Minhas memórias de Hilda Hilst – Parte II


 

 

Canção, não digas mais; e se teus versos
Á pena vem pequenos,
Não queiram de ti mais, pois dirás menos

Luis de Camões

 

…………Dedicatória da Hilda no livro Da Morte. Odes mínimas

 

3. Família eletiva

Cerca de dez anos depois do seu casamento Hilda e Dante viraram irmãos e este era o termo usado por eles, e ela começou a namorar o jovem de origem espanhola, mas apaixonado por São Paulo, José Luis Mora Fuentes (9 de outubro de 1951-13 de junho de 2009) que logo esqueceu seus projetos de fazer medicina e depois jornalismo e mudou-se para a Casa do Sol a convite de Hilda. O relacionamento tumultuado, que presenciei em parte pelos relatos deles e por ter visto com meus próprios olhos, se transformou em amizade  até a morte dela e continuou depois da passagem da Hilda para a eternidade com a criação por ele e amigos de uma instituição destinada a preservar a memória da escritora: o Instituto Hilda Hilst – Centro de Estudos Casa do Sol. Na verdade, Hilda fazia sempre o que queria e esta história eu presenciei sendo que para saber os detalhes , “as minúcias” como diria Hilda, já que sou uma jornalista, entrevistei o Mora Fuentes longamente: porém este relato fica para quando o livro puder ser publicado.

Lembro-me de ter visitado Hilda várias vezes na casa da praia que comprara em Massaguaçú e onde passou muitas temporadas e que batizou de Casa da Lua e justamente numa dessas ocasiões o José Luis estava com ela que escrevia  o maravilhoso Qadós, que depois ficou Kadosh. A esta altura eles ainda estavam namorando. “A paixão durou dois anos e meio”, me contou o Mora Fuentes, “e quando terminou acho que todos respiramos aliviados e a partir daí a amizade por Hilda se consolidou, ficamos realmente unidos, cúmplices.”

José Luis voltou à Casa do Sol quando uma das peças da Hilda – O Verdugo, dirigida por Rofran Fernandes estava sendo montada. Ela foi a São Paulo ver os ensaios e eles acabaram se encontrando – Hilda ficou hospedada em seu apartamento. “Ambos ficamos felizes com o reencontro, falamos das saudades que tínhamos um do outro e ela me convidou para morar na Casa do Sol. Eu voltei, mas então apenas como amigo e foi ai que começou a melhor fase da minha vida. Ficamos apenas ‘bons amigos ’ ou ‘irmãos da alma’ como ela dizia. Na Casa do Sol eu lia e escrevia muito, me preparava para publicar meu primeiro livro. Hilda e eu saímos juntos pela noite campineira, íamos ao Armorial (famoso restaurante francês que foi um point em Campinas durante décadas). Éramos super cúmplices nessas noitadas, foi uma época divertidíssima. Aí, por volta de 1975, eu convidei a Olga (Bilenki) antiga namorada para morar na Casa do Sol. Acabamos retomando o namoro: ela ficou muito amiga da Hilda. Durante anos moramos os quatro juntos: Hilda, Dante, Olga e eu. Formamos uma família eletiva. Foram anos áureos para todos nós. Realmente criamos um afeto importante, especial uns pelos outros. Era uma verdadeira fraternidade.”

José Luis publicou seu primeiro livro O Cordeiro da Casa em 1975 (Edições Quiron, São Paulo) e Fábula de um Rumo em 1980 (Editora Moderna, São Paulo) e me disse no seu humor característico que acreditava que até um “cepo calcinado” se sentia criativo na convivência com a Hilda, já que ela tinha esta qualidade de procurar e estimular o melhor do outro.  “Sempre adorei conviver com ela. Além de ser uma pessoa muito delicada e afetiva era altamente estimulante. Publiquei meu primeiro livro O cordeiro da casa aos 24 anos e Fábula de um rumo aos 29. Tenho dois contos publicados na Polônia, imagina, numa coletanea onde consta Osman Lins entre outros nomes da nossa literatura. Ela teve várias edições, parece que foi um sucesso por lá, mas na época a Polônia era comunista e não pagou um centavo pelos direitos autorais. Escritor sofre mesmo não tem jeito. Depois participei de várias coletâneas no Brasil”. Em 2007 ele estava com dois textos na gaveta: Sol no quarto principal (novela) e A Ilha vazia (texto infantil) além de um roteiro pronto sobre as obras da Hilda e em andamento um livro de contos. Pena que morreu antes de vê-los publicados.

