Meu verbete POESIA em 1.118 palavras


[Da série ‘meu verbete x em 1.118 palavras’]*

 

A investigação acerca da poesia busca questionar a essência da ação denominada póiesis, da qual etimologicamente se origina e à qual, como sentido, corresponde. O verbo poiéo é, em grego, o agir cuja obra é o poiema (poema). Sabemos que o sufixo “–ma”, acrescido aos radicais dos verbos gregos, nomeava a obra de uma ação, diferentemente do sufixo “–sis”, que nomeava a própria ação como tal. A princípio e originariamente, todo poema deve ser uma obra cujo dizer nos dá notícias da vitalidade da póiesis. “Dá notícias” porque não a diz de todo e de fato, já que dizê-la de todo e de fato seria dar cabo da poesia de uma vez por todas, seria deixar-nos saber cabalmente o que ela é e não é. Embora cada poema queira obstinadamente cumprir a tarefa de dizer de fato a poesia, é no que cada qual deixa de dizer, ao longo do que diz, que a ouvimos. Assim, no silêncio do que não disse de fato, o poema guarda o que ouvimos: poesia. É neste sentido e nesta tarefa de dar notícias do que ele não é que o poema é e não é poesia e que a poesia é e não é poema. Em todo percurso da crítica e da tradição metafísica, principalmente na modernidade, perpetrou-se reiteradamente o esquecimento desse silêncio fundador que articula obra e póiesis. Ignorou-se que em cada gesto de imagem e a cada palavra do poema, esconde-se a sua fonte originária, capaz de nos sobressaltar e fazer pressentir, também como gesto ou palavra, a obra da poesia. Com esse olvido da tradição, o poema deixou de ser experienciado como obra para ser analisado como forma. O poema tornou-se, sem ser obra, uma forma.

A partir dessa perda essencial que deu primazia à forma sobre a obra, erigiu-se uma atitude crítica, com critérios precipuamente formais, para empreender a investigação sobre a poesia: para se chegar à poesia seria necessário, segundo essa tradição, analisar as estruturas formais do poema. Deste modo, sendo tratado exclusivamente como formas, os poemas permitiriam, a partir do cotejamento entre o específico de cada um, uma estrutura imanente que garantisse o gênero comum ao qual todos, com suas formas, devem corresponder. A poesia passou a ser entendida como gênero, o gênero dos poemas, isto é, uma forma universal “abstrata” extraída de formas específicas. Nesta concepção, a póiesis deixa de ser a medida e o princípio de ação que produz a obra e é substituída por outro princípio de produção e outra medida para a ação, que será entendida, desta vez conceitualmente, como a técnica que gera o poema/forma. Esse não teria mais a tarefa de “dar notícias” daquela vitalidade originária de toda obra, que nos faz saltar para o poético.

Percebemos com certa simplicidade que, se o poema não for obra, mas forma, ele também não será garantia de poesia, nem nos afiançará que poderemos, a partir dele, pressentir e experienciar o que ela é e não é. Sendo o poema apenas forma, não poderemos garantir, outrossim, se tratar sequer de uma obra da póiesis, de uma obra da poesia. Da mesma maneira, a poesia jamais poderá ser considerada exclusividade do poema, pois de muitas formas e infinitas maneiras ela pode se realizar enquanto obra, e de outras tantas formas poderemos ser tocados por ela, poderemos ouvi-la. Notamos aqui um círculo vicioso dentro da lógica formalista, pois está claro que se o poema como forma não garante a poesia, esta também não pode garantir a formalidade do poema. Isso é válido, inclusive, para as mais recentes tentativas de certos movimentos dentro da tradição formal que tentam determinar, de maneira minimalista, uma estrutura ínfima que caracterize o poético, como é o caso dos continuadores dos formalistas russos, ou mesmo dos concretistas, que defendem ser determinante, para a presença da poesia, o trato formal da materialidade da língua numa obra, portanto, uma espécie de poema mínimo. De certo, fica evidente que devemos voltar nossos olhos ao momento inicial da nossa questão, no qual se deve recolocar de maneira apropriada a investigação sobre a essência da poesia, portanto, da póiesis. É verdade que, para termos notícias desse silêncio originário da poesia nas obras, é preciso uma atitude crítica autêntica, um dispor-se que, todavia, deve ser diferente e ainda superar a perspectiva majoritária da tradição metafísica e formalista. Por essa atitude autêntica esperamos ser tocados pela poesia através do silêncio guardado nas suas obras (poiemai).

