Literatura às margens do Rio Amazonas


………Amapá celebra a literatura às margens do Rio Amazonas

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No começo de novembro estive na I Feira do Livro do Amapá, que teve uma intensa programação: durante o dia uma maratona de debates, oficinas, palestras e encontros com escritores, estudantes e educadores, à noite saraus às margens do Rio Amazonas, em tendas armadas na praça, com muita gente assistindo. Estiveram na FLAP escritores e atores locais, além de escritores de várias partes do Brasil, entre eles Carlito Lima, Eliakin Rufino, Flávio de Araújo, Ilan Brenman, Leandro Leite Leocadio, Tenório Telles e cinco autores da Guiana Francesa.

Ignácio de Loyola Brandão, convidado especial da Feira, lotou o Teatro das Bacabeiras e falou com desenvoltura sobre sua trajetória. Entre outras coisas, revelou que tem guardadas quase seis mil cadernetas nas quais vem anotando impressões de suas viagens e que visitando o Amapá completou o circuito iniciado há muitos anos pelo Brasil, como um caixeiro viajante.

São belíssimas as impressões que trago de lá. Fiquei surpreso ao descobrir que uma castanheira pode viver mais de 800 anos e que crianças de seis anos conseguem subir em um açaizeiro. E surpreso também em ver de perto a exuberância dos rios, igarapés e lagos e de conhecer as barcaças que durante quase dois séculos garantiram o comércio e a comunicação entre os ribeirinhos, as trocas sendo feitas sem dinheiro mesmo, na base do escambo. Nesses armazéns flutuantes – chamados de regatão em alusão à secular arte de pechinchar – havia de tudo que se possa imaginar: tecidos, bebidas, panelas, velas, cereais, temperos, frutas, remédios, cestos e uma vasta gama de objetos cujos nomes encheriam a página deste site e deixariam muito bravo o editor.

Conhecemos o Museu Sacaca (dedicado à cultura das comunidades tradicionais locais), a gigantesca Fortaleza de São José (construída no século XVIII) e o magnífico Quilombo do Curiaú (extensa área com criação de búfalos e gado bovino, que na seca se assemelha a uma savana africana e no período de cheia aos alagadiços do Pantanal). Não se pode ir a Macapá sem ir a estes lugares, sem falar do trapiche que avança sobre o rio-mar, que em 1500 Vicente Pinzón chamou de “mar doce”.

Fizemos a travessia no “mar doce” e visitamos uma escola ribeirinha, que fica a cerca de meia hora de barco de Macapá, na Ilha de Santana. O encontro com os alunos foi emocionante: os organizadores da FLAP fizeram entrega de livros e passamos a manhã na varanda da escola contando histórias e declamando poesias. Antes de irem embora em pequenas embarcações (catraias) que partem em várias direções rumo aos igarapés os alunos nos abraçaram muito. Algumas crianças (seis, sete anos) descem das embarcações na entrada dos igarapés e partem sozinhas em canoas até as pequenas casas em que moram. A escola foi construída pela própria comunidade, com apoio de uma família que bem ao lado tem um estaleiro para construção de pequenas e médias embarcações.

Fiquei um dia inteiro mareado por conta da maresia que pegamos na volta quando uma chuva não muito forte encrespou a superfície do rio e molhou a todos, eu entre os mais medrosos do grupo. Foi uma experiência metafísica: um pouco de marola no Rio Amazonas transformou um ateu não praticante em místico fervoroso, uma espécie de Rasputin dos trópicos. O Rio Amazonas é um imenso mar, mesmo uma chuva fraca leva perigo às pequenas embarcações. Sem falar da travesssia do Rio Amazonas (estou ainda mareado por conta da maresia que pegamos quando uma chuva não muito forte encrespou a superfície do rio e molhou todo mundo, eu entre os mais medrosos do grupo…).

A FLAP nasce com uma forte marca local: vários grupos artísticos estiveram presentes na feira, que teve como patrona Esmeraldina dos Santos, escritora quilombola. Essa a grande importância das feiras regionais: difundir a diversidade cultural existente em um país de dimensões continentais e promover a arte do encontro, unindo pela palavra o que a geografia e a história distanciaram.

Aqui no Sudeste achamos que o Amapá é quase outro país — parte esquecida de nossas origens, parte esquecida de nossa história e de nossas vidas. O Amapá não possui ligação rodoviária com o restante do país e só é possível chegar lá de barco ou avião. Mas é uma terra muito rica, em todos os sentidos. Pode-se viver muito bem e com igualdade diante de tudo o que a natureza oferece. E aqui reside a importância maior da FLAP: mostrar que eles também fazem parte do Brasil e que são um povo que começa a tomar seu destino nas próprias mãos.

Os convidados da Feira foram recebidos em um jantar oferecido na residência do governador Camilo Capiberibe e da primeira-dama Claudia, que deram apoio decisivo à realização da primeira edição do evento. O governo estadual destinou também cerca de 90 mil reais para a distribuição de vale-livros a estudantes e professores, valor que deverá ser triplicado no ano que vem. Na semana passada o governador (que nasceu durante o exílio dos pais no Chile) entregou com apoio do BNDES mais de mil notebooks com conteúdo educacional a professores de dois municípios vizinhos, incluindo a Ilha de Santana, que visitamos. Uma boa notícia numa terra onde em tempos recentes o noticiário político confundia-se com as páginas policiais.

Macapá é a única capital brasileira banhada pelo Rio Amazonas, além de ser cortada pela linha do Equador. No Marco Zero, é possível ficar com um pé no hemisfério norte e outro no hemisfério sul. Em uma pia, constatamos: a água no ralo gira em sentido horário no sul e em sentido contrário no norte. Ficou a dúvida: no Marco Zero a água não gira? Dizem que se colocarmos um ovo na linha divisória ele não cai nem pra um lado e nem pro outro. Coisa a conferir, com prova científica: quem sabe com um bêbado do sudeste, entusiasmado com a gengibirra, a aguardente da terra.

E aqui fica um protesto: por que o estádio Zerão ficou de fora da Copa do Mundo? Será que não existe nada simbólico no fato de a linha que divide os dois lados no gramado coincidir exatamente com a linha do Equador? Uma partida de futebol no Zerão envolve dois hemisférios, a cidade fica no meio do mundo. E ainda dá espetáculo pra inglês nenhum botar defeito com o Futlama, disputado com alegria na orla quando o rio-mar está com maré baixa.

Alegria presente também nas confusões geradas pelo falar tucuju. Não se espante se de repente alguém olhar para você e dizer: “Égua! Égua-macho!” É uma interjeição local, que serve para toda e qualquer ocasião.

E tem ainda o gosto de tudo isso: cupuaçu, tambaqui, pirarucu, tucunaré, filhote, maniçoba, açaí com farinha de tapioca, tacacá, camarão ao bafo no tucupi, buriti, tucumã, taperebá, murici, pequiá.

Mais uma vez fui recebido com carinho por Carla Nobre e Benê, grandes amigos e ativistas, organizadores entusiastas do evento, ambos arquitetos de liberdades. E tem também toda a equipe organizadora  e mais de cem estudantes universitários que foram monitores e não deixaram a peteca cair. Como se vê, a FLAP nasceu forte como uma pororoca e vai deixar sua marca entre os eventos literários brasileiros.

Égua-macho!

 

 

 

 

 

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Ovídio Poli Junior é escritor e ministra cursos, palestras e oficinas de criação literária. É graduado em Filosofia (USP), mestre em Educação (USP) e doutor em Literatura Brasileira (USP). Publicou O caso do cavalo probo (narrativa satírica), Sobre homens & bestas (contos) e, para crianças, A rebelião dos peixes (ilustrado pelos filhos). Participou como mediador e autor convidado da FLIPORTO (PE), do Fórum das Letras de Ouro Preto (MG), da FLIMAR (AL), da Feira do Livro de Jaraguá do Sul (SC), da FLAP (AP), da FLIPINHA (programação infantil da FLIP) e vem recebendo destaque em concursos e prêmios literários no Brasil e no exterior. Organiza a programação literária da Off Flip, é curador do Prêmio Off Flip de Literatura e editor do Selo Off Flip. É colunista do site www.desmandamentos.com . Contato: opoli@estadao.com.br.




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