Never more aqui


.

Meia-noite e trinta e sete. A parede novamente batuca seus acordes. E eu acordo novamente, puto da vida. Que porra de vizinha do caralho é essa que cisma em lavar a merda da louça de madrugada? Eu já havia dito pra aquela vaca que eu não consigo dormir com ela fazendo barulho na cozinha a essa hora. Vou ter que tocar de novo no porteiro, que deve estar babando o terceiro sono, e mandar interfonar na caverna da vagabunda.

– Sim, seu Mário, eu toco lá, pode deixar.

Dali a alguns segundos, o interfone geme.

– Oi!

– Seu Mário, ela disse que não pode fazer nada, que ela paga o condomínio e tem direito de usar o apartamento dela do jeito que ela quiser.

Ah, lavadeira do rio Letes!

– Falô, companheiro, deixa que eu cuido disso.

E a orquestra filarmônica do Ed. Campos Elíseos continuava. Pra que que eu fui morar num apartamento cuja parede do quarto é a mesma da parede da cozinha de uma louca já cinquentona, loura fake, que veste roupinhas apertadinhas de adolescente com furor anal? Puta que pariu, se eu tivesse comido aquilo quando ela se insinuou pra mim, quem sabe eu não estaria passando por esse perrengue acústico.

Abro a janela do meu quarto, vejo a área de serviço dela aberta. Pego uma vassoura e bato na janela de vidro. O ruído do outro lado cessa. Bato outra vez. A louca aparece na janela, assustada como uma arara loura despenteada.

Dá o pé, psitacídea do caralho!

– Que merda é essa?

Que vontade de encher de Omo essa goela nojenta!

– Dá pra parar essa porra desse barulho. Eu preciso dormir.

Ela bate a janela com toda a força daqueles braços pelancudos. Um vizinho do prédio em frente aparece na janela da sala, me olhando com cara de nenhuns amigos. Faltou pouco preu mandá-lo à merda. Mas o sujeito, que mostrava os braços numa regata apertadinha, parecia bem maior do que eu e eu não poderia correr o risco de ser surrado na rua bem na frente do meu porteiro e do dele. Fechei minha janela. Delicadamente.

E agora?

Meia-noite e cinquenta e nove.

Toco no porteiro de novo. Agora ele demora um pouco mais pra atender. Filho da puta, vai dormir lá na porra da tua maloca, caralho!

– Sim, seu Mário!

– Toca lá e diz que eu vou chamar a polícia, ok?

– Sim, seu Mário, pode deixar.

Dali a pouco:

– Seu Mário, ela disse que o senhor pode fazer o que quiser que ela não tem medo, não.

– Valeu! Ela vai ver o que é bom pra tosse bovina.

Vai ver o quê, Mário? Porra, tu tá há tanto tempo metido nesse enrosco e não resolveu porra nenhuma, não vai ser agora que…

Desci até a portaria, atravessando elevadoristicamente os nove círculos do meu inferno particular. Peguei o interfone e toquei no antro demoníaco.

– Sim, que tu quer, porra!

– Oi, sou eu, teu vizinho que não consegue dormir. Tudo bem contigo?, eu disse, com voz cinicamente suave.

– Vai à merda!, ela disse, com aquela voz de cachaceira, já a ponto de arrumar um câncer (que os anjos digam amém!) na garganta alcoolicamente modificada.

– Olha, eu queria conversar contigo, na boa, que cê acha?

– Vai dormir!

Caralho, aquilo fez minhas gônadas subirem até as orelhas!

Mas tentei me acalmar. Visualizei a rã do Bashô se estatelando na água em câmera lenta e fiquei zen.

– Pô, vamo lá, vamo conversar que nem gente grande. Eu levo um vinho, ok?

– Vinho uma porra, tem cerveja?

– Tenho, é claro. Estupidamente gelada! Tô subindo, valeu?

Ela bateu o interfone vigorosamente na minha cara. Ah, ainda enfio esse interfone nesse cu estupidamente arrombado!

Subo, pego a merda da cerveja e vou até o apê dela.

Ela veste uma camisola rosa-choque com umas borboletas amarelinhas. Agora eu já tinha material para os meus pesadelos daquela noite. Se eu conseguisse dormir, é claro.

– Então, tu quer o que comigo?, ela disse, fazendo charminho, enquanto borboletas produziam ciclones no meu estômago.

– Conversar, só isso, te explicar o porquê da minha irritação e tentar encontrar um jeitinho da gente se entender… e de eu dormir.

– Olha, eu não faço nada de errado, só que não tenho tempo de lavar louça de dia. Eu trabalho, pô, ela disse, fazendo cara de coitadinha.

Fico imaginando no que essa vagabunda trabalha…

– Eu entendo, eu entendo. Também trabalho de dia e tenho pouco tempo pra cuidar da casa.

Mentira deslavada. De dia, fico lendo um monte de gente morta, cujo talento me dá vontade de rasgar o cu de inveja, e coçando dorivalcaymmianamente o saco, enquanto espero a grana do meu velho pingar na conta corrente. O máximo que tento fazer é escrever algumas porcas linhas pro meu projeto de romancista bissexto.

– Então, o que cê quer que eu faça?

Eu pensei em dizer pra ela se jogar da porra do nono andar ou se enforcar com o próprio intestino grosso.

– Não sei… E se eu achar alguém pra lavar a tua louça?

