Miserere!


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O que lhes trago é um vômito. Vômito que acredito estar na garganta de muitos que compactuam com uma cordialidade dissimulada, capaz de endossar produções poéticas medíocres que envergonham a vastidão de expressões artísticas realmente merecedoras de nossa atenção. Eles não serão capazes de chegar às vias de fato, eles simplesmente digerirão esse vômito e despejarão em nós seus sorrisos amarelos, fazendo-nos aceitar como arte uma verborragia vazia. Eles são os detentores de saberes culturalmente valorizados, os responsáveis pela disseminação da cultura e por levar a público a leitura literária. Sob a chancela de títulos acadêmicos, grandes editoras e mídias de projeção nacional, aqueles que deveriam estar comprometidos com a formação de consumidores culturais críticos e conscientes empurram-nos celebridades insípidas e impõem-nos o contato com leituras que nos levarão à inanição.

Se a nova geração de poetas está mesmo disposta “a trabalhar sem endeusar o gênero poético”[1], é injustificável a atitude sacralizadora dos acadêmicos em torno das produções dessa nova geração. É injustificável, por exemplo, a declaração de Heloisa Buarque de Hollanda acerca de Alice Sant’Anna: “Alice é sem dúvida uma protagonista da nova poesia no Brasil, e Rabo de Baleia um livro ‘já definitivo’”[2]. Qual avaliação restou para o leitor nessa assertiva? Cabe ainda algum comentário? Ou apenas a atitude subserviente de ir à livraria, comprar o livro e aceitá-lo como uma obra estabelecida? A postura de dessacralizar a poesia e, em consequência, o poeta e o fazer poético, é, de fato, meritória. Todavia, porque então o cenário “crítico” ainda execra aqueles que ousam declarar, por exemplo, a irregularidade da poesia de Drummond e o prosaísmo inócuo de muitos poemas de Adélia Prado? O trabalho que se faz diante desses autores já integrantes do cânone é exatamente no sentido de prestar às suas obras uma atitude irrefletida e irrestrita de culto, transformando-as nos imaculados santos de uma religião secularizada.

Se a intenção dessacralizadora é mesmo genuína – e não apenas uma desculpa para fazer o leitor engolir as negociatas de uma mídia de grande alcance, um mercado editorial e críticos “consagrados” –, que dissemine-se então a poesia de Manoel de Barros, da qual verte ao mesmo tempo a sabedoria de matutos ágrafos e o conhecimento de quem tomou contato com vasto acervo da cultura letrada. Ali, conjuga-se saberes marginais e elitizados de uma forma capaz de alcançar públicos leitores variados e ainda impulsionar à escrita os interessados no fazer poético.

Há algum pacto do silêncio? Alguma determinação totalitária do cenário poético constrangendo as pessoas a derramarem elogios sobre tudo que uma grande editora publica ou tudo que ganha um prêmio ou, ainda, tudo que um pós-doutor em literatura declara? Recuso-me a cultuar irrestritamente qualquer autor, contudo não posso elogiar os haicais de Alice Ruiz diante dos Grãos de Arroz de Yeda Prates Bernis – claro que eu poderia citar os haicaístas orientais, mas não quero sair do Brasil. Não posso endossar o valor estético de Rabo de Baleia depois de passar pela lírica pujante de Hilda Hilst (que já se revela em Presságio, publicado quando a poeta tinha vinte anos) e pela poesia de absurdos existenciais de Orides Fontela em sua Transposição, livro publicado aos vinte e nove anos da autora.

Alguém aí já ouviu falar em Nícollas Ranieri e Camila Vardarac? Ele tem vinte e três anos e publicou Fragmentos aos catorze. Ela nasceu em 1987 e tem poemas publicados em revistas eletrônicas. Reservo a vocês o direito de emitir qualquer avaliação sobre as produções desses jovens autores, meu intento é somente fornecer-lhes dois exemplos para além do que nos está sendo imposto, exemplos que podem se multiplicar aos verdadeiros interessados em buscar autores situados às bordas dos holofotes midiáticos e acadêmicos.

Sob a máscara de uma democratização da leitura, a lógica de mercado continua a nos injungir um velado regime totalitário. Almejo apenas que nos conscientizemos da nossa capacidade de julgamento e do nosso direito de escolha, assim nos veremos aptos a avaliar e selecionar a poesia e a arte que verdadeiramente queremos e sabemos apreciar.

 

 


[1] Disponível em: http://editora.cosacnaify.com.br/blog/?p=13951. Acesso em: 03 jan. 2014.

[2] Disponível em: http://editora.cosacnaify.com.br/ObraSinopse/1876/Rabo-de-baleia.aspx. Acesso em: 03 jan. 2014.

