Minhas memórias de Hilda Hilst – Parte III


 

 

“Sobrevivi à morte sucessiva das coisas do teu quarto./
…//
Que fome de tocar-te nos papéis antigos!
…//
Abraça-me. Um quase nada de luz pousou na tua mesa/
E expandiu-se na cor, como um pequeno prisma.”

………………………………………………………………………Hilda Hilst in Odes Maiores ao Pai V

 

 

5.    Muito humor, muitos papos muitos uísques

Numa dessas idas à Casa do Sol, agora mais esporádicas, aí pelos anos de 1990, estava lá também o escritor, jornalista, artista plástico e fotógrafo J.Toledo, falecido em setembro de 2007 (1947-2007), grande amigo que, aliás, conhecera antes de conhecer a Hilda, grande artista, pessoa excepcional que entrevistei muitas vezes quando editora do já referido Jornal de Hoje. Dono de uma inteligência fascinante, de um humor cáustico, Toledo era paulistano, mas radicado em Campinas há muitos anos, sendo que em São Paulo fora aluno de Sergio Milliet, fazendo sua primeira exposição aos 14 anos e sendo mesmo um dos primeiros artistas surrealistas do Brasil. Ao longo de sua vida realizou centenas de mostras incluindo uma retrospectiva no MAM de São Paulo em 1970 e com obras em museus brasileiros. Autor de cinco livros: Espiões da Cidade (em coautoria com os jornalistas Antonio Contente, e Edmilson Siqueira e Zeza Amaral) – (crônicas- Campinas: Boocket, 1992; Flávio de Carvalho – o comedor de emoções (São Paulo, Brasiliense/Unicamp, 1994 com prefácio de Jorge Amado e capa de Wesley Duke Lee); A Divina com mídias – crônicas bizantinas, São Paulo: Brasiliense, 1996 com apresentação de Ignácio de Loyola Brandão e capa de Guto Corbett; Dicionário de Suicidas Ilustres, Rio de Janeiro: Record, 1999, com prefácio de Roosevelt Cassorla e capa de Victor Burton e Dois Uísques em Cafarnaum (crônicas), Rio de Janeiro, Record, 2006, apresentado por Antonio Contente e Inês Parada  com capa de Sérgio Campante. Inéditos, deixou Um expresso para …quem sabe? (teatro) e O Jogo de Caxanguá (romance).   E nesta noite  portanto em que fora visitar a Hilda – eu estava com o Almeida Prado, o  Dante Casarini registrou o momento fazendo algumas fotos.
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……………………………….Toledo e ALV –  arquivo pessoal

 

E por incrível que pareça só quando eu o entrevistei para este livro fiquei sabendo como ele, um dos grandes amigos da Hilda – (faz parte do primeiro site da Hilda criado pelo Yuri Vieira dos Santos, como um dos escritores da Casa do Sol) e que escrevera vários artigos sobre ela publicados não apenas neste local, mas no jornal O Correio Popular, de Campinas do qual era colaborador há anos – a conhecera. Fora num dos salões do Museu de Arte Contemporânea de Campinas o MAC que ficava ainda na Avenida da Saudade (Campinas/SP) por volta de 1967 ou 1968. No final de 1969, como artista e jornalista, já era amigo do Dante Casarini e com ele foi pela primeira vez na Casa do Sol quando conheceu Hilda pessoalmente. “Brilhante! Ela estava na biblioteca com uma roupa branca e luvas da mesma cor. Quando entramos e Dante nos apresentou, Chakatan! Cumprimentando-me, ela estirou a mão enluvada – só que nela havia uma enorme aranha peluda morta, é claro. Acontece que ela havia colocado veneno no local, achara o cadáver do bicho e ficara ali, examinando-o. Quando entrei, após muitas risadas, fomos para a sala e daí veio todo aquele interrogatório hilstiano de costume com gente nova. Muito humor, muitos papos e – claro – muitos uísques.”

