Literatura de esquerda


…………..“Literatura de esquerda”, de Damián Tabarovsky

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Ao contrário do que o título poderia sugerir, “Literatura de esquerda” não é um ensaio que se debruça sobre obras e autores que se colocam sob uma perspectiva política de esquerda, mas um ensaio que põe em xeque o lugar da literatura hoje, o que realmente a anima e quais são as suas estratégias diante da criação. Segundo o autor, mesmo um escritor ideologicamente de esquerda pode ser formalmente conservador e manter-se enredado em convenções ultrapassadas que aprisionam a atividade escritural. A academia e o mercado, por exemplo, seriam as duas grandes figuras em relação às quais o escritor deveria se insurgir, de modo a liberar a literatura e deixá-la à deriva de sua própria indeterminação. O escritor de esquerda realizaria a negatividade na própria literatura ao recusar, portanto, a academia, o mercado, a crítica, a notoriedade e a recepção como balizadores de sua própria escritura, e nessa recusa, entregaria-se apenas às regras inerentes à linguagem.

Publicado em 2004, o livro causou polêmica no meio literário argentino devido ao seu tom provocador e desestabilizador dos cânones, todos eles devidamente nomeados. O leitor encontrará no ensaio inúmeras referências à literatura argentina, mas também latino-americana e europeia – sejam elas alvos ou aliados da crítica. Para muitos leitores, as teses de Tabarovsky valeriam, portanto, não apenas para a literatura argentina (sua principal mira), mas também para a literatura espanhola e outros países da América Latina. Apresentamos a obra ao leitor brasileiro para que este, finalmente, possa se inserir na discussão e atualizá-la a partir de suas próprias referências.

 

[“Literatura de esquerda” seria publicado pela extinta editora Cosac Naify e teve seus direitos repassados à Relicário Edições.]

 

 

Trecho do livro:

“Enquanto o mercado e a academia escrevem a favor de suas convenções, a literatura que me interessa – a literatura de esquerda – suspeita de toda con­venção, inclusive as próprias. Não busca inaugurar um novo paradigma, mas pôr em xeque a própria ideia de paradigma, a própria ideia de ordem literária, qualquer que seja essa ordem. Trata-se de uma literatura que escreve sempre pensando no lado de fora, mas num lado de fora que não é real; esse fora não é público, a crítica, a circulação, a posteridade, a tese de doutorado, a sociologia a recepção, a contracapa, o tapinha no ombro. Esse fora nem sequer é a tradição, a angústia das influências, outros livros. Não. Tal fora convencional está vetado para a literatura de esquerda, porque a literatura de esquerda é escrita pelo escritor sem público, pelo escritor que escreve para ninguém, em nome de ninguém, sem outra rede além do desejo louco de novidade. Essa literatura não se dirige ao público: se dirige à linguagem. Não se trata da oposição romance e trama versus romance de linguagem – que é o mesmo que dizer: mercado versus academia –, mas de algo muito mais ambicioso: escolhe a própria trama para narrar sua decomposição, para pôr o sentido em suspenso; escolhe a própria linguagem para perfurá-la, para buscar esse lado de fora – o fora da linguagem – que nunca chega, que sempre se posterga, se desagrega (a literatura como forma de digressão) esse fora, ou talvez esse dentro inalcançável: a metáfora do mergulho (a invenção de uma língua dentro da língua); não mais o mergulho como busca da palavra justa, bela, precisa (o coral ilumina do sub­merso), mas como o momento em que a caça submarina se extravia e se con­verte em lataria, ácido, vidro moído, coral de vidro moído (a exploração de um navio afundado). Se a literatura não se acerta com a linguagem, então não há dúvida: não lhe cabe outro lugar senão a academia ou o mercado.”

 

 

Orelha de Mauricio Sales Vasconcellos (USP):

Vem de um importante escritor argentino contemporâneo um mobilizante mapeamento – um levante. Nada tem a ver com “levantamento”, este livro único e útil para liberar criação e sentido cartográfico plural na contraface dos critérios hegemônicos do que se pode escrever e entender como literatura. A contar do que se deflagra de um estudo de caso/um estado de coisas em seu país, o ensaísta sonda não só o que é ser de esquerda, mas o que é o trabalho da escrita, em uma época timbrada pela gritante ausência de experimentalismo, pontuada por pactos corporativistas de toda ordem. Outras forças e autorias despontam como modos variáveis de ser, viver e politizar a Ideia-Nação. Literatura em propulsão heterogeneamente comunitária e não como referendo de um socius estriado, pautado por segmentações e rechaços hierarquizantes feitos em nome de uma impregnante “política literária”. Toma-se aqui a contracorrente dos valores capazes de concentrar o empenho de escrever na reverência a “linhagens” legitimáveis, assim como na disputa por prêmios, em farras dos festivais e fóruns com um mesmo tipo de escritor. Para lá do conjunto/conglomerado composto por mercado editorial-imprensa/media-universidade, o estudo-proposição de Tabarovsky viabiliza uma ação não só concernente ao universo escritural da Argentina. Atua sobre o esquadro do “político”, a contrapelo de um pretenso domínio soberano, para tratá-lo e ativá-lo – no instante em que é vertido para o nosso idioma – na emergência de nosso momento nacional, balizado pela inexistência de um projeto comum/coletivo. O livro não apenas contribui contra as forças regressivas em vigência (o exemplo argentino engendra uma extensão). Põe-se à esquerda de toda esquerda. Ou seja, confronta o lugar conquistado nos termos de uma posição, quando o que se ocupa diz respeito à fração reservada ao capital da esquerda, ao permitido e ao previsível por parte dos que advogam um posto dicotômico bem demarcado, tão dialeticamente situado quanto imobilista de poder. Enfim, tudo o que não revela a potência política. Por sua vez, o que transparece como a presença triunfante do literário não move necessariamente os dados transformadores – paradoxalmente permanentes – da escrita.”

 

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Sobre o autor:

Escritor, editor e tradutor, Damián Tabarovsky (1967) nasceu e vive na Argentina. É autor de 11 livros de ficção e ensaio, entre os quais se destacam Autobiografia médica (2007) e o recente El amo bueno (2016). Vários de seus livros foram traduzidos para o francês, alemão, grego e russo. Foi colunista no jornal Clarín, colaborador da Folha de S. Paulo e atualmente é colunista do jornal Perfil. É também editor na Mardulce Editora. “Literatura de esquerda” é seu primeiro livro traduzido no Brasil.

 

 

Sobre a Relicário Edições:

Criada em 2013 pela editora Maíra Nassif, graduada e mestre em Filosofia pela UFMG, a Relicário Edições é especializada em publicações nas áreas de estética/filosofia da arte, crítica e teoria da literatura. Em 2017 a linha editorial de literatura promete ganhar mais força, com as seguintes futuras publicações: “Como se fosse a casa”, de Ana Martins Marques e Eduardo Jorge; “A retornada”, de Laura Erber; “Jamais o fogo nunca”, de Diamela Eltit (tradução de Julián Fuks); Poemas de Ernst Jandl e Poemas de Christian Morgentern.  Algumas de suas obras publicadas são: “Jean-Luc Godard: história(s) da literatura”, de Mauricio Salles Vasconcelos; “Antiga musa (arqueologia da ficção)”, de Jacyntho Lins Brandão e “A vida porca” do autor argentino Roberto Arlt.

 

 

Ficha técnica:

Literatura de esquerda
Autor: Damián Tabarovsky
Tradução: Ciro Lubliner e Tiago Cfer
Texto de orelha de Mauricio Salles Vasconcelos

www.relicarioedicoes.com
contato@relicarioedicoes.com

 




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