Mínimo verbo de máximo fogo


…………………..Laís Chaffe: Mínimo verbo de máximo fogo


 

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Os poetas se anteciparam à necessidade de mudar a linguagem para adaptá-la ao mundo e assim ajudar a transformá-lo. Na carona dessa mudança, a poesia tornou-se escassa numa época beletrista, certeira quando o discurso descrevia espirais de ilusionismo em volta das grandes guerras, emocionada sem apelar para as emoções baratas, demolidora na sua força de desestabilização dos discursos do poder e sedutora antes que a publicidade começasse com seu arsenal de simulações em função do comércio. Virou minimalista, aforística, implodida, sem derramamento de sangue. E mudaram os poetas para sempre.

Laís Chaffe faz parte dessa linhagem inaugurada quando havia necessidade de chutar a canela da folga cultural com margens indecentes que a tudo dominava. Seus poemas são o receptáculo desse trabalho aparentemente marginal, mas que ocupa o centro do mundo virado pelo avesso: o da linguagem voltada para si mesma em busca de uma solução dos conflitos e que intensifica a necessidade de clareza do que nos move na vida. Antes que a abordagem ensaística seja confundida com elogio, vamos a alguns exemplos do trabalho da poeta no volume que leva seu nome e que faz parte do projeto Instante Estante, da Castelinho Edições.

“Poesia:/ desejo salivando/ em frente à mesa/ vazia”, escreve Laís Chaffe na primeira página do seu livro, mostrando o confronto entre a palavra como vontade e a oferta de um tempo sem sentido. “Nunca foi/ muito popular,/ como então/ diria não/ quando as palavras/ convidavam para brincar?”, diz, sobre a vocação marginalizada na infância que encontra no espaço lúdico do verbo o seu futuro ofício. Verbo no duplo sentido, de ação substantiva, como vemos em alguns versos: “translúcido na taça/ o tinto já foi uva/ tudo passa” ou “Guaíba, lago?/ alguns resistem/ eu rio”. É o acúmulo de camadas de significados no mesmo espaço do poema, levando à leitura sobreposta de percepções que se cruzam entre a introspecção e a denúncia.

Mas seus poemas não se circunscrevem a esses voos breves. Alguns assumem forma mais clássica como em Sina (“Aterriso/ antes do voo/ e mesmo sem engravidar/ enjoo”) convidando a leitura a revisitá-los, como se sempre um novo poema surgisse, liberto do que vimos num momento anterior. Essa mobilidade muitas vezes sugere desconforto, como em “Quisera morar em mim/ Negaram o habite-se”. Ou intensa carga de revelações como nos belíssimos Vagas Emoções de Navegante Insatisfeito (“queria mais que o fervor/ das águas turvas/ queimando sob a saia”) e Bilhete (“Prefiro o suor ao surto,/ ao sangue, o sêmen”).

Poeta ocupa seu próprio espaço sob encomenda do que sente e sabe. Laís Chaffe mostra a força do que diz nesta pequena e significativa amostra da poesia brasileira contemporânea. Palavra econômica com poder máximo de fogo, que atinge o leitor atento, enredado em tantas linguagens artificiais. É quando o poema rompe o laço e reinaugura algo além do sonho, enriquecendo o mural de representações do mundo dominado por inúmeras vontades.

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Nei Duclós é jornalista, autor de seis livros publicados de poesia, romance, cronicas e literatura infanto-juvenil e alguns inéditos de ensaios, crônicas, poesia e contos. Formado em História pela USP. E-mail: nei@consciencia.org

 

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Alguns poemas do livro:

 

Sina


Persigo

um monstro arredio –

alternativa

ao anjo vazio.

 

Cultivo

num vaso medonho

o antídoto

de um verde sonho.

 

Escondo

sob um roto capacho

a chave

da vida que não acho.

 

Aterrisso

antes do voo

e mesmo sem engravidar

enjoo.

 

***

 

Morada


Nesse moinho

Vida esfarela

Água passa

Sede abdica.

 

Quisera a carne

Menos viva.

Quisera a alma

(onde é que fica?)

 

Quisera tempo

Sem limites.

