos Era uma vez para Sempre (TERRACOTA). Seu mais recente trabalho é o livro de contos Esquece tudo agora (TERRACOTA, 2012). Bloga em http://www.marcelomaluf.blogspot.com E-mail: malufmarcelo@gmail.com




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