“Hilda adorava viver com as pessoas, passou a vida convidando todo mundo que passava na sua frente para morar na Casa do Sol. Eu nunca entendi porque tão poucas pessoas moraram lá – na realidade só o Caio (que ficou uns meses, quase um ano), Olga, eu, o Yuri e anos depois o Edson Costa Duarte. Hilda sabia ouvir o outro. Olhava o outro com atenção. Existia sempre um grande intercâmbio entre as pessoas da Casa. Hilda dava muito de si – mas também recebia muito. Esse relacionamento era muito enriquecedor e estimulante para todos. Foi uma época realmente feliz.”

E vieram outras paixões na vida de Hilda Hilst e diga-se, a cada paixão correspondida, ou não, ela escrevia um livro, sendo que eu e alguns amigos mais próximos sabíamos a identidade e as minúcias dos encontros e desencontros, mas que o leitor jamais saberá, já que ela usava naturalmente outros nomes para ocultá-los. Toda essa vivência, as conversas, o clima mágico da Casa do Sol, o que aprendi com ela, sua cultura admirável e sua capacidade de se expressar de uma maneira absolutamente inédita mesmo no dia a dia, a sua extrema afetividade, seu amor pelas pessoas, pelos animais, especialmente pelos cães, sua maneira de andar devagar, fumar devagar, ser toda lenta, deixou em mim uma marca indelével. Ela vai dizer numa entrevista  que gostaria de ser mais em “stacatto” na sua obra que é todo um fluxo de quase tirar o fôlego do leitor, mas na vida real era toda lenta, assim, e ainda a vejo andando pela casa, vindo do escritório ou indo para a cozinha ou para a sala, ou no pátio, ou mesmo colocando a comida no prato – toda calma, isso ficou para sempre gravado na minha memória como os momentos mais ricos, mais luminosos e mais férteis da minha vida. Aliás, há uma unanimidade quanto a isso: os amigos que conviveram mais próximos consideram ter conhecido a Hilda o fato mais importante de suas vidas.

Este é o caso de Leusa Regina Araújo Esteves, jornalista e escritora que conheci juntamente com seu marido Leandro nos últimos vinte dias da Hilda, no Hospital das Clinicas da Unicamp quando nos revezávamos – Mora Fuentes e Olga, eu e eles, nas visitas à Hilda. “Conheci a Hilda em 1985 e desta época até sua morte convivemos intensamente à exceção de poucos anos em que estivemos afastadas – ou seja, os anos em que o Dante se mudou de Campinas e o (escritor) Yuri (Vieira dos Santos) passou a morar em sua casa. Trabalhei com Hilda como uma agente informal junto às editoras que culminou com a edição de Com os meus olhos de cão pela Brasiliense. Acompanhei Amavisse, Lory Lamby, datilografei originais de várias obras com a Maria Luiza Fúria – jornalista do jornal O Estado de São Paulo, fiz assessoria de imprensa para os lançamentos de vários títulos e tive a honra de estar entre as pessoas a quem ela dedicou Contos de Escárnio, Textos Grotescos. Leuza reconhece a dificuldade em resumir sua convivência com Hilda Hilst que considera a pessoa mais importante que conheceu no sentido de ser a pensadora mais livre com quem me deparei em sua  vida. “Hilda é sem sombra de duvida é a maior escritora brasileira além de ter sido grande amiga”.