Toledo me contou que seu relacionamento com Hilda foi perfeito e sempre bem-humorado existindo até o fim e que à exceção de uma besteirinha ou outra foi ótimo. Quando brigavam, faziam logo as pazes e pronto. “A seguir, conheci o Zé (José Luis Mora Fuentes), que me emprestou o recém-saído disco do Festival de Woodstock que também ficou muito amigo e com quem ainda mantinha grandes papos. Festas lindas, grandes sacadas, conversas diárias, depois do telefone instalado lá: 39-4692. Executei para ela o projeto do cenário da peça As aves da Noite (que nunca foi montada) e um rascunho para a capa do livro Com os meus olhos de cão. Mas lembra que com o advento do chamado Wilson Hilst, tudo mudou repentinamente, como sei muito bem por ter presenciado o inicio do relacionamento tumultuado e que quase acabou em tragédia. Segundo ele Hilda apaixonou-se e se tornou estúpida como toda mulher muito apaixonada. Cedeu a tudo que as loucuras do companheiro a obrigavam, inclusive abster-se dos velhos amigos. Sorte Danton morar por ali, ficar esperto e tempos depois salvá-la, sabe Deus do que poderia ocorrer ali.”

Na verdade eu também tinha permissão para aparecer, mas tudo ficou muito complicado a ponto de para culminar o evento, o jovem a ameaçou com um revolver durante um dia inteiro. Ela conseguiu se afastar da casa pelo final da tarde – esta história sabíamos em detalhes e por providencia divina duas senhoras apareceram no portão da Casa do Sol. Foi quando ela conseguiu mandar um recado para o Dante que morava numa casa ao lado e então foram tomadas as devidas providencias. Ela ficou arrasada e nós também. Durante um tempo teve que refugiar-se na casa de um amigo onde fui visitá-la. Confessou estar ainda perdidamente apaixonada pelo rapaz. Os amigos são para isso mesmo e todos a apoiamos para que ela saísse daquele relacionamento sumamente perigoso.  Afinal Hilda conseguiu sair desta e na sequencia se apaixonou novamente. Graças a Deus nada dura para sempre!Mas ela podia contar com o Dante e outros amigos fiéis. Depois isso escreveu obras belíssimas, já que as paixões a mobilizavam sempre.

A esta altura Toledo casara-se com uma americana super simpática – Diane e eles se mudaram para Sousas (um dos quatro distritos de Campinas) onde, segundo me contou Hilda e Dante iam visitá-los de vez em quando. Deixou de vê-la pessoalmente por volta de 1999 ou 2000 por problemas de saúde dele. “Coitada, estava sozinha, bebendo em excesso, duríssima e cheia de problemas com a Prefeitura de Campinas, para dizer a verdade divida de IPTU da casa que estava absurdamente alta. Felizmente, o Zé Luis veio de São Paulo e cuidou dela no fim, o que nos foi uma bênção. Penso nela diariamente. Mas não como uma carpideira enjoativa, não. Penso apenas que este mundo idiota foi temporariamente privilegiado por tê-la aqui por algumas décadas”.

Ele escreveu ainda um texto para uma repórter do Rio publicado no virtual  Blocos online em 11 de fevereiro de 2004 dias depois da morte da Hilda: Algumas coisas que me lembro dela que vale ser reproduzido pela leveza e humor que caracterizam seus textos e que dão uma idéia pelo menos remota do que era a convivência com a Hilda na Casa do Sol. “Nos trinta e quatro anos em que convivemos, ela sempre aglutinou em roda de si gente jovem, também com a vontade de fazer, criar, polemizar: éramos grandes amigos e nos falávamos diariamente. Generosa, polêmica e ousada, cutucava sempre questões esquecidas pelos outros, mas que estavam logo ali, debaixo do nariz do mundo. Incrível essa sua capacidade. Dos muitos que prestigiou com sua generosidade, estavam José Luis Mora Fuentes, excelente escritor que publicou livros sob suas bênçãos e que, afinal, foi quem cuidou dela durante anos, até o ocaso na Casa do Sol. Caio Fernando Abreu, que morou na fazenda durante algum tempo, escreveu muito e morreu, deixando-nos lindas obras e se tornando um ícone de sua geração, Olga Bilenki, mulher do Mora Fuentes, artista plástica de grandes qualidades e capista de algumas obras suas, Edson Duarte, autor de teses interessantes sobre seu trabalho, Yuri Vieira dos Santos, um dos grandes valores literários ainda a ser descoberto pelos editores e autor do primeiro site  da escritora.”

“Entre eles todos-claro-estava o então marido, o escultor Dante Casarini, principal responsável pela fluidez de sua obra, ou seja, quem resolvia tudo de prático, chato e burocrático para sua confortável vida campestre se perenizar em livros. Através dele, achava tempo para fazer experiências místicas com gravadores, estudos profundos sobre Grotowsky, viver ligeiros orgasmos com Wittgenstein, sublimações com Bertrand Russell, declamar pela casa alguns versos de Ovídio e, é claro, pajear toneladas de cachorros que começou a juntar nos anos 70, quando então só andava pela casa uma cabra chamada Genoveva que possuía o saudável hábito de comer cigarros apagados.”

“Só isso. De resto, eram figuras interessantes que passavam por lá, hospedando-se, alimentando-se, bebendo, todavia, sempre levando para casa a imagem de uma mulher inteligente, terna, quase sempre, brilhante, bem humorada, sarcástica, sagaz, mas, sobretudo, generosa. Sempre! De minha parte e em comum acordo com esses amigos de décadas que, afinal, foram criados ali, sob sua tutela amiga e alcoólica, resta uma orfandade difícil de explicar. É, por assim dizer, uma ausência vital com a qual contávamos, brigávamos, debatendo-nos para alcançar o inatingível daquelas coisas todas. E enfim, sabendo-a logo ali, sobrevinha a calma quase que freudiana de uma mãe que, na verdade era um PAI que, aliás, lhe fora uma grande obsessão na vida. Difícil explicar. Melhor mesmo é voltar à década de 70 e à casa da praia, em Massaguaçú, em cujo mar a amiga se banhava nua e seu sorriso luminoso se abria ao imaginar o edênico das praias de Peripaque, a ilha distante no horizonte. Agora, porém, com sua ida, sobrou o vazio e o humor que sua partida deixou no ar para que centenas de jornalistas e aspirantes ao Tudo ou Nada de Hilda nos perguntem como ela era. E o que lhes dizer, senão, que era um ser indecifrável? Sim, afinal, teremos a eternidade toda para rever sua obra e constatar que, de fato, a esfinge genial de peitos bonitos com quem convivemos por décadas era, e continua sendo para sempre, uma verdadeira e obscena senhora H.”
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………………………………………..Hilda e J. Toledo

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Estive outras vezes na Casa do Sol depois, digamos, da minha ausência de alguns anos e numa destas visitas a Hilda me deu os originais de Lori Lamby. Estava já de saída, portanto de pé perto da porta da sala, quando ela pediu para eu esperar-foi para o escritório e voltou com uma pasta na mão e me deu. Lembro-me que fiquei paralisada de novo, e ainda disse: “Hilda, voce está me dando os originais de Lori Lamby?” Porque sempre achei os originais importantíssimos e não sabia que ela costumava presentear os amigos com eles. Ela respondeu: “Estou, eu quero te dar”. Peguei a pasta – uma pasta amarela comum com umas letras set pretas com a seguinte frase O Plano Mágico. Fiquei tão impressionada – pela segunda vez Lori Lamby me deixou sem fala, só consegui abrir a referida pasta depois de dias para constatar que ali estavam não apenas os originais deste livro tão controvertido, mas uma cópia datilografada, naquela letra pequena característica da sua Olivetti Lettera do livro Tu não te moves de ti que é uma verdadeira maravilha.
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……………………………………………….Originais de Lori Lamby

 

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6. Vocação para a felicidade

 

A esta altura minha vida ficou bastante estranha porque o processo de conversão a Deus não é fácil-como me disse o Alceu Amoroso Lima numa entrevista que me concedeu e foi, senão a ultima pelo menos uma das ultimas que ele deu em sua vida: “conversão não é água fresca e sombra”, mas períodos de intensa alegria mesclados com muita angustia e sofrimento que culminou numa grande perda: meu filho Maxilimiano morreu em novembro de 1996  e cuja dor suplantei muito em função do apoio espiritual que recebi de pessoas que Deus colocou no meu caminho e a quem serei eternamente agradecida, na conjuntura mais trágica da minha vida.

Então “Que dor desses calendários/Sumidiços, fatos, datas/O tempo envolto em visgo/Minha cara buscando/Teu rosto reversivo. //Que dor no branco e negro/Desses negativos/Lisura congelada do papel/Fatos roídos/E teus dedos buscando/A carnação da vida. //Que dor de abraços/Que dor de transparência/E gestos nulos/Derretidos retratos/Fotos fitas//Que rolo sinistroso /Nas gavetas. //Que gosto esse do Tempo/De estancar o jorro de umas vidas”. Cantares de Perda e Predileção II (Massao Ohno – M. Lydia Pires e Albuquerque Editores, São Paulo, 1983)

Mas como tenho como a Hilda-o José Luis me dizia: “a Hilda tinha uma vocação para a felicidade impressionante porque mesmo no fim, quando estava com aqueles problemas todos, depois das várias isquemias, havia momentos em que ela melhorava e ficava feliz e a gente ria muito” – também uma absoluta rejeição pela amargura, também busquei a felicidade, busco a cada minuto, já que não é fácil conviver com isso. Neste tempo eu ligava para ela que já estava com certa dificuldade na articulação das palavras por causa das várias isquemias que sofrera e me lembro que um dia ela me disse: “Ana, eu estou envelhecendo. Como voce está?” Eu disse: “Também estou envelhecendo Hilda”, mas de fato não sabia o que ela estava falando. Por que afinal eu a conhecera com 24 anos e estava agora com 52 e digamos que isso contava: os anos passam e você infelizmente não fica eternamente jovem. Mas eu não imaginava que seu processo de envelhecimento estava sendo galopante e ao contrário das suas reações lentas, a morte, que ela chamara de tantos nomes: cavalinha, rinoceronte, leão-rei, velha pequenina, estivesse se aproximando a passos céleres. Só quando um dia, na Livraria Pontes, em Campinas vi sua foto na edição sobre sua obra Hilda Hilst em Os Cadernos deLiteratura Brasileira (São Paulo: Instituto Moreira Salles, no 8, out. 1999) fiquei completamente impressionada. Ela tinha mudado drasticamente desde a ultima vez que nos viramos. Entendi então o que ele estava tentando me dizer ao telefone.
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De volta a Campinas onde moro desde 2000, falei com ela em várias oportunidades, sempre tentando marcar um dia para ir visitá-la, mas ela me dizia que era melhor eu esperar o José Luis voltar de São Paulo, com quem, aliás, eu falava de vez em quando também por telefone e então ficava sabendo de seus problemas de saúde, das internações, enfim que a Hilda já não era mais a mesma. Mas aqui também eu não o tinha a percepção da extensão da sua fala, como, aliás, grande parte da imprensa, e mesmo de amigos íntimos, conforme ele me disse depois que ainda tentavam entrevistá-la não confiando no seu depoimento sobre o seu real estado de saúde.

Daí que só voltei a Casa do Sol em 2004, mais exatamente vinte dias antes da sua morte, portanto mais de dez anos depois, já sem a Hilda, quando comecei a me revezar com o José Luis e a Olga nas visitas na UTI do Hospital das Clinicas da Unicamp, com grande dor, porque então ela, que eu vira linda, luminosa, estava aos 73 quase 74, parecendo uma pessoa de 90, segundo os médicos diziam. Lembro-me dos meus passos ressoando nos longos corredores do hospital e me lembrava daquele poema dela – “a menina nos longos corredores do colégio/não havia solidão igual a minha” (Roteiro do Silencio – (1959)– meus olhos como que ficavam inchados por dentro, era uma coisa estranha, aliás, isso se repetiu várias vezes e eu ficava num estado meio de embriagues – para quem não bebe, digamos que é um estado de embriagues sem álcool, porque essas visitas me remetiam aquele passado longínquo “quando éramos felizes e ninguém estava morto” como disse Fernando Pessoa no seu poema A Tabacaria.

A primeira vez que fui e me preparei para entrar naquela UTI porque não se entra numa UTI impunemente-e eu abracei o José Luis – há quantos anos a gente não se via e senti que ele estava no fim das suas forças. Em seguida chegou a Olga e eles começaram a falar com a Hilda que ainda estava lúcida a esta altura e eles me mostraram para ela e ela até sorriu. E de repente estávamos nós quatro ali novamente como tantas vezes-apenas nós quatro e tínhamos uma amizade maravilhosa. Quando a visita terminou, eu, a Olga e o José Luis ficamos conversando numa daquelas cantinas e então riamos, na verdade da felicidade do reencontro e eles me contaram os fatos em detalhes.

 

7. Caminhando para o fim

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Fui com eles à Casa do Sol e me preparei para entrar naquela casa maravilhosa, onde vivera grandes momentos da minha vida- agora sem a Hilda e bem mudada em relação aqueles tempos maravilhosos que vivêramos, por causa lógico dos problemas financeiros graves que depois Mora Fuentes me contou, eles sofriam nos últimos oito anos. “O que aconteceu foi que a partir dum momento, a Hilda começou a beber muito, e como sempre a casa foi aberta, ela continuava abrigando pessoas lá, e de repente algumas que estavam ali por mera conveniência e sequer sabiam quem era ela, e alguns começaram a levar livros raríssimos, e até a falsificar cheques. Isso tudo, quando ela já havia saído da Unicamp, e estava numa péssima situação financeira. Foi quando a Inês Parada, que mora ali perto e ficou sua grande amiga e que a ajudou mesmo nessa área das finanças, em determinado momento me chamou porque as coisas estavam ficando muito graves. Então deixei a minha vida em São Paulo, e vim para a Casa do Sol, para tomar conta dela, e acabei assumindo tudo: comecei a negociar com a prefeitura de Campinas para quem ela estava devendo uma quantia enorme de IPTU, encontrar uma editora para publicar suas obras completas e providenciar a sobrevivência dela e dos cachorros. Foi um período muito dolorido, mas cheio de coisas boas também, porque neste tempo houve todo um interesse pela obra dela, as pessoas começaram a se interessar e amar seus livros e nisso a Internet teve um enorme papel, grupos de teatro começaram a montar seus textos de teatro ou adaptações mesmo de obras em prosa, enfim ela começou a ser descoberta e reconhecida”.

Na sequencia continuei a me revezar com ele nas visitas a Hilda na UTI onde seu estado se agravava. E uma noite ele me ligou- nós nos ligávamos todos os dias durante aquele mês – de janeiro a inicio de fevereiro de 2004, cada um relatando para o outro as conclusões dos médicos – chorando, porque naquela visita eles haviam dito que era para a gente se preparar porque a Hilda não ia resistir talvez um dia. Era o dia 3 de fevereiro de 2004 ele pedia para eu levar um padre, coisa, aliás, que eu já tentara fazer várias vezes. Como encontrar um padre às 22 horas, mas enfim tentei: liguei para o hospital e me informei sobre a hora que o capelão era encontrável e a enfermeira me disse que a partir das 8 h da manhã. Assim liguei novamente para ele e dei a informação e sugeri que fossemos dormir porque no dia seguinte eu teria que acordar cedo para ir ao hospital articular isso. Mas como desligar o telefone? Ele não parava de chorar e dizia: “Ana, eu não estou preparado, não consigo imaginar esta casa sem a Hilda”. Desisti do meu intento então e afinal desligamos o telefone por volta de 1.30 h da madrugada. Na verdade já articulara um padre a revelia: pedi para uma amiga providenciar, mas como os acontecimentos se precipitaram eu não sabia se isso tinha acontecido.

