Musa paradisiaca


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Os editores da página de cultura Musa paradisiaca, que originalmente era publicada nos jornais diários Gazeta do Povo, de Curitiba, e A Notícia, de Joinville organizaram uma antologia com uma seleção de entrevistas e matérias de tradução no período de 1995 a 2000. O resultado é um catatau belíssimo de 688 páginas.

Os responsáveis por esta publicação importantíssima são Josely Vianna, poeta e tradutora, e o artista plástico Francisco Faria. Além das letras, portanto, as artes visuais também foram contempladas em seleção de Faria que também era o responsável pelo desenho gráfico da página.

O que podemos contemplar nas páginas é o resultado de um jornalismo cultural de alto nível, que confesso, me deixou de queixo caído. Como nos sugere Luis Dolhnikoff em sua apresentação do livro, um jornalismo cultural autoral e fundamental em nossos dias rasteiros e mercadológicos.

O título da página e do livro já revela o timbre do projeto. Musa paradisiaca é como cientificamente costuma ser denominada nossa fruta mais característica: a banana. Além das relações que tal fruta evoca (Carmem Miranda, chanchadas, carnaval, quadros de pintores viajantes) sua simbologia nos leva mais adiante, como pontua Dolhnikoff:

…a assunção do símbolo da banana, com tal carga evocativa, bem como sua nomeação em linguagem científica, apontam para a virada antropofágica e, a partir daí, para o modernismo e a modernidade. Modernidade problemática, evidentemente. O que a ironia aqui imposta ao nome científico da fruta traduz e sintetiza: essa modernidade que é a grande `musa` de si mesma e que, de paradisíaca, não tem absolutamente nada.

A Musa com seu canto elaborou um amplo painel da criação artística brasileira, e também hispano-americana, possibilitando que os criadores debatessem a própria criação neste momento histórico.

Pegando o mote das entrevistas da Musa, que deram voz a vários artistas, convidei escritores múltiplos para compor comigo um bate-papo polifônico com os musos da Musa. O resultado foi encantatório e originalmente publicado no site Cronópios, que editei até meados de 2009. Inicio aqui um trabalho de recuperação das coisas mais bacanas produzidas em outros sítios.

 

 

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BATE-PAPO POLIFÔNICO COM OS ORGANIZADORES DO LIVRO MUSA PARADISIACA

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Tarso de Melo:
Qual a imagem que vocês imaginam ter composto, na teia dos depoimentos e avaliações que fez a Musa paradisiaca, da produção artística contemporânea?

Josely Vianna Baptista: É tão boa a imagem que o poeta Luis Dolhnikoff escolheu para título de sua apresentação da Musa – “Larga janela para um nebuloso horizonte” -, que passo, de início, a palavra a ele: “Abrir janelas talvez não seja tão difícil quanto ajudar a desenhar uma nova paisagem, como o fez a página de Mário Faustino. Mas pode ser igualmente relevante, dependendo das circunstâncias, que são soberanas: principalmente se, ao contrário de antes, quando a velha paisagem precisava ser redesenhada, agora uma complexa paisagem mutante esquiva-se em ser enquadrada – que dirá observada. Saber a partir de que ponto instalar a janela e, desde aí, poder abri-la o mais larga possível, sem que desmorone, não é tarefa para qualquer arquiteto”. (A página de Faustino a que Luis se refere é “Poesia-experiência”, editada no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil entre 1956 e 1958).

Foi um pouco dessa “complexa paisagem mutante” que tentamos registrar na Musa. Não à toa, uma outra imagem que me vem à cabeça quando penso no conjunto das páginas e no impulso que as originou é a de um Shiva mosaico e museico de muitos braços, um deus destruidor que preside também a criação e a procriação, e que pode ter muitas formas, como uma floresta dos trópicos modificando sua espessura noite e dia. (Mosaico por seu desenho variegado, e museico por tentar reunir fotogramas exemplares da memória de um momento.)
Aliás, foi da noite para o dia que a publicação da página foi interrompida, por motivos internos ao jornal, completando a já por natureza incontornável incompletude do mosaico museico. Era Carnaval, e na época achei uma pena, pois estávamos começando a esboçar uma pauta que, além de continuar trabalhando com poetas e artistas do Brasil, ampliava o espaço para as culturas ameríndias e para a participação de norte e de centro-americanos. Algumas pessoas, que me lembram Flaubert com sua “mania de querer concluir”, me perguntam se ficou faltando alguém na Musa… E então lembro que a banana, que não tem sementes, é fruto de uma árvore cujo caule é um rizoma (do grego rhízoma: `aquilo que está enraizado`; havendo também rizomas aéreos). Um rizoma subterrâneo, de cuja úmida penumbra novas musáceas solares continuam se desembainhando. Enfim…

