Nuvens de outro hemisfério


.

Nathalie Handal tem origem palestina. Passou parte da infância e juventude na America Latina e na França, estudou na Inglaterra e Estados Unidos, e hoje vive nos Estados Unidos, entre viagens e residências na Europa e na America Latina e visitas frequentes ao mundo árabe. Transita entre francês, inglês, espanhol, árabe… A poesia de Nathalie Handal tem esse tom universal que capta o campo magnético de uma humanidade que se liga por fios frágeis e raízes profundas. Uma espécie de síntese de uma experiência cuja identidade tem um pouco de oriente e de ocidente, de sul e de norte, um olhar acostumado a reconhecer igualmente cotidianos de opulência e miséria, que sabe, por experiência, o que é paz e o que é guerra. Sua poesia não poderia deixar de ter um tom épico, que só uma consciência em contato com nossas bases milenares, é capaz de acessar. É como se a poeta estivesse sempre observando o seu próprio mundo a partir dos pontos de vista de outros mundos. Como se estivesse sempre em trânsito, olhando para outro hemisfério.

Nos poemas que se seguem, ela olha para o Brasil, e encontra ali os pontos de intersecção com a literatura latino-americana e com o seu transitório mundo árabe. Eu estive com a Nathalie Handal em Porto Alegre durante o Fórum Social Mundial em 2005, acompanhando uma delegação de poetas convidados pela revista Rattapallax. Desde então, tenho visto o nascimento de tantos poemas a partir de experiências como esta integrarem os novos livros de Nathalie Handal. Estes fazem parte do livro bilíngüe inglês/espanhol The Invisible Star/La Estrella Invisible. Sua obra inclui ensaios, peças de teatro, premiadas antologias de poesia árabe, e os livros de poemas The Republics (vencedor do prêmio Virginia Faulkner por Excellence in Writing), o sucesso de crítica Poet in Andalucia e Love and Strange Horses (vencedor da medalha de ouro do Independent Publisher Book Award), entre outros. Mais poemas, resenhas e informações no site http://www.nathaliehandal.com/

.

 

.

Nuvens na Estação de Trem em Porto Alegre

Elas não trabalham acima das cidades:

Quando há nuvens não há́ cidades.

Ferreira Gullar


.

Olhamos rápido para o ponto em que deixamos as nuvens
como se não conseguíssemos lembrar quem somos sem elas

como se as cidades precisassem dessa explicação
de por que os tetos colidem com os céus

por que quando amamos demais
e partimos bruscamente

as estrelas
desmancham nossa alma

Não sabíamos
que não podemos roubar a chuva
mas que poderíamos perdê-la?
.

.
.
Clouds in Porto Alegre Train Station

Elas não trabalham acima das cidades:

Quando há nuvens não há́ cidades.

Ferreira Gullar

 

We looked urgently for where we left the clouds
as if we couldn’t remember who we are without them

as if cities need their explanation
on why ceilings clash with skies

why when we love hardly
and leave brusquely

stars
dismantle our soul

didn’t we know
that we can’t steal rain but could lose it.

 

***

.

Beit

Sorver, papar: que comida mais cheirosa, mais profunda
no seu tronco luso-árabe, e que bebida mas santa
que a todos nos une em um tal centímano glutão, parlapatão e bonzão!

Carlos Drummond de Andrade, “A Mesa”

 

 

Sonho com uma casa onde os fantasmas estão quietos
onde seus contornos são como um som no escuro,

bem definido e sem forma,
aonde convidarei todos que conheço

e aqueles que ainda não conheci—
Será que eles virão?

Pedirei para que peguem um ramo
de árvore e sentem em torno da mesa—

cada folha, uma matriz
vinda dos cananeus ou dos gregos—

Estranhas são as luzes que insistem
em manter as paredes unidas

mas elas as mantêm—não?
Será que eles virão?

Será que virão em silêncio
de todas as direções de um quarto

e me contarão a única história que quero ouvir—
aquela de uma casa num campo, intacta

com uma gruta que dá esperança
a todas as formas do universo?
.

*Beit significa “casa” em árabe.

 

 

Beit

Sorver, papar: que comida mais cheirosa, mais profunda
no seu tronco luso-árabe, e que bebida mas santa
que a todos nos une em um tal centímano glutão, parlapatão e bonzão!

Carlos Drummond de Andrade, “A Mesa”

 

 

I dream of a house where the ghosts are quiet
where their shape is like a sound in black,

well-defined and formless,
where I will invite everyone I know

and those I haven’t met yet—
Will they come?

I will tell them to take a branch
from a tree and sit around the table—

in each leaf, an ancient pattern
from the Canaanites or the Greeks—

Strange are the lights that insist
on holding the walls together

but they do—don’t they?
Will they come?

Will they move silently
in all directions of one room

and tell me the only story I want to hear—
that of a house in a country intact

with a grotto that gives hope
all the shapes of the universe?

*Beit means “house” in Arabic.

 

 

** Poemas publicados com autorização da autora. Poems published with the author’s autorization.

 

 

 

 

 

 

.

Flávia Rocha nasceu em São Paulo em 1974. Jornalista, trabalhou nas redações das revistasBravo!, República e Carta Capital, e  Casa Vogue, entre outras publicações. É autora dos livros de poemas A Casa Azul ao Meio-dia (Travessa dos Editores, 2005) e Quartos Habitáveis (Confraria do Vento, 2011). Tem mestrado em Criação Literária pela Columbia University e é uma das editoras da revista literária americana Rattapallax. Editou antologias de poesia brasileira para as revistas Rattapallax (EUA), Poetry Wales (País de Gales) e Papertiger (Austrália). Fundou, com Steven Richter, a Academia Internacional de Cinema, onde desenvolveu o curso de Criação Literária coordenado pela escritora Veronica Stigger. E-mail: flavia@aicinema.com.br




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook