Novas Críticas


 

Um estudo raro e fundamental sobre linhas de força da crítica literária brasileira volta às estantes, após ser revista, aumentado e atualizada por sua autora.

Vista das Musas no Trópico – De Volta à Crítica da Crítica é a reedição do livro Sobre a crítica literária brasileira no último meio século, que Leda Tenório da Motta apresentou há 15 anos.

 

 

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NOTA PRÉVIA

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Sobre a crítica literária brasileira no último meio século
foi publicado há quase quinze anos, em 2002. Então, dando consequência a pesquisas fomentadas, vinha encaminhar a seguinte verificação: naquela altura dos acontecimentos, tínhamos estados da arte de nossa crítica oitocentista, aquela dita da escola do Recife, tão fixada no apontamento de um estilo tropical, mas não tínhamos uma crítica da crítica a incidir sobre o presente, no entanto rico em debates acalorados. Assim, a proposta era reconhecer e estudar as lógicas metodológicas de duas correntes principais, praticamente contemporâneas, levando-se em conta suas respectivas fundações, que estavam em ação, entre nós desde os meados do século XX. As mesmas eram assim entendidas, como principais, malgrado os diferentes sucessos de estima, não apenas pela envergadura de suas produções mas pelos confrontos em que se envolviam, atuando desde diferentes lugares de pertencimento: estes e aqueles jornais, editoras, universidades. Tratava-se do círculo de Antonio Candido, pertencente às cátedras do estado e precedido dessa mesma autoridade, e do círculo de Haroldo de Campos, formação de poetas excêntrica em relação à doxa escolar, ainda que dois de seus representantes fossem professores, e percebida como estranha à cor local. Para muito além do apontamento da gentil arte de fazer inimigos, em que porta-vozes das duas linhas se esmeravam, a ideia era encaminhar uma reflexão sobre o amadurecimento, em meio à controvérsia, de nossas práticas disciplinares do comentário literário, um dia batizadas nossa “musa retardatária” por um professor hoje esquecido, da primeira escola, Alexandre Eulálio.

Da recepção obtida fez parte uma resenha elaborada num desses diferentes lugares de pertencimento, o reduto do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Ao eleger a obra central de Roberto Schwarz como principal alvo – dispôs-se a escrever o editor, à época, da revista Novos Estudos CEBRAP, apontando o centro e falando em alvo –, a autora deixa claro que almeja uma interlocução capaz de lhe granjear igual importância no campo, ainda que no polo oposto. O empreendimento – sublinhava ele ainda – é característico de uma corrente em crise de legitimidade. (Flávio Rosa de Moura, Tempo social, volume 23, n. 2, São Paulo, novembro de 2011). A corrente a que se referia era a dos concretistas e a hipótese da crise de legitimidade apoiava-se na certeza, muito própria daquela época e de semelhantes cercanias, de que o concretismo perdia a face, sendo como era, desde o início, uma impostura. Dentro dessas perspectivas, para o perfeito manejador do tique sociológico, a autora inscrevia-se de imediato no vanguardismo inócuo e o sentido oculto e último de seu trabalho só podia ser a ambição corporativa. Estendia-se a ela, desse modo, a mesma acusação que vinha sendo feita, mais ou menos desde sempre, aos concretos, suspeitos de gravitar em volta de expectativas de prestígio, reivindicando a posição de ponta a qualquer preço. Estava na vulgata do tempo. Tanto assim que a acusação é lavrada em termos muito semelhantes aos do sociólogo Pierre Bourdieu, quando a examinar o caso Racine, outra querela entre espíritos e universidades, a Sorbonne e a École Pratique, instigada, alguns decênios antes, por um volume explosivo de Roland Barthes, de título breve, incisivo e certamente reivindicador do lugar de seu autor no campo: Sur Racine. Debruçado sobre o barulho criado em torno do livro, não é que Pierre Bourdieu já escrevia, em seu livro Homo academicus, é bem verdade que mais democraticamente, distribuindo o senso da vaidade por todas as partes, que os mandarins sorbonistas e os pequenos heresiarcas barthesianos eram todos aspirantes encarniçados ao poder?

Renomeada Vista das musas no trópico, em alusão a um belo título de Cabrera Infante, de salutar verve paródica – Vista do amanhecer no trópico –, esta edição revista e aumentada corrige a referência da edição original a um lapso de tempo já revolto, o último meio século que se queria considerar. Nesse movimento, aproveita para ironizar a presunção de um estilo tropical que seria próprio dos construtos intelectuais de nossas latitudes, tese oriunda do bojo da Escola do Recife, plataforma de lançamento do Candido autor de O método crítico de Silvio Romero. Acrescentam-se aqui três novos capítulos, mais ou menos recentes, a um conjunto anterior de ensaios que giravam em torno de questões como: os nascimentos das plataformas Clima e Noigandres; um famoso affaire envolvendo um poema chamado “pós-tudo”; as diferenças dos tratamentos dados aqui e ali a literaturas de alto voo como as de Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade; o retorno do Haroldo de Campos vanguardista às rimas dantescas e a Homero. Sempre interessados em métodos de leitura, critérios de eleição do cânone, constituição das nomeadas, os capítulos acrescentados diversificam o quadro anterior introduzindo artigos acerca do desprezo da crítica uspiana pela miscigenação de Jorge Amado, acerca de uma biografia de Clarice Lispector por um norte-americano chamadoBenjamin Moser, que reduz a obra da biografada à vida, e acerca das cumplicidades, por vezes não imediatamente visíveis, entre estes dois novos críticos que são Haroldo e Barthes. O livro envereda assim por novos argumentos para continuar encaminhando a mesma pretensão: não a de medir forças com o campo, em que a autora se sentia e se sente posta, por simplesmente realizar trabalho de pesquisa, mas a de medir diferenças, a de apreciar a elegância das equações jogadas na roda, a de ousar preferir também aquelas formulações a estas.