Evidente que a Hilda não era todo o tempo esta pessoa doce, ela tinha seus repentes, seus momentos de “loucura” e isso eu ficava sabendo por relatos do Dante, mas como ela era muito aberta, não escondia nada, falava as claras sobre isso para quem quisesse ouvir. E os motivos podiam ser os mais variados: um problema com corretores na ocasião do loteamento da fazenda, alguém de quem ela não gostara numa festa, um insulto velado ou explicito, enfim como ser diferente se havia toda aquela turbulência interna, aquela intensidade que fazia dela aquela poeta e escritora que era: genial? Isso evidente ocasionou grandes, homéricas brigas com grandes amigos em determinados momentos. Nessas ocasiões eu me afastava discretamente ou mesmo estando perto, guardava certo distanciamento, ficava fora enfim, do que eu chamava de “turbilhão de paixões”. Mas de repente a tempestade amainava, e as coisas voltavam aos seus devidos lugares ou aconteciam rupturas irreversíveis. Mas isso, acredito, fosse inevitável já que a casa da Hilda era uma verdadeira comunidade. O fato é que ficou impresso na minha memória aquele clima, aquelas sensações maravilhosas que como dizíamos- os que estiveram mais próximas dela durante grande parte da sua vida na Casa do Sol: quem viveu, viveu, quem não viveu, desculpem, mas não conseguimos descrever rigorosamente. Só podemos dizer que vivemos a fase áurea da vida da Hilda, o esplendor da Casa do Sol, tivemos este privilégio, mas o destino, a gente parece que não escolhe, ou escolhe? Difícil explicar, só experimentando.
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…………………………………..Hilda, Ana, Olga e Maria Luiza

 

4. Minha convivência com Hilda

Começando então do começo conheci a Hilda logo que ela estava terminando a fase de sua dramaturgia e estava bem próxima quando ela começou a escreveu o maravilhoso Qadós hoje Kadosh, meu predileto – li dezenas de vezes e que ela terminou de escrever na casa que tinha na praia de Massaguaçú que ela chamou Casa da Lua e onde estive muitas vezes, inclusive nessa época- e que adaptei para o teatro e está inédito. A Hilda a esta altura levava uma vida simples, despojada, por que esta casa era bem menor que a Casa do Sol e me contou que todos os dias acordava, tomava café e fazia tarefas domésticas e até disse uma frase que está na novela Kadosh: “Sabe Ana, eu estou cansada de não ter tarefas. Então todos os dias limpo a casa, varro o chão e espano os móveis.”E eu presenciei uma dessas cenas que, aliás achei, incrivelmente tocante, por que tínhamos ali uma Hilda bem diferente daquela Hilda sofisticada. Ela, diga-se continuava espanando os móveis com aquela classe de sempre, mas o que quero registrar é que durante a feitura de Qadós ela de fato incorporou a personagem, ou melhor, seu lado “monge Qadós” aflorou e então temos aquela obra prima que os leitores vão poder conferir ad aeternum.

Eu frequentava a Casa do Sol quando Hilda escreveu Júbilo, memória, noviciado de uma paixão, aliás, sabia algumas minúcias dos privilegiados que tiveram a honra de serem assim eternizados nessas páginas esplendorosas enfim, as paixões que a moveram a fazer este livro. Fiz uma entrevista com ela nesta ocasião que saiu, no entanto, na forma de pequeno ensaio na Folha de São Paulo (19 de setembro de 1977) com o titulo Hilda Hilst: A poesia arrumada no caos da qual infelizmente tenho apenas fragmentos onde ela falava de sua vivencia com os pais, suas preferências na infância- ficar em silencio e ler, coisas que preocupava sua mãe, traumatizada pelo pai intelectual, poeta e que ficara louco aos 34 anos; sua soberba de ter um pai louco cuja figura no entanto ela vai esquecer e apenas se lembrar da única vez que o viu ainda são; da paixão visceral que sua mãe tinha por ele; da sua visão de Deus que não era exatamente aquele sumamente bom, infinito e amigo.

Fiz ainda uma entrevista com Hilda neste mesmo ano para uma matéria que escrevi para a Revista Nova da Editora Abril sobre o tema: Os grandes amores da História também em 1977 onde ela fala especificamente do amor e de grandes casais famosos que tiveram casos de amor e paixão. E ainda para outro artigo até hoje inédito que escrevi sobre prêmios literários durante a Bienal Nestlé de 1986 com entrevistas de escritores de diversas partes do país. Hilda, que, naquela altura já tinha vários: Pen Clube; Premio Anchieta e Premio APCA de Melhor Livro pelo livro Ficções, dizia não acreditar neles, na sua importância, porque depois de ter recebido tantos podia pelo menos ter um editor interessado em publicar suas obras completas, de forma profissional esclareçamos. Porque publicada ela era, e seu editor mais constante e mais fiel foi o Massao Ohno. Mas como era um artista antes de tudo, o Massao editava, mas não distribuía, o que ocasionava, por exemplo, eventos do tipo: as pessoas iam às livrarias e procuravam livros da Hilda Hilst e os livreiros respondiam que o referido estava esgotado.

