Mundos perdidos
.
O MUNDO PERDIDO
a René Magritte
1
Pelo chão meu nojo −
seus pontos de fuga
Um verão chuvoso
em cada fóvea
Não importa o preço
de achar com os
olhos o que falta
2
Dentro do círculo
um mundo perdido
Rasgar a face −
deitá-la na areia
(mais o dom da
palavra)
HOMENAGEM A BERNINI
a George Rickey
Tudo aqui
se insere
numa imagem
curva
Tudo é poro
e adensa
um viver
que vaga
quando
toca um
belo corpo
e ainda falta
um trecho
O SILÊNCIO DE DUCHAMP
a Joseph Beuys
1
Agora que tudo vira
um milagre e o azul
deixa marcas de Prússia −
que a aurora acorda e
o infinito arde em vão −
é que a vida enferruja
2
Na rota dos vagões de
gado, na paisagem de
trapos listrados, no
vapor quente do tempo
é que eu mergulho
e sopro a vida, a levo
embora, pra mais longe −
bem longe
A CHEGADA DO OUTRO
a Jacques Derrida
As palavras
dizem coisas
que, às vezes
não queremos
(nem as temos
para isso)
Calemo-nos
portanto −
aguardemos
em silêncio
o coração
parado, a
pele acesa −
até que algo
ocorra e nos
tornemos
acontecimentos
QUATERNIDADE
1
Quem sou
não sei
: um estilhaço
em que me
sinto, um
giroscópio
em que
me vejo
2
Nunca um
homem −
um nome
já sem gosto −
um rosto
mutilado
3
À parte
então
me ponho
: seco −
sem
inspiração
A ARTE DA CONVERSAÇÃO
a René Magritte
1
E se eu te
falasse de
meus olhos
e dos teus
num quadro
de água
acumulada?
2
Um no outro
: os dois num
laço teso, um
riso e seu
esboço num
limite glacial?
3
E se eu te
falasse que
uma pedra
nos puxa
para baixo
só por puxar?
.
Jorge Lucio de Campos nasceu no Rio de Janeiro (1958). É poeta, ensaísta e professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ESDI/UERJ). Publicou, entre outras, as coletâneas A dor da linguagem, À maneira negra e Prática do azul. E-mails: jluciocampos@globo.com ou jorgeluciocampos@gmail.com
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