O diferencial das chamadas novas críticas é sutil. Formulando-se no interior de dispositivos que não os da Sociologia positiva – essa triste ciência, como a chama Roberto Calasso, em Folie Baudelaire, relembrando a investida de Proust contra Sainte-Beuve, que não percebeu Baudelaire –, entendem que as obras de criação revelam-se em referência umas às outras. Não como nos enquadramentos evolutivos, que vão do início para o fim. De vez que não se joga aí com nenhuma certeza das origens estáveis, nem com nenhuma euforia do progresso, ainda que se conceba o gozo da retomada. Mas dentro das perspectivas do entrecruzamento, da interpenetração horizontal dos textos, que são aquelas abraçadas pelos amigos da intertextualidade, como diria Roberto Schwarz, que não tem amigos. Algumas investidas intertextuais notáveis distinguiram, no século XX, grandes críticos-escritores. Jorge Luis Borges assombrou-nos vendo marcas anacrônicas de Kafka urdindo em textos anteriores aos do próprio Kafka. Barthes reencontrou marcas da mentalidade contemporânea em seu Racine não historiográfico mas antropológico. Foi na mesma esteira que, nesta outra obra explosiva que é O sequestro do barroco na Formação da Literatura Brasileira –, Haroldo de Campos viu Gregório de Matos insuflando a literatura brasileira moderna, não obstante o poeta atuasse numa colônia portuguesa iletrada, anterior ao nascimento do público e à noção de nação, vetores da lógica formativa.

Se esta nova publicação acrescenta algo ao volume anterior, é talvez a verificação de que a razão do lugar – e seu monumentalizado corolário: as ideias fora do lugar –, perderam força explicativa, junto com as prevenções acadêmicas gauchistas. A ideia de que a literatura é sua circunstância parece nada mais ter de óbvia ou inocente aos nossos olhos, quinze anos depois que foi dito do poema “pós-tudo” de Augusto de Campos que manifestava o caráter postiço, inautêntico, imitado da vida cultural que levamos. De fato, passamos a desconfiar mais seriamente, de lá para, graças aos belos aportes das Histórias sincrônicas – voltadas às ressurgências, aos anais, aos arquivos abertos –, que foram tomando o lugar das Histórias teleológicas–positivistas,hegelianas, marxistas –, que as artes não nascem nunca, recomeçam a cada volta. Georges Didi-Huberman está se baseando, agora mesmo, nessa hipótese para pensar, no interior de sua colossal história da arte, que o “passado” não é o “trespassado”, que não existe a beleza antiga para sempre finda, como na crônica vasariana, que não teremos terminado nunca, enfim, de fazer o luto da Grécia. O Barthes que tira os estudos racinianos da alçada da vie de Racine ou do tempo – no singular e com minúscula – para pô-los na dimensão dos Tempo – no plural e com maiúscula –, já mostrava que sabia alguma coisa disso. A esparrela virtuosa da literatura afinada com o meio e a hora – essa mesma que faz de Chico Buarque o mocinho e Caetano Veloso o bandido – esquece que Goethe acolheu Shakespeare e a poesia persa e a philia Baudelaire recebeu Edgar Poe, muito antes que a civilidade haroldiana viesse a abraçar os provençais, Homero, Dante, Goethe, Mallarmé, pondo a cabeça para fora do campo.

Mas parece também que soa agora de modo mais desassombrado esta nota sulfurosa de Barthes sobre a nova crítica, a que se associa uma outra nota sobre o que seja a própria crítica. Na abertura de Crítica e verdade escreveu ele, retorquindo aos sorbonistas que consideravam inócuo falar dos signos: “o que não se admite é a linguagem que fala da linguagem”.

 

 

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O evento de lançamento

O evento de lançamento será uma récita-improviso a cargo de alguns estudiosos de poética,  como entre outros Marcelo Tápia (Casa das Rosas) e Augusto Contador Borges (USP), com falas  críticas em torno da recepção do poema que foi, nos anos 1980, o objeto de uma verdadeira  batalha estética travada nas páginas do antigo “Folhetim” da Folha de São Paulo, antes de ser recolhida em livros. Vista das musas no trópico dedica a essa controvérsia todo um capítulo.  A ideia é desarmar as tensões,  promovendo  uma celebração poética, quase 30 anos depois. Daí o título “pós-tudo depois de tudo”.

 

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Sobre a autora – Leda Tenório da Motta é professora de comunicação e semiótica da PUC/SP, pesquisadora, tradutora e crítica literária. Estudou com Roland Barthes, Gérard Genette e Julia Kristeva. É doutora e pós-doutora pela Universidade de Paris VII. Mantém a coluna TAL QUAL aqui neste sítio.

 




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