 

 

 

 

 

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Bianka de Andrade Silva é natural de Desterro de Entre Rios – Minas Gerais – Brasil. Nasceu em 18 de setembro de 1985. É graduada em Letras, mestranda em Teoria da Literatura e professora da FALE/UFMG pelo programa Capes/Demanda Social de formação docente. Seu primeiro livro de poesia é Desejada Dor (Anome Livros/Brasil), lançado em 2013. Excrementos (Apenas Livros/Portugal), também de poesia, e A Preciosidade da Obscurescência (Anome Livros/Brasil), livro de ensaios, estão no prelo. E-mail: biankandrade@gmail.com

 




Comentários (4 comentários)

  1. William Lial, Bianka, você tem razão, há uma grande sacralização, apesar do discurso dessacralizador de muitos, que acaba impedindo que novos nomes apareçam no cenário, principalmente se não estiverem em grandes editoras ou sem o apadrinhamento que, muitas vezes, ocorre imerecido por parte de alguns autores para com seus amigos e parentes. Opto nos meus ensaios por retratar o que vi em um texto e que gostaria de mostrar aos leitores, mas evito juízos de valor do tipo “o melhor de”, “o protagonista de” etc. Deixo que o leitor decida, depois de me ler e ler o escritor sobre o qual comentei, se é ou não o seu protagonista de alguma coisa. Enfim, vamos fazendo a nossa parte, como escritor, acadêmico e ensaísta, evitando de sermos contaminados pelos excessos de outros.
    7 fevereiro, 2014 as 16:26
  2. Guilherme, Cara Bianka, acredito que o bom leitor não se deixa levar pela crítica acadêmica, ou outra que quer seja. Achei desnecessário seu comentário em torno da declaração de Heloisa Buarque de Hollanda sobre Alice Sant’ana. Respeitar opiniões é algo que os críticos deveriam começar a pensar em fazer. E sobre as grandes editoras, são grandes pois tem bons administradores, e respeitando uma lógica de mercado “vendem seu peixe” e compra quem quer, com ou sem critica, há sim uma porcentagem imensa de pessoas que se deixam levar por opiniões entusiasmadas, e para esses qualquer coisa serve, porém para um leitor critico isso não gera influência, talvez curiosidade, mas o bom leitor sabe separar o joio do trigo, ele próprio buscas suas leituras em detrimento de um mercado editorial ditatorial.
    14 fevereiro, 2014 as 1:34
  3. Vinni Corrêa, Bianka, concordo com algumas coisas do seu texto, mas isso não existe apenas nas grandes editoras. Também nas pequenas editoras e em portais literários há uma panela de autores, o que impossibilita a abertura para novos poetas à margem da mídia, assim como rememorar alguns excelentes poetas ignorados pela grande mídia. Fiquei contente quando li o comentário do Paulo César de Barros ao dizer que é preciso caçar por aí esses autores. Realmente, é necessária essa tarefa de caça pois tais autores nunca ganham qualquer espaço. Certa vez, em uma pergunta feita a um poeta que escreve aqui no Musa Rara, um repórter literário criticou a ação de novos poetas que usam da performance para ganhar visibilidade. Não só foi ridícula a crítica que ele fez à performance, mas mostrou ignorância quanto ao fato de que nós não temos espaços e precisamos mostrar trabalho de alguma forma. Mas preocupado ainda fiquei quando vi uma crítica a Heloisa Buarque de Hollanda. Eu a considero muito pois é uma das poucas neste país que dão voz aos poetas da poesia pornô. Por escrever em tal gênero, tanto a Academia quanto os meios ditos alternativos não dão valor a este tipo de trabalho. Por outro lado, não fosse minha luta de conseguir conquistar um público com a realização de um evento temático, hoje eu continuaria sem qualquer visibilidade, como ainda não tenho espaço, seja em grandes editoras ou portais literários, mas felizmente consegui levar a imagem do meu evento para a mídia e para fora do país, sem ajuda de peixada e conchavos.
    7 março, 2014 as 16:48
  4. Bianka de Andrade Silva, Guilherme: O bom leitor é, quase sempre, aquele que recebe uma boa formação. Ou seja, para que um leitor chegue a ser maduro, ele precisa de um investimento do Estado e sabemos que, no geral, a Educação Básica oferecida em nosso país não forma leitores críticos, seletivos e maduros. Como professora de português e literatura, tenho visto de perto essa realidade. Assim, para que o leitor tenha condições de separar “o joio do trigo”, como você disse, ele precisa ter sido preparado para isso e prepará-lo é responsabilidade nossa. Eu, como professora, assumo essa responsabilidade, invisto minha carreira nisso para tentar transformar um pouco o contexto real brasileiro no contexto ideal de bons leitores que você menciona.
    23 junho, 2014 as 14:38

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