Um dia eu mesma estive numa livraria de Campinas para comprar justamente Ficções, já que o meu exemplar se fora, emprestado para alguém que nunca me devolvera. O rapaz me disse: “Mas os livros da Hilda Hilst estão esgotados.” Respondi: não, eu sou amiga dela, frequento sua casa e sei que eles não estão. O jovem me olhou de forma estranha, mas ele não tinha responsabilidade no caso. “Só ter recebido o Premio APCA, por exemplo, já deveria dar fama a um escritor. O Anchieta poderia significar a edição do meu teatro. Mas nada disso aconteceu comigo. Nunca tive a chancela de uma editora. Só agora, recentemente, recebi um convite do Caio Graco da Brasiliense.” Em compensação Hilda lembrava que havia uma parte da critica que a consagrava – o Leo Gilson Ribeiro que gostava muito do seu trabalho, a Nelly Novaes Coelho e o falecido critico alemão que se radicara no Brasil: Anatol Rosenfeld, um dos primeiros, segundo ela, a chamar a atenção do público para a importância do seu texto.

Estive próxima ainda no período em que Hilda escrevia esta maravilha que é Tu não te moves de ti, e que pretendo adaptar para o teatro e ainda quando ela escreveu Da morte. Odes mínimas e A obscena senhora D. Lembro-me de ter perguntado: “Por que D, Hilda?” E ela me disse: “D de derrilição, de desamparo”, frase, aliás, que inicia o livro e do qual ouvi a leitura de alguns trechos em primeira mão, por ela mesma, sentada na sala da Casa do Sol e sequer imaginando que ele faria tanto sucesso mais tarde e seria considerada mesmo sua obra prima.  E ainda estive em muitos dos seus lançamentos, alguns na Livraria Cultura em São Paulo, onde eu morava na época e mesmo em Campinas, onde lançou algumas obras pela Editora Pontes e também na casa do seu editor mais assíduo – Massao Ohno durante a articulação de algumas publicações. Por exemplo, vi o fotógrafo fazer a foto em que ela está com o Massao no lançamento de um dos seus livros e que está na quarta capa de Amavisse onde ela anuncia o lançamento de Lori Lamby.
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…………….Massao e Hilda – quarta capa de Amavisse

 

E estava também próxima quando Hilda resolveu dar aquela famosa guinada na sua carreira escrevendo O Caderno rosa de Lori Lamby, e me lembro da cena como se fosse hoje, que sentados à mesa, aquela enorme mesa que fica na sala: Hilda, eu, Léo Gilson Ribeiro, Almeida Prado e algumas outras pessoas que não me recordo exatamente, ela leu para nós e foi aquele silêncio ensurdecedor. Eu o Léo decididamente ficamos escandalizados porque considerávamos que ela não precisava deste artifício ou estratégia para ser lida, aliás, no momento ali, nem pensávamos nisso, só ficamos paralisados porque julgávamos que com aquele livro ela poderia por a perder todo o deslumbrante trabalho realizado até então. Enfim, o tempo mostrou que isso não ocorreu, mas naquele particular momento não sabíamos ainda como seria o futuro. Não sabíamos que a partir deste livro e dois outros que compõem a famosa trilogia erótica: Contos de Escárnio, Textos Grotescos e Cartas de um sedutor ela seria finalmente conhecida não apenas pelos brasileiros, mas fora do Brasil.

