Machado, leitor e formador


………Machado de Assis, (grande) leitor, (grande) formador de leitor

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na atualidade do incremento generalizado na ênfase à necessidade e estímulos à leitura como instrumento capital de formação educacional, cultural e intelectual indispensável reportar a Machado de Assis, sua constituição literária e notável capacidade formativa de leitores – não apenas os de seu tempo, mas de hoje e de sempre.

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Quer particularmente, quer de modo geral, o leitor e a leitura dos textos de Machado de Assis oferecem elementos essenciais para a exposição, determinação e compreensão dos hábitos, formas, gostos de leitura vigentes na segunda metade do século XIX. Sobretudo delineiam os desenhos, contornos e âmago de um pano de fundo cultural, educacional, intelectual vigente nos Oitocentos brasileiro – ligeiramente evoluído, nos primeiros tempos dos Novecentos.

Machado ‘encontrou’, desde os primórdios de sua atividade literária, um público leitor – restrito e incipiente, como o era o leitorado durante todo o século XIX, vivente e componente em uma sociedade de elevadíssimo nível de analfabetismo, inserido num contexto cultural de prática de leitura quase que exclusivamente em jornais, de resto baseada preponderantemente na oralidade; quando dos primeiros anos do século XX, já ‘dispunha’ (pelos 8 anos em que viveu nos Novecentos) de leitores em maior número, melhor formados e instruídos (embora os índices de alfabetização e educacionais ainda se mostrassem bastante precários, absolutamente insatisfatórios .

Significativo é sob todos os aspectos e sentidos que a expansão quantitativa, formação e consolidação (embora relativa) do leitorado oitocentista – decorrente da regularização e profissionalização da atividade editorial a partir da década de 1870 oferecem importantes vetores de reflexão acerca de suas relações e interações com as obras e produções machadianas   dentro do  conhecido (e reconhecido) processo de sua evolução literária e a histórica inflexão no início de 1880.

A inclusão de Machado e de sua obra no cenário oitocentista de carência educacional, incipiência de leitura, exiguidade do leitorado e aridez cultural implicou, de resto, em grande responsabilidade: ainda em seus primórdios autorais, escritor de notáveis recursos intelectuais, culturais e literários, desde o início gerador de textos, quer não-ficcionais quer ficcionais, de especiais características de tema, estilo, linguagem, etc., não poderia ‘fugir à missão [sic]”, de transmitir a esse leitor – reduzido numericamente, limitado por injunções e fatores de ordem cultural e social, condicionado a certos tipos e padrões de leitura então imperantes — autores, obras e textos de elevadas qualidade e significância literárias, intelectuais, etc.: em sua maioria,  exemplares e representantes efetivos de um nível, idealizado por Machado, que inevitavelmente pudesse propiciar e estimular  embasamento cultural e intelectual  a esses leitores.

‘Esbarrou’, confrontou-se com uma das grandes questões – por certo, a maior delas – prevalecentes ao longo do século XIX: o extremamente deficiente quadro educacional do país e os elevados níveis de analfabetismo.

Malgrado todas as deficiências estruturais e conjunturais, Machado sempre respeitou o leitor de seu tempo, moldando sua escrita, sua narrativa, seus textos (ficcionais e não ficcionais) ao gosto, hábitos e expectativas do receptor de sua obra – apesar de sempre buscar [ele, Machado] promover certas variações e ‘subversões’, praticar  provocações e desafios, com o intuito de cada vez mais fazer o leitor integrar-se ao que lhe era posto diante dos olhos. Justamente por respeitá-lo, e empenhar-se em enredá-lo na narrativa e estimulá-lo a assumir interpretação própria dos elementos narrados, foi um excepcional formador desse leitor, oferecendo-lhe todas as possibilidades de informação, conhecimento e acesso a autores, obras e textos os mais representativos e expressivos da Literatura, brasileira e sobremodo estrangeira.