Não cabe falar aqui das outras alusões que a imagem da banana, a musa paradisiaca, traz em seu alforje, da forte e também mutante carga simbólica que a liga à cultura do Brasil, em particular, e das Américas, em geral (isso para não sairmos do continente). Importa dizer que aqui seu uso vem carregado de uma ironia típica de uma “modernidade problemática”. Uma ironia que – como o Luis apontou com perspicácia na apresentação do livro -, “aqui imposta ao nome científico da fruta, traduz e sintetiza essa modernidade que é a grande `musa` de si mesma e que, de paradisíaca, não tem absolutamente nada”. E aí estamos, com nossas tempestades no paraíso.

Francisco Faria: Houve constantemente, na época em que fazíamos a página de cultura, uma preocupação nossa em ir construindo um painel amplo e coeso, procurando dar ao leitor uma idéia de como determinadas questões se articulavam entre pessoas que se dedicavam a um trabalho cultural, tanto no Brasil quanto no mundo ibero-americano. Mas, além disso, consideramos a importância de deixar claro ao leitor que havia diferenças e que essas diferenças eram significantes e importantes. Numa palavra, procuramos mostrar como se podia trabalhar em conjunto e, simultaneamente, preservar as características individuais de cada trabalho, sem que fosse necessário colocar tudo sob um rótulo ou um programa estético. A Josely também criou, aliás, a imagem de “moradas provisórias”, espaços que são ocupados por pessoas diferentes em momentos diferentes. É um desenho bem dinâmico, bem pessoal e autônomo.

Marcelo Tapia: A Musa calou-se para sempre?

Francisco Faria: Sim, Marcelo; a Musa foi um projeto pensado numa época específica, e embora tenha terminado antes do previsto, não haveria condição de retomar esse projeto hoje em dia. Além das condições de sua produção terem sido, elas também, bastante específicas. Já o “espírito” da Musa, esse leque sempre aberto e inclusivo de questões e abordagens, está em pleno desdobramento. A Mirabilia, nossa editora, é conseqüência disso; e os projetos editoriais que desenvolvemos para a editora mantêm esse perfil.

Edson Cruz: Onde fica o paraíso da Musa?

Francisco Faria: Na arte, na cultura de uma criatividade múltipla, diversa e dispersa, imantada por diversas conexões espontâneas e impermanentes. A importância desses diálogos não-programáticos é e será cada vez mais essencial para estabelecer um novo paradigma à cultura contemporânea; um olhar mais tolerante, com “variações focais de identidades que se desdobram de forma não-homogênea”, como disse a Heloísa Buarque de Hollanda na orelha do livro, com a recusa dos nexos causais em favor da valorização do acaso, da surpresa e do improvável.

Marcelo Tapia: Por que a opção, Josely, tão marcante em sua atividade criadora, pela literatura hispano-americana?

Josely Vianna Baptista: Por sua diversidade, por sua originalidade, pelo contraponto que estabelece, em seus melhores momentos, a uma visão de mundo eurocêntrica, que praticamente desconsidera o viço polimorfo das culturas das Américas ou tem dele uma visão equivocada. Mas esse interesse não é excludente; adoro Shakespeare e Flaubert e Dante, para ficar apenas com o exemplo óbvio de três autores clássicos que me acodem à memória.

Cláudio Daniel: Josely, a Musa paradisiaca publicou entrevistas e traduções de poetas latino-americanos contemporâneos, como Coral Bracho, Reynaldo Jiménez e José Kozer, contribuindo para divulgá-los junto aos leitores brasileiros. Em sua opinião, está havendo algo similar na América de língua espanhola, ou seja, um interesse crescente pela poesia brasileira? Será o início de um intercâmbio mais rico entre os dois idiomas e literaturas?

Josely Vianna Baptista: Sim, parece estar se intensificando uma via de mão dupla nesse sentido. Isso se nota principalmente em revistas e sites de poesia do Brasil e da América Hispânica, onde poetas traduzem poetas numa quantidade nunca antes vista. A web tem um papel importante aí, naturalmente, dissolvendo, de certo modo, as ilhas em que todos nós estávamos (se me permite a redundância) isolados. Hoje as “ilhas” são moventes e comunicantes. Mas esse trânsito não significa, e é preciso ficar atento a isso, que textos e traduções tenham qualidade. Tem muita gente se “exercitando” na web, e mostrando seus exercícios como num reality show, por assim dizer, e para não fugir do campo semântico da(s) rede(s)…

Francisco Faria: Olha, só para ficar num exemplo caseiro, e ter matéria para reflexão: um dos livros recentes de poemas da Josely, Os Poros Flóridos, ainda não encontrou editor no Brasil, mas já foi publicado na íntegra no México, pela Editorial Aldus, em 2002. E saiu completo, bilíngüe, ilustrado e com contribuições crítico-criativas de Horácio Costa, Lúcia Santaella e Affonso Ávila.