Não consegui dormir-fiquei num estado de meia vigília. Acordei às 7hs, me aprontei, mas providencialmente resolvi ligar antes para o Hospital e perguntei à enfermeira que me atendeu se para pedir a visita de um padre para um paciente era preciso alguém da família ou amigos estar presentes. Ela me disse que sim, mas de quem exatamente eu estava falando. Para quem eu queria levar um padre?  Eu respondi: para a Hilda Hilst. Ela me disse: “mas a senhora Hilda Hilst faleceu as 4.30h da madrugada”. Mesmo esperando esta noticia percebi que também não estava preparada e então comecei a chorar, mas como o tempo urgia, eu comecei a ligar e seguir os passos do José Luis e da Olga que estavam seguindo os trâmites legais do traslado do corpo para o cemitério. Por incrível que pareça eu ligava para o Hospital e conseguia informações precisas: era a Hilda Hilst, a menina dos olhos da Unicamp e acredito que o hospital inteiro tinha instruções para um tratamento VIP.

Quando cheguei ao Cemitério das Aléias já estavam a repórter Carlota Cafieiro do Correio Popular e o fotógrafo do jornal e já chegavam alguns amigos de São Paulo – a escritora e grande amiga da Hilda, Lygia Fagundes Telles, a Renata  na época namorada do Daniel -filho do Mora Fuentes e da Olga Bilenki- e sua mãe, pessoas importantes nos últimos tempos da Hilda.Na sequencia chegariam muitos outros, muitos jornalistas, artistas plásticos, escritores, amigos. A Lygia muito sabiamente não quis vê-la – preferiu ficar lembrando para sempre da Hilda bonita e sorridente como estava numa foto que mostrava para todos os fotógrafos: as duas numa casa de praia do grande amigo, o médico renomado, José Aristodemo Pinotti onde elas eram mais jovens.
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………Hilda Hilst, Lygia Fagundes Telles, Iara Scheidt Casarini e Malu Furia

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E eu de repente me vi fazendo assessoria de imprensa: os repórteres chegavam e me perguntavam coisas sobre a vida e obra da Hilda. Digamos que não pude curtir o momento, jornalista não pode ficar em paz nem no velório de uma amiga. Eles se abasteciam de informações e iam para fora da sala entravam no ar e voltavam. Eu falava loucamente dava nome de obras, datas, nomes de livros de poesia, prosa, teatro, detalhes e o tempo passava e nada de cerimônia. O José Luis tinha me dito que isso ficaria a cargo da Unicamp e eu já havia confabulado discretamente com a cunhada da Hilda também católica que seria bom uma cerimônia religiosa. Mas isso nem pensar. E o tempo corria e de repente começaram a fechar o caixão e nada acontecia neste sentido. La fora eis que de repente fui rodeada por jornalistas, Olga, o Roberto, sobrinho da Hilda que me pediam para eu falar antes do caixão baixar. Não pelo amor de Deus!Tudo menos isso, mas o cortejo já começava a andar e de repente por providencia divina emparelhei com o Carlos Vogt ex-reitor da Unicamp que já conhecia e o Alcir Pécora que, aliás, conhecera naquele instante.

Consultei ambos sobre a possibilidade de falarem: apenas balançaram a cabeça num gesto negativo. Eu desesperada porque senti que ali não havia consolo-ninguem teria compaixão de mim e a Hilda não merecia ser enterrada assim sem uma palavra.  Quando vi que não haveria escapatória, eu ia falar mesmo, comecei a me distanciar dos grupos, e me preparar para dizer algo. Comecei a rezar e pedir ao Todo Poderoso que a Hilda chamara de tantos nomes em Kadosh, uma inspiração e o cortejo andando e finalmente chegamos. Um rapaz que nunca vi com trajes exóticos cantava uma canção extravagante.

