Mistério das coisas


 

 

MISTÉRIO DAS COISAS

 

misteriosa a suposição sem punhal

misteriosa a raiz sem resultante

misteriosa a bailarina sem gravidade

misteriosa a madrugada sem senha

misteriosa a boca sem destino

misteriosa a fuga sem solidão

misteriosa a compaixão sem ninguém

misteriosa a saudade sem mágoa

misteriosa a cena sem mundo

misteriosa a trajetória sem alcance

misteriosa a sentinela sem cais

misteriosa a rosa-dos-ventos sem primeira pessoa

misteriosa a moça do beijo erudito

misteriosa a metáfora do sagrado

misteriosa a mística do profano

misteriosa a sabedoria popular

misteriosa a razão da fé

misteriosa a invenção da agonia

 

 

.

SEGUNDA NOITE

 

na segunda noite

o poema na forma vernacular

sílabas poéticas

simples cruzadas alternadas

 

temáticas

sobre a inércia sem espírito

sobre o sentimento sem regras

sobre a tradição sem rima

 

jogo e palavras existenciais

à imagem e semelhança sonora dos sapos

 

 

 

 

POEMA DE BORDO

 

I

além do fragmento da práxis, qual o engano? que manuscrito divide o fim e o medo? qual o paradoxo sobrevivente? tudo antes do dilema da pedra no sapato. melodrama da rotina. soluço da mulher no rádio e o teorema do deslocamento da retina.

 

II

a linguagem feroz sem versão. ante-prova original da pedra insone. sob a luz anônima, a linha angular, ferrenha, fanática; a linha esférica, brusca, maiúscula; a linha paralela sanguínea, monumental na luta ótica do espectador. em cada objeto, o exorcismo suburbano.

 

III

séculos diários de interesses mundanos. línguas. alucinógenos. a suplica do idioma de roda. assim, o breve adorno do pão, resto do sabor monossilábico.

 

IV

a laranja vertical intangível. imóvel paisagem e flautas orientais. o desenho caligráfico, enigmático, indicativo do voo do pássaro épico subitamente subterrâneo. o eco piramidal do lado azul da porta.

o murmúrio sem voz na outra parte, trágico.

 

V

musa ecumênica. mistura de tédio e mito. abismo eletrônico idêntico.

apêndice memorial insuficiente. amor de bolso, semântico. pecado poético em transe. tudo fábula.

síntese da água e vinho no colóquio racional. intransponível.

 

 

 

 

POEMA SINTOMÁTICO

 

Canto fragmentário por cidades à fora

Outra música popular

Outra música erudita

Outro rock dog

Outro blues em quando

 

Vanguarda simultânea

Em geral

Notas da paixão sectária

Notas da apoteose serena

Notas do medo embrionário

 

Traçado mental de todos os mistérios

Até a palavra impossibilitada

Até a memória igualitária

Até a coragem pretérita mais que perfeita

Até o vencimento dos tempos

 

Anjos e demônios na superfície

Sem pecado original à sombra do céu

Apenas o dia do refúgio d’alma

E outras preocupações

 

Que razões subjetivas no sonho involuntário?

Que razões subjetivas no signo panfletário?

Que razões subjetivas no poema operário?

 

 

 

 

POEMINAIS

 

depois do milagre das línguas veio o anjo náutico e o cântico sobre dedos gelados que arrancam o rótulo boca a boca e

orientam as curvas da moça bonita na aula de filosofia

algo violentou a diferença da insensatez

algo desprezou o último gelo da última dose

algo banalizou o sentimento da razão

por todas as maneiras a lua do quarto se

ocultou dentro da alma

por todos os modos o resto do

conhaque inundou os desejos azuis

por todos os demais resta submersa a

serenata das alucinações

por todas as coisas a poesia ardeu nos

verbos infiltrados no diagrama do mundo

didaticamente

 

 

 

 

FÁBULA DA CATEDRAL

 

ideia fora de alcance:

desígnio angelical

sem urgência e complacência

sem espera emoldurada

sem chamas terrenas

 

por um momento o grito inacreditável:

uísque com duas pedras de gelo

ninguém à mesa

meias e marcas no tapete encarnado

 

tarde demais:

senhoras ortodoxas nos

anúncios repentinos da catedral

por toda parte

 

 

 

 

CÂNTICO PECADOR

 

muito além da fadiga manual

mentes vorazes renunciam o sentimento original

prenunciam com palavras domésticas o

sacramento da lâmina e da vértebra

 

sem fé no ócio provinciano e compulsório

corpos se dispersam em sinais burlescos

enigmas alinham versos absurdos

tanta coisa revelada no dilúvio oriental

 

a linha convexa não alcançou o verso

o gesto inacabado delira em vão

o ciclo das chuvas findou de repente

o quebra-cabeças sumiu da caixa

 

desta vez

a reza no púlpito sangrou os joelhos das mulheres brancas

 

no dia seguinte

a razão de todos desmarcou o jantar dos pecadores

 

e agora?

 

— chama um táxi, aquilo tudo foi surpreendente

 

 

 

 

A MULTIDÃO E A BAILARINA

 

a multidão minimalista rogou no exato momento que as

almas alegóricas ensaiavam seus destinos aventureiros

inspirou ondulações de prazeres

motivou a lógica do suicídio lúdico

desafiou o lirismo obsoleto do inseto

a multidão maximalista bendisse no exato lugar onde o

ventre em transe dançou para os ancestrais

suscitou assombrações sem substância

subtraiu a saliva mecânica

espalhou segredos contra o vírus cosmopolita

depois a bailarina carmim de pernas transparentes

recitou versos tardios próximo ao cowboy guardião

abalou os nervos dos nativos de salto azul

moveu o laço confidencial sobre o ombro

devagar perdeu-se sem ser vista

reza a lenda que aparece no fabulário do sempre

seguindo o bem-me-que-mal-me-quer da flor madrigal

 

 

 

 

DO OUTRO LADO DO MAR

 

do outro lado do mar

há outra vidente andrógina

do outro lado do mar

há outra princesa trêmula

do outro lado do mar

há outra bruxa romântica

do outro lado do mar

há outra senhora efêmera

do outro lado do mar

há outro mar

o ruído do arco-íris próximo

o ilusório do destino angélico

o ócio da misericórdia analítica

 

 

 

 

ENTRANHAS

 

a boca vadia precedeu o gozo remoto

a bailarina volteou a ciranda vernacular

afrodite sublimou o destino domiciliar

a reza inócua pausou o coração devoto

 

com senso:

– o limite sexual impalpável sob a chuva

– o veneno oculto na gengiva turva

 

sem senso:

– a vigilância no jogo do sinal-da-cruz

– a conspiração à margem das entranhas azuis

 

adiante a peregrina ansiosa

seduziu a carne vã e o corpo sem ambição

mereceu atenção a palavra riscada no teto do ônibus:

NÃO?

 

 

 

 

 

 

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Joaquim Cartaxo é poeta, arquiteturbanista pela UFC, mestre em planejamento urbano e regional pela FAU/USP. Lançou, na XII BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO CEARÁ, o livro Cidades – economia, gestão e centralidade.

 




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