Marcelo Tapia: Na apresentação ao livro Musa paradisiaca, Luis Dolhnikoff fala em um “`fator` barroco” que indicaria algo comum às culturas do subcontinente hispano-americano. Como vocês definiriam – ou descreveriam – esse fator?

Francisco Faria: A questão do barroco nas Américas tem, para mim, um significado mais simbólico e menos formal. O “barroco” latino-americano tem uma história de ter virado pelo avesso o programa cultural europeu, aquele com que chegou ao Novo Mundo, e de tê-lo transformado num tipo de espaço cultural em que uma personalidade própria e de resistência pôde ser acolhida. Então, ele cria um certo impulso, com uma determinada carga simbólica. Nesse sentido, a coisa mais legal é a ênfase na importância da preservação da diversidade cultural, de suas peculiaridades, e, ao mesmo tempo, o uso dessa diversidade como um motor para o diálogo e uma interação mais dinâmica e estimulante. Isso é, claramente, uma coisa nova, uma espécie de programa cultural extraordinário, sem manifesto e sem gerente, que aporta em questões como a tolerância, o convívio de diferenças, e o poder renovador em se jogar com o acaso, e não contra ele. Nesse sentido é que eu acho que gente como Caetano e o próprio Gilberto Gil têm razão em dizer que nós temos alguma coisa original para oferecer ao mundo hoje em dia. Principalmente para um mundo que tão velozmente se dirige para o precipício da intolerância, da xenofobia e do etnocentrismo, de ações preventivas e unilaterais.

Josely Vianna Baptista: Também acho, Marcelo. E, tentando jogar outras luzinhas sobre esse fator barroco entre nós, talvez eu possa compartilhar aqui a leitura que fiz do livro Barroco e modernidade, da Irlemar Chiampi, que ajuda a organizar e a elucidar essa questão toda. Propondo-se rastrear os sintomas do que chama de “síndrome barroca” na América, ela investiga os principais momentos de reciclagem do Barroco – visto como “encruzilhada estética e cultural que originou o moderno e o que dali em diante chamamos de literatura“. Mas nem o Barroco histórico (como estilo literário dos Seiscentos, ligado à contra-reforma, à monarquia, e ferramenta de militância eclesiástica), nem o conceito de barroco como ocorrência trans-histórica, (ao modo da “constante artística” de Eugenio D`Ors ou da “vontade de forma” de H. Wölfflin), ocupam lugar central em sua análise. A relação barroco x modernidade é pensada aí para além da habitual dicotomia que nutriu desde sempre os debates acadêmicos sobre o Barroco.

A ancoragem do Barroco na modernidade literária latino-americana (seguindo sua trilha) se dá, de início tímida e temático-ornamentalmente, pelas mãos do poeta nicaragüense Rubén Darío, em pleno modernismo, no final do século XIX (correspondendo, grosso modo, ao nosso simbolismo); depois, em poetas da vanguarda, como no Borges dos manifestos ultraístas dos anos 20, também sem que surja o interesse em reinterpretá-lo a partir de uma visada americana. O terceiro pólo de inserção se dá principalmente com os cubanos Lezama Lima e Carpentier, nas décadas de 1950 e 1960, momento em que o Barroco é reapropriado criticamente. (Note que em 1963, no Brasil, Haroldo de Campos começava a dar à estampa os fragmentos “barroquilíricos” das Galáxias.) A partir dos anos 70, na chamada pós-modernidade, destacam-se as obras de Sarduy – também como teórico do (neo)barroco – e Julián Ríos. (Em 75, por sinal, o Leminski lançava o “barrocodélico” Catatau.) Veja que é ali, nos 50 e 60, que ocorre o ponto de inflexão!