Quando ele terminou, eu disse falei algo em torno disso porque em detalhes não me lembro mesmo e apesar de ver câmeras filmando ali nunca vi o resultado desta cena. ‘ Estamos aqui hoje levando a Hilda Hilst, grande escritora, grande poeta, pessoa maravilhosa, gênio da literatura brasileira para sua ultima morada. Porém o que há aqui é apenas o seu corpo. Mas ela está viva e linda e generosa como sempre foi durante sua passagem entre nós e com certeza cara a cara com este Deus que ela tanto procurara e que está impresso em sua obra inovadora. Adeus Hilda, até um dia em que nos encontraremos todos. ’

No final vieram me entrevistar e a noite eu vi o resultado: a cara era a minha, mas a voz era rouca e super grave. Na sequencia fomos – o Mora me convidou para irmos para a Casa do Sol. Eu fui com a Maria Luiza Fúria jornalista do Estadão e as coisas continuavam acontecendo naquele clima de magia que sempre caracterizou a presença da Hilda. E lá estávamos nós, rodeados de cachorros por todos os lados sentados na sala e eu-que estava ao lado do Daniel Fuentes, atualmente diretor do Instituto Hilda Hilst – Centro de Estudos Casa do Sol, com um cachorro no colo, de repente descobrimos que no vão do sofá, bem do meu lado, escondida, quietinha, triste estava uma cachorrinha que era a preferida da Hilda nos últimos tempos – a Aninha. Ninguém falava, mas ficava implícita a preocupação com os cachorros: era duro ver a cena da tristeza deles. E repente a Olga olhou uma planta e disse: ‘ nossa ela está reverdecendo’ e riu quando percebeu que estava falando como a Hilda num poema.

Naquele mesmo dia li um artigo do Pinotti (José Aristodemo Pinotti famoso oncologista falecido em 2009, Pi como a Hilda o chamava grande amigo: no Correio Popular (5 de fevereiro de 2004): Hilda Hilst, uma anarquista pós-moderna , onde ele lembrava que Hilda, poeta maior que rompera com a língua portuguesa com o mesmo vigor de Guimarães Rosa , entendia sobre o amor: “Amou e foi amada muitas vezes, bebeu, fumou, nunca fez nada  que os médicos aconselham  para uma vida sadia. Gastou seu corpo, consumiu-se e morreu totalmente endividada, mas com grande crédito na literatura brasileira”. E na seqüência descreve sua visita a Casa do Sol, no seu último aniversário e como sempre fora difícil descer do carro, “cercado por dezenas de cães vira-latas, simpáticos e barulhentos”.

“Ao entrar vi uma velha senhora com um chalé nas costas, em frente à televisão. Beijamo-nos, ela chorava ao receber cada um dos poucos amigos que chegavam. Seu corpo alquebrado mantinha os olhos com a mesma chama cínica, romântica e iconoclasta de sempre. Voamos pelo passado. Ela foi a primeira artista residente da Unicamp, uma forma de fazer com que o mundo acadêmico das estatísticas e das precisões e também do ‘establishment’ cientifico pudesse conviver com a capacidade criadora livre, e descomprometida de verdadeiros artistas. Suas conferencias escandalizavam como alguns de seus livros, mas eletrizavam, e seus poemas faziam chorar e pensar”. Dizia ainda que se Hilda procurara a morte, sendo que, em nenhum momento, Kundera na busca da imortalidade e “tampouco as academias a buscaram para isso e se o tivessem feito-mérito não lhe faltou – seguramente teriam ouvido um palavrão, que na sua boca e no lampejar do seu olhar parecia sempre simpático, e um gesto obsceno que, pela sua origem aristocrática, tinha a imagem delicada e feminina de uma mulher linda, elegante e atraente”.