Mas depois disso ainda frequentei bastante a Casa do Sol e era sempre uma festa cada ida lá, convivendo com aqueles amigos de sempre: Leo Gilson, Rofran Fernandes, Lygia Fagundes Telles, grande amiga, com quem fiz duas entrevistas. Uma delas, que fiz para Jornal de Hoje de Campinas quando era editora de Lazer e Cultura (1979-1981), foi realizada numa das temporadas que a escritora lá esteve. Para o mesmo jornal fiz uma linda e longa entrevista com o Léo Gilson Ribeiro, quando esteve em Campinas para um Congresso de Literatura na Unicamp e me lembro que a Hilda que estava na sala com alguns amigos vinha de quando em quando à varanda onde estávamos e perguntava: “Mas ainda não acabou?”
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…………………Léo Gilson Ribeiro

 

Para o Jornal de Hoje fiz com ela uma entrevista em 1981 sobre sua experiencia com os gravadores que registravam vozes de pessoas mortas que viviam em outros planos. Não tenho o original desta entrevista por que emprestei esta e outras para um jornalista e ele nunca me devolveu. E ninguém sabe em Campinas onde estão os arquivos deste jornal para provar que a cidade cuida bem de sua memória. E na matéria que escrevi sobre ela foi publicada no D O Leitura (São Paulo: Hilda Hilst (4 -8-1985) usei uma estratégia que hoje, olhando de longe considero muito boa,  para tentar fazer o leitor entender um pouco mais a obra difícil, considerada aquela altura hermética por muitos. E ainda, como havia uma curiosidade incrível sobre toda  a vida da Hilda e sua casa, os artistas que a freqüentavam a ponto de o editor da revista em que eu trabalhava na época- Escola da  Editora Abril, o Wladimir Araújo (falecido – não localizei ainda as datas) e um dos redatores que a admirava muito o famoso jornalista Dorian Jorge Freire(1933-2005) queriam saber tudo quando eu chegava as segundas feiras à redação especialmente quando sabiam que eu estivera em Campinas, minha cidade natal.

Eles vinham curiosos para minha mesa em busca de novidades sobre a Hilda e os amigos: enfim o que havia acontecido, quem estava namorando quem, quais eram as novas paixões dela. Por tudo isso, resolvi começar introduzindo o leitor no interior da casa da escritora e no interior de sua obra, ouvindo de sua própria boca, como, aliás, já fizera em outras ocasiões, como era o seu processo criativo. Fiz esta matéria justamente a pedido do citado Wladimir Araújo que era editor do D O Leitura na ocasião (o Suplemento de Leitura do Diário Oficial que hoje se transformou em revista) e como acredito, que eu tivesse demorado para dar sinal de vida, coisa extravagante  por que em geral sou pontual nos meus prazos, ele me mandou um bilhete que vou reproduzir aqui pedindo a dita matéria já que eu havia sumido. Mas tudo isso hoje, vendo de longe, fica bom para a posteridade saber das minúcias dos eventos.

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………………………………..Bilhete do Vladimir Araújo
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É isso que vou fazer agora neste livro, onde tento, já que a empreitada não é das mais fáceis – uma panorâmica de sua vida e obra, já que não sou critica literária, apenas uma jornalista que teve o privilégio de conviver durante uma parte da sua vida- por sorte a parte mais fértil, a parte mais esplendorosa e ter estado próxima dela no período da feitura de muitas de suas obras mais importantes, no auge mesmo da sua vida e saber, por exemplo, o momento que ela passava por quem ou por qual idéia ela estava apaixonada, afinal qual era o móvel daquele determinado livro.

Anos mais tarde a entrevistei novamente desta vez para um Caderno Especial que criei para o Diário do Povo de Campinas sobre o tema Natal e a Esperança que saiu no dia 25 de dezembro de 1988 e para o qual colhi depoimentos de especialistas de diversas áreas: psicanalistas, filósofos, teólogos, juristas, economistas, artistas entre eles o José Antonio de Almeida Prado e J. Toledo. Para todos perguntava sobre a situação do Brasil naquele momento, como retomar a esperança depois de anos de ditadura e naturalmente sobre sua crença em Deus. A Hilda e o Almeida Prado me falaram especialmente da sua visão de Deus sendo que ela cita seus autores prediletos entre eles Nikos Kazantzakis, Paul Tillich e evidente aborda sua própria concepção deste Inominável que ela chama de tantos nomes em sua obra, especialmente em Kadosh.