Insuflado pela escritura moderna, e com “extrema consciência da representação” (C. Buci-Glucksmann: La raison baroque), o Barroco alcança, nesse processo de reapropriação, “legibilidade estética” e “legitimação histórica”. Isso se evidencia na proposta moderna, vinculada à busca da identidade cultural, na época em que o léxico desfraldava sem cessar os vocábulos “novo”, “experimental”, “ruptura”, e que tem seu auge no boom dos anos 60. Mais tarde, emergindo do ceticismo causado pelo naufrágio do que Lyotard denomina Grandes Relatos (do Progresso, Humanismo, Ciência, Arte, Sujeito), o neobarroco configura-se na proposta pós-moderna, desconstruindo criticamente, entre outras, a ideologia do consumo e da acumulação na modernidade crepuscular.
Sob os ventos tempestuosos do paraíso, a razão se fratura. Contra o centro, a estabilidade, a totalidade, o neobarroco opõe o excêntrico, a instabilidade, o fragmento. Decepcionando os que deliram ao ver nele resquícios de uma catoliquice renitente ou frivolidades ornamentais, desata a língua derrisória contra as ideologias segregatícias e xenófobas, pondo em cena seu teatro de signos e fazendo um “mimodrama dos tiques literários modernos” (na tradição da “risotada” de Góngora, que com a obscuridade de sua poética deixou desveladas as metáforas clássicas…).

É revolucionário. Só que é preciso se aproximar disso com liberdade, ainda que tardia.

Fabrício Carpinejar: Josely, em Ar e Corpografia, seus primeiros livros, há uma forte tendência de erotizar a escrita como um tecido vivo do corpo. De que forma o neobarroco cubano, especialmente Lezama Lima, a influenciou?

Josely Vianna Baptista: Minha segunda tradução foi a do monumental Paradiso de Lezama. Mergulhei na macrofísica e na microfísica do texto lezamesco com tal impulso que demorei a voltar à tona. Traduzir Paradiso aos vinte e poucos anos, Fabrício, foi uma experiência memorável. Sua noção das eras imaginárias, do acaso concorrente, da história tecida pela imagem, toda sua visão de mundo e sua escritura singulares lançaram “semillas al voleo” na terra virgem de minha linguagem. Tem escritores que são como uma usina: Lezama apertava um interruptor e acendia uma cascata no Ontário (a imagem é dele). Acendeu cataratas em Severo Sarduy e cachoeiras em mim e quedas d`água e despenhos em tantos outros que passaram a ser “monges da religião chamada Lezama” (Sarduy dixit). Eu já tinha um pezinho nesse território em que a linguagem se sensualiza e se ritualiza, transformando-se, às vezes, em personagem de seu próprio espetáculo. Um pouco por minhas inquietações com o conceito de “palavra-alma” da cultura Guarani, um pouco pela curiosidade pelos ritmos rituais e por seu impacto na percepção, um pouco por meus estudos sobre poesia e êxtase, entre outras coisas. Com a presença de Lezama nesse meu percurso, isso se consolidou e se desdobrou. Mas o fato é que sua prosa e sua ensaística me dizem mais do que sua poesia propriamente dita.

Indo um pouco adiante nessa questão, Lezama situa, por exemplo, nosso começo nos Seiscentos, elegendo a estética barroca como eixo do autêntico devir americano. O Barroco seria um legítimo começo por constituir “uma síntese hispano-incaica e hispano-negróide”. Ao barroco da contra-reforma, opõe o barroco como “arte da contraconquista”. A própria América é vista por Lezama como “era imaginária”, configurada quando uma cultura “evapora imagens como revelação encarnada do absoluto”. Espécie de método ideogrâmico, se você me permite a extravagância, elevado à potência infinita da Metáfora, sua teoria das eras imaginárias pensa a imagem como a “última das histórias possíveis” e a história como uma “crônica poetizável de imagens”, regida – no que deixa claro o nariz torcido ao logos hegeliano – pelo “incondicionado poético”, ou seja, aquilo que o poético toma à história, desloca e reinventa. Lezama “americaniza” o Barroco, que considera nossa meta-história, nossa (outra) modernidade permanente. Com Lezama na área, poucos insistiriam na tentativa de fazer das Américas um modelo mal-acabado e farsesco do projeto das razões européias.

Paulo de Toledo: Como o Barroco pode, hoje, contribuir para a criação de uma poesia voltada para a invenção no sentido poundiano?