Continuava reiterando sua certeza na capacidade de sua obra ser eternizada pelo seu legado literário, pois tanto na poesia, como na prosa ela havia sido radical, “inclusive nas experimentações gráficas. É dona de uma anarquia genérica pós-moderna na tradição de Rainer Maria Rilke, T. S. Elliot e James Joyce”.  E citava um poema, onde, para ele, a grande escritora expressa de forma mais intensa sua imagem de Deus: “Finas farpas, vastas redes, porque te fazes ausente. Loucura há tantos meses e dás lugar à torpe lucidez, ao nojo do existir e do me ver morrer? Por que me atiras à desordem de ser e à futilidade do mover-se?” (Estar sendo. Ter sido. 2ª Ed. – São Paulo, Globo, 2006). E terminava citando ainda outro poema da Hilda do livro Odes Maiores ao Pai-Canto VI uma linda frase poética, propícia para aquele momento da sua partida, que, no entanto vai lembrar a grande esperança que ela teve sempre neste depois da morte: “E ainda que as janelas se fechem meu pai, é certo que amanhece”.

 

 

 

 

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Ana Lúcia Vasconcelos é atriz, jornalista, escritora e tradutora, licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp, e acaba de preparar um livro ainda inédito sobre Hilda Hilst que o MUSA RARA publica em partes. E-mail: analuvasconcelos@globo.com




Comentários (9 comentários)

  1. Nydia Bonetti, Pura emoção, Ana. História/resgate/memórias – que não podem mesmo se perder. Um grande privilégio te ler. abraço!
    20 fevereiro, 2012 as 15:47
  2. LUIS SERGUILHA, MUITO OBRIGADO ANA VASCONCELOS…pelo fortíssimo e instigante testemunho documental….uma re-aprendizagem
    21 fevereiro, 2012 as 16:52
  3. Sônia Francisco, Cá estou totalmente entregue e sensibilizada por saborear tão maravilhoso e instigante texto e pensando na minha juventude que foi muito rica de amizades. Mal sabia eu, que foi a época mais importante da minha vida. Abraços Ana Lúcia.
    21 fevereiro, 2012 as 18:47
  4. Dayz Peixoto, Ana, a memória afetiva é a garantia de um texto deslumbrante. Certamente seu livro será apaixonante. Parabens ao site Musarara por trazer até nós, antecipadamente, a história da escritora Hilda Hilst. Um grande abraço a você e sucesso.
    25 fevereiro, 2012 as 3:02
  5. Ana Lucia Vasconcelos, Obrigada a todos que deixaram comentários aqui:Nydia,Luis Serguilha, Sonia, Days: fico feliz em saber que estou proporcionando bons momentos com a leitura destas minhas memórias da grande poeta, escritora, dramaturga que foi, é e sempre será a Hilda Hilst.Publicar este texto em partes em sido para mim uma experiencia muitissimo interessante e estimulante justamente por saber que ele está sendo, digamos, saboreado com talves novas luzes sobre a escritura da Hilda e evidente alguns detalhes da sua convivencia com os amigos…grande abraço a todos
    25 fevereiro, 2012 as 3:13
  6. Ana Guimarães, Ana, querida amiga, parabéns e obrigada pelo texto-presente! Quem sabe alguém, com esse verdadeiro documento em maos, nao se interessa em transforma-lo em filme? Beijos
    25 fevereiro, 2012 as 13:25
  7. Tere Tavares, Querida Ana, mais um capítulo imperdível com que nos brindas. Concordo com a Ana Guimarães, isso dá sim, um excelente filme. Parabéns amiga. Beijo
    27 fevereiro, 2012 as 23:38
  8. pedro, gostei muito do texto. amo todos os textos da hilda hilst, em especial os poemas, e foi muito bom saber detalhes sobre o processo de escrita dos livros da poeta (como o fato dela ter passado a viver como o personagem qadós, na época da escrita do livro). saber mais sobre a vida de hilda hilst engrandece ainda mais a leitura dos seus textos, obrigado!
    19 abril, 2012 as 12:33
  9. Ana Lucia Vasconcelos, Ana ,Tere e Pedro: que bom que gostaram destes trechos das minhas memórias da Hilda!!! Imagino, porque eu também sou assim, que para voces que não conviveram com ela, é uma graça saber detalhes, minúcias do seu processo criativo.Para mim é sempre um prazer falar da Hilda e sua obra maravilhosa!!!
    24 junho, 2012 as 1:12

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