Houve outros momentos em que estive com ela, por exemplo, no ensaio geral da peça As Aves da Noite encenada por um grupo paulistano e ainda na apresentação, na estreia da peça A Morte do Patriarca, apresentada pela Oficina de Estudos Teatrais com direção de Adolfo Mazzarini, no Teatro do SESC-Bonfim, em Campinas, no ano de 1991. Estive ainda algumas vezes com a Hilda – e isso para quem não bebe foi uma experiência inédita – no bar do Almeida Salles, onde todos saem de lá completamente embriagados, mas felizes pelo que me consta e também num jantar no Gigetto (conhecido restaurante de São Paulo) com o cineasta, já falecido, Walter Hugo Khouri. E muitas vezes conversando com ela, nós duas, quando ela me ligava me convidando para ir lá.

Às vezes me ligava, queria conversar, estava sozinha ou só com Dante como num certo domingo em que ligou dizendo: “Ana eu estava aqui tristinha e o Dante me disse – por que voce não liga para a Ana?” Eu respondi: Hilda voce quer que vá ai? Ela: Gostaria. Simplesmente  peguei o carro e fui para sua casa. Ou em ocasiões em que simplesmente resolvia dar uma pausa no trabalho e ia para a Casa do Sol em plena semana: era a glória. Parecia que eu estava em férias – era o clima que rodeava a Hilda, era sua magia particular, sua presença sempre acolhedora e alegre.

Em geral eu passava o Natal e o Réveillon na Casa do Sol e presenciei o inicio da paixão da Hilda pelo primo, Wilson Hilst, que coincidiu justamente com um fato sumamente importante da sua carreira: ela ganhou o Grande Prêmio da Crítica por sua obra completa-até aquele momento, já que na sequência ganharia outros, e que cujo relacionamento está registrado numa matéria feita pelo José Hamilton Ribeiro, que era diretor do Jornal de Hoje, de Campinas, a quem apresentei também a Hilda.  Talvez esta tenha sido uma das suas últimas paixões, ou um dos últimos namorados que viveram na Casa do Sol. Por falar nisso, o prêmio ela não foi receber.  Aconteceram outras paixões, evidente, já que isso era fundamental para ela: viver apaixonada, não necessariamente por homens, mas por ideias. Mas a esta altura, por circunstâncias particulares, me afastei de Campinas e por consequência dos amigos e da Hilda, queria mudar de ares, sair um pouco de São Paulo e então me mudei para o Rio de Janeiro onde morei pouco tempo.

Depois da temporada carioca voltei para São Paulo, e depois para Campinas e iniciei então uma nova fase da minha vida.  A esta altura passei a frequentar novamente a Casa do Sol, agora com o compositor de música erudita contemporânea, à época professor de composição no Instituto de Artes da Unicamp, José Antonio Almeida Prado (8 de fevereiro de 1943-21 -de novembro de 2010), que teve um papel importante nessa minha conversão e que para quem não sabe era seu primo. Quero registrar, no entanto, que já o conhecia, mas nos encontrávamos raramente em algum vernissage ou concerto porque justamente eu morava em São Paulo, ele em Campinas e para completar fazia muitas viagens para o exterior. E, por incrível que possa parecer, eu nunca o encontrara na casa da Hilda.

Foi a partir de uma entrevista que fiz com ele para o referido Jornal de Hoje que o conheci melhor, sendo qur na época ele estava casado com uma musicista. Cerca de vinte anos mais tarde eu o encontrei por acaso, ou providência divina, num shopping de Campinas e então fiz longa entrevista sobre sua vida e obra para a Revista Artes de São Paulo, e comecei em seguida a frequentar com ele, missas e grupos de oração em Campinas e como ele convivia com pessoas que falavam todo o tempo de Medjugorje, sendo que la estivera, quero dizer naquele local de aparições, fiquei também completamente fascinada por aqueles relatos. Na sequência ele me emprestou um livro sobre as aparições da Virgem em Medjugorje:  que na sequencia traduzi do francês. Em seguida comecei a pesquisar o tema das aparições da Virgem embora continuasse com minhas matérias na área de arte e cultura e ter feito mestrado na Unicamp durante os anos de 1990 a 1993.
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……Almeida Prado, Hilda Hilst, Iara e José Luis Mora Fuentes – arquivo pessoal

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Mas posso dizer com certeza que a religiosidade da Hilda, que permeia toda a sua obra – ainda que a sua fase dita pornográfica pareça desmentir isso -, teve uma enorme influência na minha volta para a igreja ainda que isso pareça contraditório e absurdo para muitos.  Na verdade sua vida foi uma intensa  busca de Deus, que ela chamou de tantos nomes, e daí nossas afinidades, já que eu também sempre fui essa religiosa no sentido da palavra religare – que é estar ligada em Deus. E esse Deus como sempre nos seus desígnios insondáveis, vai fazer com que o seu primo, o José Antonio Almeida Prado, fosse seu instrumento para consolidar a minha conversão, que começara em São Paulo e que provocou uma mudança radical em minha vida.

E certo dia ela me ligou pedindo informações sobre a data da beatificação de frei Maximiliano, cuja prisão e morte ela aborda em sua peça As Aves da Noite. Como na altura eu já estava bastante engajada na igreja católica, consultei um padre e dei a informação para ela: ele foi beatificado no dia 17 de outubro de 1971, trinta anos após sua morte sendo que no dia 10 outubro de 1982 foi canonizado como mártir pela caridade, pelo papa recentemente falecido João Paulo II. Consta que na ocasião havia mais de 200 mil pessoas na Praça de São Pedro entre elas Francisco Gajpowniczek, o pai de família por quem o agora Santo Maximiliano dera a vida no campo de Auchwitz. Na homilia da missa de canonização, o Santo Padre assim se expressou: “Pela morte que pereceu, frei Maximiliano renovou-se, e neste nosso século tão ameaçado pelo pecado e pela morte, nos deu aquele sinal transparente de amor. Para este extremo sacrifício, Maximiliano ia-se preparando, seguindo Cristo desde os primeiros anos da sua infância. Um grande amor por Cristo e um desejo de martírio acompanhavam-no no caminho da vocação franciscana e sacerdotal. Maximiliano não morreu, deu a sua vida pelo irmão. É por isso que sua morte tornou-se sinal de vitória. Vitória sobre todo o sistema de desprezo e ódio do homem, e daquilo que no homem há de divino, vitória semelhante àquela que levou Nosso Senhor Jesus Cristo ao Calvário”. E finalmente o papa João Paulo II o proclamou “o patrono dos tempos difíceis” e o “profeta da civilização do amor”.
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Santo Maximiliano Kolbe- site Milícia da Imaculada

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Ana Lúcia Vasconcelos é atriz, jornalista, escritora e tradutora, licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp, e acaba de preparar um livro ainda inédito sobre Hilda Hilst que o MUSA RARA publica em partes. E-mail: analuvasconcelos@globo.com

 




Comentários (5 comentários)

  1. Paulo Miguel Flexa, PARABÉNS AO MUSA RARA POR ESTA INCURSÃO À CASA DO SOL. ESPLENDOROSA ESTREIA!
    11 fevereiro, 2012 as 22:58
  2. Dayz Peixoto, Dos detalhes aos cenários, a memória de Ana Lúcia Vasconcelos busca a ação e as razões do texto e talvez do sentido da vida da escritora Hilda Hilst. O grau de proximidade da jornalista com a escritora garante-lhe vertentes de intimidade e de veracidade para uma autêntica biografia. Agora, vamos esperar a publicação. E viva a memória!
    12 fevereiro, 2012 as 14:18
  3. Leo Lobos, Mis saludos y felicitaciones por esta publicación, un trabajo sensible, inteligente e informado de una persona cercana a la gran escritora Hilda Hilst, una maravilla que agradecemos desde Santiago de Chile, un abrazo para ustedes y especialmente para Ana Lucia, salud Leo Lobos
    14 fevereiro, 2012 as 17:39
  4. Ana Lucia Vasconcelos, Days, Leo muito obrigada pelos comentários sobre este texto que escrevi sobre a Hilda.É muito bom saber que ele dá tanto prazer a voces como me deu a mim de escrevê-lo ja que remomorei minha amizade com esta poeta, escritora tão maravilhosamente genial. Gracias tambem ao Paulo Miguel Flexa!!
    21 outubro, 2012 as 2:25

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