Josely Vianna Baptista: Na “galeria de tipos” de escritores que Ezra Pound estabeleceu, os “inventores” seriam aqueles que descobrem um ou mais modos ou processos e os “mestres” aqueles que, além de suas próprias invenções, conseguem incorporar a sua própria linguagem, e interpretar poeticamente, “invenções anteriores”. Nesse sentido poundiano, só mestres poderiam beber na fonte de alguma tradição específica e reanimá-la, aí transfigurada e estreitamente entremeada a sua própria singularidade poética. Então, primeiro teríamos que contar com mestres inventores interessados no barroco… E mestres que perseguissem poemas em que significante e significado alcançassem uma liga, poemas em que a melopéia, a fanopéia e a logopéia se amalgamassem para formar um corpo coeso, que tivessem fôlego e ritmo próprios. Pois nessas “três espécies de poesia” estabelecidas por Pound, as qualidades materiais da linguagem são chamadas ao centro da cena. E como um dos traços do barroco (e de suas reencarnações) é justamente a hipervalorização do significante e aquela consciência extrema da representação, no que Pound propõe podemos encontrar pontos de contato com os pressupostos barrocos. Valorização do significante e consciência da representação não são exclusividade do barroco, é claro, mas o é, sim, sua exacerbação. Uma linguagem que se dobra sobre si mesma, uma linguagem cuja forma informa e está indissolúvel e criticamente abraçada a seu conteúdo. Quando digo isso penso naquilo que Pound falou, no breve texto chamado “Só a emoção perdura”, em seu A arte da poesia, sobre “os poucos belos poemas que ainda me ressoam no cérebro”. Penso que começar a prestar atenção nessa liga, nessa conjunção em que o racional não se sobrepõe ao sensual, pode ser um caminho para uma poesia inventiva nos moldes poundianos com refrações talhadas a buril barroco.

Mas a gente poderia então se perguntar de que barroco estamos falando… Do Barroco do Século de Ouro espanhol? Do barroco oriental? Dos barrocos ameríndios? Dos barrocos hipermodernos da urbanidade contemporânea? Como bem lembrou José Kozer em entrevista a Musa, a própria realidade é barroca.
Enfim, acho que o importante, seja qual for o legado cultural de que se lance mão retrospectivamente visando prospecções inovadoras, é que não se percam de vista a paisagem (natural, humana, cultural, política) nem a linguagem circundantes.

Edson Cruz: Em seu livro sobre a literatura brasileira feita hoje, Manuel da Costa Pinto coloca tua poesia, e a de Cláudio Daniel ao lado de Horácio Costa, como sendo uma aclimatação brasileira peculiar do neobarroco latino-americano. O que achas deste enquadramento?

Josely Vianna Baptista: Não li o livro do Manuel. Entendo que ele me aproxime do neobarroco latino-americano, e que isso talvez se deva em grande parte a meu trabalho tradutório com autores que se situam no centro ou nos arredores do chamado neobarroco. Esse enquadramento, no entanto, é restritivo. Minha poesia foi batida por outros ventos, que vêm da cultura Guarani, dos ritmos e vozes encantatórios de culturas ancestrais ou de artistas de vanguarda, do cinema etc. Esses rótulos, colados a uma obra sem que se analise detidamente a fatura dos próprios poemas, acabam mais escondendo do que revelando, como naquela historinha do peixe de Agassiz.

Francisco Faria: Eu gostaria de acrescentar uma coisa. “Enquadramentos”, como você diz Edson, sempre se prestam a razões que escapam ao conteúdo e ao significado da arte. A coisa mais importante que temos hoje a preservar em arte, no sentido lato, é, como eu disse, sua diversidade. Nas artes plásticas no Brasil, por exemplo, é sabido que criou-se uma mitologia acerca do papel do neoconcretismo, e foram construídas teorias de leitura sobre a arte brasileira em geral tomando-se como centro de articulação a arte neoconcreta. Ora, nem os próprios neoconcretistas aceitariam esse “enquadramento”. Hélio Oiticica e outros neoconcretos testaram o rompimento com a moldura e o enquadramento de modo tão factual quanto simbólico. O que ocorre é que a partir do pós-tropicalismo na década dos 70, o que presenciamos foi a lenta dissolução de todos os grupos programáticos, aqueles coletivos artísticos que se guiavam por programas estéticos e por uma intervenção coordenada. Isso produziu, em três décadas, uma grande diversidade, mas, paralelamente, uma dificuldade muito grande de entendimento do panorama cultural brasileiro. Entretanto, tentar criar um entendimento mais coeso desse panorama, fazendo costuras aqui e ali, certamente ajuda a formar um discurso que atende a certos propósitos, sejam eles de mercado (abre-se espaço com isso) ou de política cultural, mas isso está tão distante da arte como uma escultura de Aleijadinho está distante de uma interpretação do Barroco, seja ela a de um Eugenio D`Ors ou a de um Afrânio Coutinho. É preciso nuançar. Se procurar constantes em arte já era um empreendimento arriscado em qualquer época, nos últimos 30 anos a possibilidade disso refletir alguma substância é praticamente nula. Principalmente se partirmos de rótulos que passaram a significar quase qualquer coisa que se queira, como é o caso do “neobarroco”.