Aqui, o elemento e vetor sumamente relevante – por certo, o mais relevante: a formação de leitor por parte de Machado deu-se por meio das inúmeras – quantitativa e qualitativamente significativas, preciosas – citações, alusões, referências e recorrências de autores, obras e textos realizadas em seus escritos publicados (nos contos, nos romances, poemas, peças teatrais, traduções, nas crônicas, artigos e ensaios, na crítica literária, crítica teatral), as quais expressaram, de fato, transferências ou melhor, ‘transplantes’ de autores, obras e textos inerentes à sua própria formação literária e intelectual – constituída por suas leituras (na biblioteca pessoal, doméstica, e nas consultas junto a bibliotecas públicas e gabinetes de leitura) – efetivados por Machado. Importante ainda revelar que o conjunto das citações constitui o que estudiosos machadianos definem como sua “obra invisível”.

Sob a égide e o ‘domínio’ do Romantismo – cuja grande contribuição para o país foi possibilitar a criação da ideia de cultura e de identidade nacionais, com a popularização das letras, por via do aumento do número de periódicos, alguns com linha editorial exclusivamente artístico-literária – Machado, cronologicamente primeiro nos contos, em seguida nos romances dirigia- se (não poderia ser diferente) ao leitor, que era do ‘público de jornal’, afeito aos folhetins estrangeiros,  ‘submisso’ aos elementos e parâmetros românticos – e assim moldava e construía suas tramas, sua narrativa e evocava citações e alusões a autores e obras basicamente românticos.

Quer nas narrativas curtas quer nos romances, Machado já apontava para um certo afastamento do padrão literário romântico vigente e contrariava as expectativas do leitor brasileiro de então – seduzido, acostumado e ‘treinado’ por histórias de forte apelo sentimental, inteiramente afeito aos folhetins estrangeiros. Esboçado, embora de modo esparso e incipiente, nos contos anteriores, incrementado em seguida nos romances – desde Ressurreição (1872), passando em graus diferentes e variados, por A mão e a luva (1874) Helena (1876): o seguinte, Iaiá Garcia já revela outros elementos e vieses (até por ser publicado em 1878, ano crucial na evolução literária machadiana) – punha um narrador claramente empenhado em contrariar as expectativas desse leitor, chegando mesmo a interpor entre a obra, vale dizer a trama, a história, a narrativa, e o leitor lentes e filtros nitidamente anti-românticos: propunha-se sobretudo, ainda que sob as balizas do gosto romântico, a criar, formar e constituir um novo leitor,distanciado da prosa convencional, um “leitor perspicaz”, um “leitor arguto”, um leitor precursor das futuras obras.

Ainda no início da década de 1870 Machado já percebia que o melodrama, ou o estilo, a narrativa melodramática, não eram suficientes, adequadas para descrever e revelar a sociedade brasileira de então – e em contrapartida tinha plena consciência da insuficiência quantitativa de público, entre leitores reais e leitores potenciais de literatura, para sustentar uma,digamos,  ficção popular, que era seu projeto preponderante.

Em Iaiá Garcia procura ‘ajustar’ seu leitor desejado, idealizado ao leitor real, de fato existente então no país. Aproximava-se   – mas não de todo, sempre o subvertendo aqui e ali e oferecendo variantes – ao gosto da maior parte do público leitor, ainda apegado a narrativas românticas, sentimentais, melodramáticas, o melodrama dado e usado como estratégia dos primeiros tempos  para atingir o público leitor de folhetim: estratégia que começava a ser alterada, pois já experimentava-se então o advento de um novo meio e veículo de leitura: o livro.

De um modo geral, os leitores que Machado figurou e formou nos contos publicados até à década de 1870 e nos primeiros romances caracterizam-se, a par de relativa não homogeneidade entre eles, pelo plano machadiano de prepará-los para receber inovações e variações na estética, na estilística, na narrativa romântica. Machado já apontava para um certo afastamento do padrão romântico literariamente vigente e contrariava as  expectativas do leitor brasileiro do início da década de 1870, propondo-se  sobretudo – esboçado,embora esparsa e incipientemente,  nos contos anteriores e nos dois primeiros romances – a ‘criar’ e constituir um novo leitor,distanciado da prosa convencional, ainda que mantido sob as ‘balizas’ do gosto romântico, como não poderia deixar de ser : um “leitor perspicaz”, um “leitor arguto”, um leitor precursor das futuras obras.

Leitor que iria sofrer substancial, e quase radical,  transformação a partir de 1880, quando passa a ser  provocado, instado a descobrir significados ocultos e subjacentes, sub-reptícios nos textos machadianos – seja nos romances, a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, seja nos contos, notadamente naqueles enfeixados em Papéis avulsos, seja nas crônicas (o que já se iniciara em “Notas Semanais”, em O Cruzeiro, 1878, retificado em “Balas de Estalo”, na Gazeta de Notícias, 1883-86 , consolidado em “Bons Dias!”, Gazeta de Notícias, 1888-89, confirmado em “A Semana”,Gazeta de Notícias, 1892-1900)) – e estimulado a ter suas próprias opinião e posição. O leitor colocado como que num estado de alerta para as aparências das linhas narrativas – posto diante do conhecido ‘narrador enganoso, não confiável ’ machadiano.

Ao longo de sua produção literária, o leitor é induzido por Machado (antes, pioneiramente, por Manuel Antonio de Almeida em Memórias de um sargento de milícias) gradativamente, de forma sincopada – e sutilmente –a deixar de ser tutelado e tornar-se atuante no próprio texto e no processo de sua construção e sua narrativa – um processo narrador-leitor que é diferente, independente da relação autor-público. Nisto, o vetor basilar, a essência mesma, do projeto literário machadiano, ou (já se pode aqui mencionar) do ‘sistema literário Machado de Assis’, escritor extremamente consciente de  sua responsabilidade e de sua missão, empenhado na formação de leitores – e mais : incorporados à sua obra  como verdadeiros leitores-personagens, habitantes  tanto do  universo ficcional  quanto do universo não-ficcional criados .

Por intermédio de Machado, o leitor é incluído, inserido e integrado não só ao processo de leitura mas também ao processo de narração, na maioria das vezes  na condição de ‘intérprete’ – o que de resto  confere a ele a suma condição de narratário,  ou de narratários, múltiplos e distintos, uma vez que em Machado uma narrativa, mormente ficcional, pode possuir vários níveis, criadas narrativas dentro de narrativas, cada uma dirigida a um narratário distinto.

Ao mesmo tempo em que o narrador machadiano, seja em primeira ou terceira- pessoa, oferece ao leitor sua versão e interpretação dos fatos narrados, vai deixando pelo caminho ‘pistas falsas’, estimulantes e indutoras à dúvida, numa verdadeira armadilha para enredá-lo nos meandros tanto da narrativa ficcional como da não-ficcional: mestre do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza, do disfarce e do enigma, Machado esconde ou disfarça uma parte da verdade e desafia o leitor a descobri-la e fazê-la emergir, utilizando armadilhas retóricas típicas de sua narrativa quer na ficção quer na não-ficção: daí, estabelecendo e explorando as interações e interlocuções  entre autor, narrador e leitor até o limite possível. Sob e dentro do processo de evolução literária, mutações e transformações, do narrador e da voz narrativa, de formas e de linguagem, em diversos vieses de sua ficção e de sua não ficção, foram utilizadas por Machado para a criação — melhor dizendo, a construção – de um ‘novo’ leitor, descondicionando o leitor empírico do leitor-modelo (como ninguém na literatura brasileira) e ‘desconstruindo’ essa relação.

As relações intertextuais das obras de Machado de Assis com a produção literária ocidental fizeram dele um verdadeiro, genuíno leitor-escritor. Suas citações, alusões, remissões e referências a autores e obras revelam um aplicado, esmerado  leitor, determinado e crítico, construindo sua obra literária fundamentada e lastreada em um processo permanente, intenso, de leitura:  efetivo consolidador da linguagem literária brasileira nos Oitocentos, o primeiro grande formador – reitero a assertiva : o maior ‘construtor’ – de leitor no país.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Mauro Rosso é pesquisador de literatura brasileira, ensaísta, autor de livros impressos e e-books. Prepara a obra “Machado de Assis: uma biografia literária – fontes da formação intelectual”, da qual este texto foi extraído. E-mail: rosso.mauro@gmail.com

 




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