 

Quisera morar em mim

Negaram o habite-se.

 

***

 

Vagas emoções de navegante insatisfeito

 

queria mais

que a ânsia passional das ondas

que a crista e que o estalo

a espuma e seu repuxo

 

queria mais que o fervor

das águas turvas

queimando sob a saia

 

queria o sol no quarto

e não na sala

 

que mais não faz o mar

senão singrar a praia

 

além da rebentação

buscou brisa e hoje boia

 

em vaga calmaria

onde onda é nostalgia

 

e chora

 

***

 

Bilhete

 

É outro o quadro, Vincent.

Espanto os lobos, Woolf.

 

Abdico a lâminas, lexotans.

Renuncio a cordas, gás de cozinha.

 

Adeus às armas, Ernest.

Lamento trair-te, Judas.

 

Já não durmo sob rodas

nem maltrato arranha-céus.

 

Prefiro o suor ao surto;

ao sangue, o sêmen.

 

 

***

 

nem Hades

nem Olimpo

arte que é arte

mora no limbo

 

a Magritte

toda a razão

aquilo não era um cachimbo

a palavra pipe

também não

 


***
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No ar


Há uma palavra no ar

tento fisgá-la em vão

com essa vara alada

de versos.

 

Há uma palavra que afunda

tento trazê-la à tona

com essa rede rasgada

infecunda.

 

Imploro a palavra-peixe

tento salvar-me a tempo

do naufrágio que chamam

silêncio.

 

***

 

nada de lua cheia

nada de arte

nada, baleia jubarte

 

 

***

Na busca sinuosa

a mão do Outro

quebra o arbítrio

dos espelhos.

***

 

Fim da tempestade

o pote de ouro

é o próprio arco-íris

 

***

 

Pressa


Era um tipo de angústia

que ansiava

por engolir o mundo.

E em seu desespero

errava as garfadas

e mordia a própria língua.

E morria à míngua.

 

 

Depois


Aí veio aquela dorzinha

que não é dor de morte,

muito menos de amor perdido.

 

Veio aquela coisa inefável

que se sente ao retirar

o último enfeite da árvore de Natal,

ao recolher os copos

no final de festa,

ao arrumar a cama

na manhã seguinte.

 

 

 

 

 

[O livro faz parte da Coleção Instante Estante, um projeto de incentivo à leitura da Castelinho Edições, editora sem fins lucrativos dos escritores Sandra Santos e Alexandre Brito. O projeto distribui livros novos, editados especialmente para a coleção, pelo selo Castelinho. Os livros chegam ao leitor, gratuitamente, através da Intervenção Urbana Instante Estante nas capitais ou pela distribuição, também gratuita, dos “kits” (com os livros do projeto) em bibliotecas comunitárias e pontos de leitura.]

 

 

 

A autora:

Laís Chaffe idealizou e está à frente do projeto Cidade Poema (www.cidadepoema.com), que vem levando poesia às ruas e a espaços públicos de Porto Alegre desde 2009. Escreveu Medusa (poemas infantis, Casa Verde, 2011), Instante Estante – Laís Chaffe (poemas, Castelinho Edições, 2011), Minicontos e muito menos (Casa Verde, Série Lilliput, 2009) e Não é difícil compreender os ETs (AGE, 2002, 112p). Também é diretora, roteirista e produtora executiva do documentário Canto de cicatriz (38min, 2005); roteirista e diretora (com Gustavo Brandau) do curta-metragem Identidade (15min, 2002); e roteirista e produtora executiva do curta Colapso (15min, 2004). E-mail: lchaffe@gmail.com

 

 

 

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Nei Duclós é de Uruguaiana, RS. Jornalista, poeta e ensaísta. Tem 17 livros (entre ebooks e impressos) lançados de cronicas, contos, poesias, romance e ensaios. Além de inúmeros textos publicados na imprensa brasileira, sites e blogs e redes sociais. Citações em vários trabalhos acadêmicos, de graduação, mestrado e doutorado. Poemas e contos traduzidos para o italiano pela revista virtual Sagarana, editada em Lucca, e poemas traduzidos para o inglês para a revista Rattapallax, editada em Nova York.

 




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