Ademir Demarchi: Josely você foi uma grande tradutora de latino-americanos, dezenas de títulos. No entanto, esse trabalho aparentemente diminuiu muito, assim como as editoras praticamente pararam de publicar escritores de língua hispânica, reduzindo-se a uns poucos de sucesso. O que aconteceu? Não há mais escritores como antes? O mercado mudou? O empobrecimento atingiu a todos?

Josely Vianna Baptista: Bem, não acompanho o passo a passo dos lançamentos, então vou falar de minha experiência nessa seara. Meu ritmo de trabalho tem se mantido constante desde que comecei a traduzir profissionalmente, em 85, com fases mais ou menos intensas. Hoje em dia, depois de passar por Carpentier, Cabrera Infante, Lezama Lima, Borges, Alvaro Mutis, Bolívar, Vargas Llosa, Roa Bastos e outros autores importantes, continuo traduzindo “feras” da literatura hispano-americana. No ano passado publiquei pela Mirabilia minha tradução de Vigília do Almirante, do Roa Bastos (que, por sinal, é finalista do Prêmio Jabuti 2004 na categoria de Melhor Tradução). No momento, por exemplo, trabalho em Los ríos profundos, do peruano José María Arguedas, para a Cia. das Letras, e em El astillero, do uruguaio Juan Carlos Onetti, para a Planeta do Brasil (aliás, traduzi recentemente seu romance A vida breve, para a mesma editora). No ano passado tive que dizer não a dois editores que me solicitaram traduções, por falta de tempo. Uma delas era de um livro de Vargas Llosa, outra de um romance de Alejo Carpentier.

Todos esses autores são, no entanto, “clássicos” da literatura hispano-americana. Parece haver menos espaço, o que não é novidade, para os novos. Que, apesar dos pesares, estão aí. Um bom exemplo é o jovem narrador cubano Antonio Ponte, de quem pretendo traduzir e publicar, pela Mirabilia, Corazón de Skitalietz. Um dos próximos lançamentos da Mirabilia, Mapas imaginários sobre Pedra d`água, de Maria Angela Biscaia, trará também minha tradução de um extenso e denso poema do também cubano, e ainda quase desconhecido no Brasil, Rogelio Saunders. Bem, tenho uma longa listinha que não vou esmiuçar aqui…

Tenho percebido um renovado interesse pela literatura da América Hispânica. Dos meados de 2003 até o momento, além daqueles que mencionei acima, três editores diferentes me procuraram para conversar sobre isso, um deles me propondo a organização e tradução de um livro de poemas de Lezama, outro me pedindo sugestões de livros que poderiam ser traduzidos, e outro, ainda, interessado em fazer co-edições no âmbito da Biblioteca Hispano-americana, da Mirabilia (que foi inaugurada com o Vigília do Almirante). Muitas edições não se concretizam mais por entraves infra-estruturais (alheios à qualidade das obras disponíveis) do que por falta de interesse.

Urariano Mota: Na sua opinião, que valor estético possui o que as editoras publicam no Brasil?

Josely Vianna Baptista: Bem, isso varia muito… Há livros bons e livros ruins, como sempre e em todo lugar. Seria impossível responder pontualmente a essa sua questão. Mas, de modo geral, acho que está crescendo, com o aumento do número de editoras, o número de boas publicações, e também a qualidade das traduções.

Marcelo Tapia: Por falar em lugar comum, como você vê a poesia brasileira hoje? Há algum lugar incomum nela?

Josely Vianna Baptista: Sim, alguma poesia de Luis Dolhnikoff. Seu núcleo poético tem amplitude filosófica, densidade matérica e simancol no que toca aos inevitáveis embates com lugares-comuns; tudo isso temperado pelo sol negro da Ironia. Luis tem uma visão obsessivamente ácida e lúcida da poesia brasileira. A importância de sua presença poética no Brasil é inversamente proporcional ao reconhecimento desse fato.

Francisco Faria: A Josely está certa. Estamos falando de um poeta maduro, que tem aí uns 20 anos de janela. O Luis tem um temperamento mercurial e opiniões fundamentadas, quer você concorde com elas ou não, e uma visão do mundo literário inquestionavelmente independente, vive isolado, e talvez isso afete sua recepção. Por outro lado, se vou procurar diálogo cultural, gosto mais de me haver com quem me contraria e me questiona; ambientes auto-indulgentes são tediosos. Por outro lado, sou testemunha de que o Luis sabe dialogar; dizer que já tive com ele discussões acaloradas é eufemismo; nada disso afetou nossa amizade nem meu apreço pela consistência de sua poesia.

Edson Cruz: A prática poética ainda é um diálogo com a tradição ao mesmo tempo que uma busca constante de renovação?