Sendo silêncio, a poesia nos desafia a pensar o que não sabemos, ao mesmo tempo em que nos exige uma fala apropriada e empenhada de dentro da obra. É o que ouvimos nas palavras iniciais de Riobaldo a seu interlocutor: “Vou lhe falar… Do que não sei… Não sei. Ninguém ainda não sabe.” (Rosa, 1956). Para falarmos apropriadamente do que não sabemos, devemos nos instalar na vitalidade atuante e realizadora da póiesis, acolher a fala que se nos dá sempre de dentro e a partir do originário das obras. Disso depende nossa atitude autêntica na experienciação da poesia. Do contrário, estaremos sempre posicionados fora da terra que nos envida à apropriação de um pensar e dizer poéticos e, portanto, distantes de uma atitude autêntica frente à poesia. No sentido deste apelo a uma autenticidade poética que atravesse toda nossa atitude, devemos entender as palavras de F.Hölderlin: “poeticamente o homem habita esta terra”. Esse habitar poeticamente a terra é a tarefa do homem tomado pela moção poética (poiésis) da linguagem, pela qual se move, co-movido. Só o homem é capaz de co-mover-se poeticamente com a linguagem. Em contrapartida, não é possível ao homem falar desse silêncio da poesia, estando alheio à co-moção, alheio a esse mover-se na moção que realiza a obra. É preciso nos dispormos, então, a “habitar poeticamente esta terra” que a poesia nos dá como obra.

Esse habitar poético, todavia, não é uma vontade subjetiva nossa que se estende à obra, pois não nos seria possível ser primeiro poéticos, por mero desejo, para então compreendermos, com nossa existência, a poesia. Na verdade, somos e compreendemos poeticamente, porque já dispomos de uma referência mútua que conosco conjuga a obra. Homem e obra se conjugam mútua e poeticamente pela poesia: também, poeticamente, “esta terra” habita o homem. A obra habita o homem enquanto ambos são reunidos na instalação de um mundo que deve ser – poeticamente. A esse mundo o homem deve obediência, a fim de se dispor à escuta da poesia e reconhecer na obra o que silente o convida a ser – poeticamente. Essa necessária imbricação de homem e obra na instalação de mundo na e pela poesia, torna evidente que tentar-se descobrir o que é poesia pela simples observação da obra é uma ambição inconsistente e uma tarefa impossível.

 

 

*Esse verbete pertence à série “Meu verbete x em 1118 palavras”. Publicarei alguns dos verbetes também no livro “Convite ao pensar”, ainda em processo, que está sendo organizado e idealizado pelos teóricos Manuel Antonio de Castro e Igor Fagundes.

 

 

 

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Referências bibliográficas

 

CASTRO, Manuel Antonio de. O Acontecer poético. Rio de janeiro: Antares, 1982.

_______. Crítica e História literária. In: Eduardo Portella (org.). Teoria Literária. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

_______. A origem da Obra de Arte. Trad. Idalina Azevedo e Manuel Antonio de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010.

HORTA, Guida Nedda B. P. Os gregos e seu idioma. Rio de janeiro: Livraria Acadêmica, 1970.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Apresentação. In: Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. 15ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

 

 

 

 

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Ronaldo Ferrito é ensaísta, poeta e editor da Confraria do Vento. Doutorando em Poética, pela UFRJ, publicou o livro A Via Excêntrica (2010), premiado com a bolsa para escritores da FBN, na categoria ensaios literários. E-mail: roferrito@gmail.com




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