Mistério do Futebol


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Que mistério tem o futebol? (Cada um ponha nesse nicho o esporte de sua fatalidade.) Que mistério ele tem para alterar a tal ponto nossa pulsação cardíaca, e digo mais, nosso controle sobre a nossa própria mente?  Por causa de futebol vi cidadãos pacíficos tresloucados, homens honestos fazerem um-em-pé-e-quatro-rodando num instantezinho de distração de alguém (“sofri um pênalte!”), amores se desfazerem, famílias se desmancharem, vizinhanças virarem praças de guerra conflagradas.
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No futebol o atleta faz uma amputação de si próprio, proibindo-se de usar suas extensões mais prestas e mais acostumadas ao uso: braços, mãos, dedos.  Correr sem-braços atrás de uma bola que quica e é chutada, podendo tocar nela só com os pés e a cabeça, parece tortura inventada num campo de concentração grotesco.  Se a beleza da imagem do cinema decorre das limitações do retângulo do “frame”, a beleza do balé futebolístico vem desses braços e mãos que, não podendo colidir materialmente com a bola, viram ectoplasma, asas invisíveis, viram lemes, hélices ou remos de que se vale o atleta em cada um dos voos curtíssimos de que é capaz.
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Viram coice de cavalo, rabanada de baleia. Talvez venha dessa amputação a impaciência das cotoveladas no adversário que assedia, uma reação que o nosso Leonardo celebrizou na Copa de 1994 e que nesta de agora eu já vi duzentas vezes. O braço vive nervoso, não pode fazer nada, a adrenalina é grande e o calor é um inferno, esse braço precisa descarregar em alguma coisa.
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O esporte bretão é um xadrez e um balé.  O balé da cortada que faz o adversário passar deslizando e batido, o balé do voo de tantos metros para dar só o toque de cabeça necessário para o gol, o banho de cuia, o drible da vaca, o elástico, a pedalada, o gol de letra, o gol chorado, o gol do meio da rua. O balé é o jogo dos jogadores, é o duelo entre a técnica de cada um. O xadrez é o jogo dos técnicos, o duelo entre táticas.
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E tem outra dimensão extraordinária do esporte, é sua estrutura dramatúrgica, organizada em disputas específicas com resultados numéricos claros e consensuais. É como um videogame.  Campeonatos, torneios, pontos corridos, mata-mata, tudo servindo de grade para o lado-humano, os craques e os supertimes que surgem, assombram, brilham, e passam.  O futebol nos dá uma certeza de resultados que a vida, essa sim, nos nega sempre. Em campo, a vitória pode ter sido injusta, mas é unanimemente aceita e vira fato. Um a zero é um a zero em qualquer idioma, raça, cultura ou religião. A clareza da disputa dá sustentação às sagas heróicas cuja história está contada naqueles jogos que quem viu não esquece jamais.

 

 

 

 

 

 

 

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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail:btavares13@terra.com.br




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