Josely Vianna Baptista: Acho que só se pode buscar o novo visitando o passado e de olho vivo no presente.

Francisco Faria: Eu acho que isso vale não somente para a prática poética, mas para a cultural. E não somente para a cultural, mas para a humana. A cultura e as artes, em especial, são a história do manejo de linguagens (verbais, plásticas, musicais etc); essas linguagens têm um passado que as cimenta, e cabe aos artistas o compromisso de abordar questões do seu tempo, que obviamente jamais foram vividas ou enfrentadas, e, nesse sentido, de procurar o novo.

Marcelo Tapia: (Tendo-se em mira a tão dita função poética:) se você tivesse de escolher, ficaria, hoje, com a poesia mais para a prosa ou mais para o trocadilho?

Josely Vianna Baptista: Se com “poesia mais para a prosa” você quer indicar uma poesia lexicalmente mais exuberante e profusa e sintaticamente mais aberta e flexível do que a que se estrutura num jogo de palavras fechado em si mesmo, posso responder que a escolheria, pois não me avenho muito com “trocadalhos do carilho” e afins. Ainda que a prosa poética ou a poesia prosaica também possam ser trocadilhescas, não?

Quando me aventurei a fazer uma poesia mais “calembúrica”, por assim dizer, nos idos dos 80, o resultado foi uma série de vinhetas que chamei de “haikais néon-barrocos”, que eu imaginava mostrar como poéticos pirilampos (ou pirislogans, para fazer imergir, de afogadilho, uma pocket-word…) perdidos numa noite suja. Já procurar a simplicidade dos pequenos grandes poemas é uma outra aventura, a que poucos sobrevivem. Esses seriam como Ítalo Calvinos da poesia, se é que você entende minha sugestão. Cujos poemas diriam a que vieram com poucas palavras, com uma construção verbal eficiente e sem deixar à mostra seu arcabouço de recursos, como aquelas casas japonesas que, com sua estudada leveza, resistem a terremotos.

Edson Cruz: Na opinião de vocês, por que a produção “verbo-visual” esmaeceu justamente quando vivemos em uma época de valorização sistemática do visual e da informática?

Francisco Faria: Do meu ponto de vista, por sua dificuldade. Dar um significado transcendente ao discurso verbo-visual não é fácil.

Josely Vianna Baptista: Pois é, sei lá… Esmaeceu? Talvez se tenha essa impressão porque aqui no Brasil o Movimento da Poesia Concreta (com tudo o que ele significou, construiu e legou) causou um fragor cujos ecos programáticos há pouco deixaram de se ouvir. Houve aquela fase áurea, que irradiou sua influência e fez crescer essa produção entre nós. Que poeta, entre os nascidos dos anos 50 para cá, não arriscou, ao menos para a gaveta, um poema visual? Não é preciso lembrar que antes dos concretos e em outras latitudes já se fazia poesia verbo-visual, e que ao lado deles ela continua e que mais além ela continuará sendo feita. Quem sabe a facilidade operacional que os novos meios aportam não esteja, num aparente paradoxo, dificultando a criação de bons poemas visuais? Será que, ao relativizarem a importância da “perícia artesanal”, por assim dizer, com suas ferramentas maravilhosas, esses meios não deixem o criador frente a frente com o desafio da página (agora) duplamente em branco? Acho que foi o Décio Pignatari que disse que não se faz uma obra-prima toda segunda-feira. Sei que o Augusto de Campos, entre outros, têm trabalhado sistematicamente na criação de poemas visuais em computador, estudando e testando as possibilidades que se abrem.

Francisco Faria: Há, também, uma confusão entre o que se pode discernir como invenções na área do desenho gráfico e invenções na área da arte “verbo-visual” propriamente dita. Ora, inventar coisas interessantes na área de desenho gráfico é muito mais corriqueiro do que se chegar a um bom poema “verbo-visual”. Como a informática tornou a flexibilidade gráfica uma coisa banal, “invencionices” que se queriam exemplos de arte “verbo-visual” se banalizaram a tal ponto que o interesse pelo meio deixou de fascinar os mais apressados. Foi uma legião de gente que foi simplesmente atropelada pela tecnologia.

Edson Cruz: Há algo de novo e sério no chamado “jornalismo cultural”?

Francisco Faria: Há sim, dependendo do enfoque adotado. O Helmut Baptista, por exemplo, com seu Capacete carioca, mantém ativo um veículo, que é um projeto, muito estimulante. Há várias revistas independentes sendo editadas no momento, e cada uma tem uma característica própria. A Inimigo Rumor, a Sibila, a Coyote, já têm algum tempo de janela, mas há outras. É significativo que esse material tenha passado dos espaços diários dos cadernos de cultura dos jornais para revistas com uma periodicidade maior, bimestrais ou até mesmo semestrais. Há uma coisa que o Chomski fala que é mais ou menos o seguinte: tudo aquilo com que você pode concordar numa leitura rápida ou num noticiário de tevê, é, na verdade, uma confirmação de coisas que você já sabe. Ninguém entende nada novo de um estalo, nem cria um entendimento de algo novo no curto espaço de 3 ou 4 frases. É preciso um espaço de tempo um pouco mais dilatado, artigos um pouco mais bem fundamentados e, até mesmo, uma seqüência temporal de análises que venham se acumulando por algum tempo, para que possamos nos aclimatar às coisas novas que estão surgindo. Principalmente se o panorama tende a uma diversidade tal como a que presenciamos no momento.

Edson Cruz: A internet me parece ainda pouco utilizada como espaço de discussão e criação cultural no Brasil. O que vocês pensam sobre isso e o que há de melhor na web, na opinião de vocês?

Josely Vianna Baptista: Confesso: não navego o suficiente na web pra apontar o que nela existe de melhor. Precisaria de um astrolábio e de um novo portulano para levar a cabo tal tarefa, além de férias da boa e velha biblioteca de Papel, digo, de Babel – fazendo um trocadilho só pra confirmar o que eu disse acima ao Marcelo Tápia… Ainda estou na antesala desses portais maravilhosos e caóticos.

Francisco Faria: Acho que a web já disse a que veio. Como um meio de articulação de pessoas e de projetos é imbatível. Se a web não existisse nós não teríamos conseguido vir viver aqui no interior, como fizemos há 6 anos. Também, há cerca de seis anos, ou mais, o Chris Daniels, poeta e tradutor norte-americano, chegou até o e-mail da Josely por ter visto alguns dos poemas dela publicados no site Popbox, do Elson Froes. A partir de então, desenvolvemos juntos um projeto de edição de um livro nosso pela Manifest Press, uma editora de Berkeley, que veio a ganhar um prêmio do Creative Works Fund de San Francisco. O trabalho demorou três anos para ser finalizado, e foi feito praticamente todo por e-mail. Os ajustes finais demandaram dois meses dele aqui no Brasil. Depois disso, continuamos a desenvolver outros projetos por internet.

Entretanto, eu tenho claro para mim que o que a web trouxe foi a liquidação, no seu interior, daquele horizonte autoral da Modernidade que sobreviveu à carga não da cultura de massas, mas da cultura de mercado. A tecnologia informacional conseguiu, depois dos 80, de forma imprevisível e surpreendente, incorporar o papel do indivíduo ao seu escopo, na forma da criação e sustentação de uma variedade absurda. Ao dar “voz” ao indivíduo que sempre se viu na condição passiva de receptor da mensagem, o novo mundo cibernético coloca numa periferia ainda mais distante os restos daquela linguagem moderna que ainda teimava em restar, a da arte experimental, baseada no conceito de uma invenção “autoral”. Ora, num mundo de “autores”, um a mais ou a menos não faz a menor diferença, e tudo se reduz a uma série de confrarias, que incorporaram a tessitura de redes de contatos e conexões virtuais, mantidas sob os mais extravagantes núcleos de interesse. Disso não resulta nada, porque a regulação do sistema é um fato superior ao aparecimento do autor no interior desse sistema. Somente sendo catapultado para fora desse sistema esse “autor” sobreviverá ao day after de uma lógica que trabalha por asfixia estatística, e que é a mola propulsora do controle do sistema, usando mais variedade para eliminar variedade. Do ponto de vista da arte e da linguagem, o que vale é menos a variedade, um dado quantitativo, e mais a diversidade, um dado qualitativo. A internet traz renovação, ponto. É o império da variedade.

Por outro lado, do ponto de vista da língua, uma língua viva é transformada por seus falantes no dia-a-dia. Que será sempre um universo maior e mais estável do que a internet, pois esta, à medida que a rede se expande, se desnacionaliza, ou seja, perde a base da referência da criação lingüística. A liquidação do autor remete é para outro tipo de questionamento, o da aclimatação de novas utopias de caráter coletivo, por exemplo, como na expansão do uso do copyleft. Nada a ver com criação literária, tal como a entendemos. Além disso, não podemos esquecer que obras literárias de extração coletiva são conhecidas desde a Antiguidade, ou antes, da Antiguidade só se conhecem obras assim; como os textos homéricos, por exemplo.

 

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[Entrevista publicada inicialmente no site Cronópios] [Mais sobre a Musa Paradisiaca, aqui]

 

 

 

 

 




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