– Mas eu não tenho um puto pra pagar empregada, caralho!

– Deixa qu’eu pago.

– Ah, se tu pagar, tudo bem!

Fodeu. Lá se vai parte da mixaria que meu velho manda pro “vagabundo do seu filho”, como ele costuma dizer quando minha mãe tenta convencê-lo de que o filho dela é um talento que ainda não foi devidamente reconhecido e que, quando ele virar um escritor famoso, desses que ganham o Jabuti, o pai dele vai se arrepender amarguíssimamente. Ah, minha querida mãe, como eu queria ter sua fé!

– Então, vamos comemorar.

Abro a garrafa de cerveja, encho o copo e percebo que ela se aproxima perigosamente de mim com seu hálito de vaca velha regurgitando capim podre.

– Sabe, eu nunca quis brigar contigo. Tu sempre me pareceu tão simpático! E tem um sorriso lindo.

Fodeu. E olha que ela ainda nem começou a beber.

– Brigado. Toma o copo. Essa é boa. Conhece? É estrangeira.

– Eine…quem?

Ela bebe olhando por cima do copo na direção dos meus olhos. Minha vontade era dar um tapa naquela cara e fazer aqueles olhos, emoldurados por rugas escrotais, saltarem das órbitas e se espatifarem no teto como meteoros na atmosfera terrestre.

Mas eu, como sempre, sorrio.

A musa amarfanhada encosta o corpo flácido em mim. Tento me esquivar, sorrindo. Por que caralhos eu tenho que sorrir numa hora dessas? Ela se encosta mais, segura meu braço e diz: Gosto de ti.

Puta que pariu! Que mal eu fiz a são Jorge? Eu devo ter jogado pedra na cruz e passado a mão na bunda da Maria, só pode.

Tento me safar, fingindo querer encher o copo de cerveja. Ela vem atrás, me abraça pelas costas e sinto o bafo de cadela velha esquentar minha orelha e perfurar minha sinusite. Minha vontade foi vomitar toda minha bílis no copo da loura encarqueirada.

– Olha, acho que já tá tarde. Amanhã a gente conversa sobre a empregada, ok? Boa noite.

– Não, fica mais um pouquinho, meu querido. Descansa aqui. Aquele teu quarto deve ter más energias.

Só faltava essa, a vagabunda agora é esotérica.

– Desculpa, mas eu vou ter que acordar cedo amanhã.

– Eu te acordo, meu bem, com mil beijinhos.

Segurei o engulho pelo rabo.

– Não vai dar, sorry.

– Ãhn?

É claro que ela não entende inglês, sua besta.

– Fica, vai.

E agora?

– Faz o seguinte: amanhã à noite eu venho aqui pra gente comemorar a vinda da empregada, ok?

Ela fez um biquinho, mais enrugado que saco de cágado no mais tenebroso inverno siberiano.

– Tá bom, mas não vai faltar, meu lindo.

– Não, tá combinado.

Acelerei o passo na direção da porta. Ela veio atrás, com as perninhas de carnes molengas, quase correndo. Abriu a porta, pôs o corpo na frente e pediu um beijo de boa noite.

Porra, é muito pro culhãozinho estouradíssimo de um só!

Sorri de novo. Aquele sorriso de mona retardada que não consigo evitar. Só por esse sorriso eu já devia ter sido deserdado pelo meu pai.

Dei um beijo na maçã podre dela, que carregava o cheiro da maquiagem barata tipo Lojas Americanas.

Ela sorriu e pediu outro, mais “caliente”.

Caralho! Eu preferiria estar no inferno e ficar com o cu calientemente esturricado do que estar defronte a esse mapa do inferno sem esperança de Virgílio.

Sorri. E fui dar um beijinho na outra maçãzinha medonha.

Ela virou o rosto e me beijou na boca.

Prendi a salsicha Perdigão que comi no almoço pouco antes de chegar na campainha. The nojo! The nojo!

Ela se afastou e começou a abrir a camisola. Eu fingi que tinha entrado no clima, dei um drible de corpo nas borboletinhas e saí pela porta, assistindo novamente aquele biquinho grotesco apontado pra mim.

Corri pro meu apartamento, sentei na cama, respirei fundo. Olhei pra parede, peguei uma caneta marca-texto com a ponta bem grossa e escrevi, com letras bem grandes e vermelhas: “Never more aqui, Paulo!”

No dia seguinte, acordei bem cedo (o que o desespero não faz?), liguei pra minha mãe e disse que precisava urgentemente arrumar outro apê pra alugar.

Meu pai, com os colhões cobertos de razão, vociferava ao lado do telefone: “Vagabundo!”

 

 

 

 

 

 

 

.

Paulo de Toledo (Santos/SP, 1970) é poeta. Publicou 51 Mendicantos (Ed. Éblis, 2007, Porto Alegre). Venceu o V Projeto Nascente (USP/Ed. Abril). Tem poemas, contos, traduções e ensaios em vários sites de arte e literatura e nas revistas Babel, Sítio, Coyote, Cult e nos jornais Augusto, Casulo e Correio das Artes. Participou da edição crítica de “Catatau” (ed. Travessa dos Editores), obra de Paulo Leminski. Alimenta um blog de estimação:http://paulodtoledo.blog.uol.com.br E-mail: paulodtoledo@uol.com.br

 




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook