Leve


Conheci o Marcelo Sahea pessoalmente no lançamento do livro Nada a dizer, de sua autoria, editado em 2010 no selo [e]xperimental, dirigido na época por mim, pelo José Roberto Barreto, editor da Annablume, e pelo Wanderley Mendonça. A primeira vez que vi seus trabalhos foi no Sebo do Bactéria, que ficava na Praça Roosevelt; lá encontrei os livros de poemas Carne viva, de 2003, e Leve, de 2006. Em 2008, estivemos juntos no projeto Fome de formas; o Marcelo Sahea escreveu o prefácio do meu livro de poesias Concretos e delirantes, também lançado em 2008.

Na maioria das vezes, Sahea é poeta experimental. Seus trabalhos se concentram na poesia visual, vídeo-poesia e poesia performática; mesmo quando faz poesia verbal, Marcelo é experimentalista, buscando sempre ir além do verso. Outras vezes, porém, sua poesia parece bastante simples – disse “parece simples” pois, em muitos de seus poemas, o que parece simplicidade é, na verdade, sutileza; sutileza que, por sua vez, está em função de esconder a engenhosidade literária –.

Para falar sobre isso, escolhi o poema “Como lua, sendo sua? ”, publicado em Leve:

 

como lua
sendo sua?

como ponto
tendo pontos?

como branca
se menstrua?

como santa
sendo tantas?

como nua
sendo manta?

como esfria
se estua?

como grão
se se agiganta?

como sua
sendo lua?

 

O poema de Sahea lembra a canção “Quem há de dizer”, de Lupicínio Rodrigues. Na canção, o boêmio enamorado admira a amada, apesar da atenção que, como profissional de cabaré, ela dispensa aos demais homens presentes. Nos versos finais, conformado com as condições do namoro, o cantor afirma “Ela nasceu com o destino da Lua / Para todos que andam na rua / Não vai viver só para mim”.

Ora, logo na primeira estrofe, Sahea indaga sobre essa relação entre algo que é para todos, a Lua, e a posse individual – “como lua / sendo sua?” –, argumentando semelhantementeà canção de Lupicínio Rodrigues. Nesse verso, contesta-se quem toma,só para si,a Lua de todos – parafraseando o poema: se é sua, não pode ser Lua; se é Lua, não pode ser sua –. Contudo, ao invés de fazer da Lua metáfora da pessoa amada – na canção de Lupicínio, a Lua é metáfora da amante – Sahea, sem se desviar de tematizações eróticas, nas quais a mulher estaria presente – “como branca / se menstrua?” –, encaminha a poema para significações mais indefinidas.

Entre tais significações, o erotismo talvez seja o tema mais evidente; é possível mostrar como, ao longo dos versos, na medida em que surge o erotismo, ele também se dispersa em outras possibilidades de leitura.

O poema começa com reflexões a respeito da Lua, concentrando seu significado em Lua satélite da Terra, mas logo na terceira estrofe – “como branca / se menstrua?” –, é possível ler a Lua personificada. Ao atribuir ao satélite Lua traços femininos – menstruar –, insinua-se no poema o corpo da mulher, cujo erotismo se tornará mais evidente nos próximos versos.

No quarto verso – “como santa / sendo tantas?” – acrestam-se, à admiração expressa no início, saberes derivados, entre outras práticas possíveis, da sexualidade. Nesse verso, o poeta aparece enredado entrea santidade e o sexo;verifica-se outra remissão à mulher de todos, e não de apenas um.

O erotismo se torna ainda mais evidente nos versos seguintes:

(1) em “como nua / sendo manta?”, a nudez cobre o poeta – a mulher nua é manta para outro corpo–;

(2) em “como esfria / se estua?”,o calor pode ser lido no tema do erotismo;

(3) em “como grão / se se agiganta?”, corpos ou partes de corposcrescem – novamente, isso pode ser lido na tematização erótica, remetendo ao entumecimento dos orgãos genitais –;

(4) nos versos “como lua / sendo sua?”, “como branca / se menstrua?”, “como santa / sendo tantas?”, “como nua / sendo manta?” e “como sua / sendo lua?”, atematização erótica permite considerar o “como” não apenas na função de advérbio interrogativo, mas com a função de verbo: o verbo “comer” conjugado no presente do indicativo “eu como”, quando “comer” também significa “manter relações sexuais”.

Embora a tematização erótica esteja presente em muitos versos, algumas estrofes podem, isoladamente, desencadear outros temas capazes de ressignificar os versos além do erotismo. A segunda estrofe – “como ponto / tendo pontos?” – e a sétima – “como grão / se se agiganta?” – são abstratas o suficiente para permitir outros desdobramentos temáticos.

Entre ambas há, pelo menos, uma diferença a respeito da abordagem do está dito nos versos: enquanto a segunda estrofe tematiza grandezas descontínuas, falando de pontos entre pontos, a sétima estrofe, ao falar do agigantamento do grão, narra um processo contínuo de crescimento. Desse modo, em meio às descontinuidades do ponto sendo pontos – ou seja, entre os limites estabelecidos pela a unidade e a multiplicidade –, e em meio às continuidades do grão que se agiganta – ou seja, entre os limiares do pequeno ao grande –, o poema se abre tematicamente de modo plurívoco, indeterminadamente. Uma vez que as relações entre os temas e as palavras permitem ler metáforas, o ponto sendo pontos ou os grãos que se agigantam poderiam metaforizar quase tudo.

A sexta estrofe – “como esfria / se estua?” – é semelhante às segunda e sétima estrofes em seu grau de abstração entre o frio e o quente. Além de tratar de grandezas descontínuas – os limiares entre esfriar e estuar –, o verso remete à sensibilidade, podendo metaforizar qualquer estado de alma ou de tato.

Contudo, é interessante notar no poema que essa dispersão semântica encontra, quando se manifesta em palavras, uma contensão prosódico-fonológica de forma bastante regular: com exceção do verso “se se agiganta”, todo o poema é construído em dísticos – estrofes de dois versos –, com versos trissílabos – versos formados por três sílabas poéticas –, todos eles com a mesma cadência fraco-fraco-forte – em termos de pés de verso, o anapesto –:
.

como lua            ᴗ ᴗ –

sendo sua?         ᴗ ᴗ –
.

Verifica-se, no poema, que a dispersão dos conteúdos semânticos se expressa em contensão prosódico-fonológica. Caberia indagar, portanto, se um conteúdo orientado para a dispersão semântica não estaria melhor expresso em regimes de dicção menos regulares no que diz respeito à sistematização prosódica. Em outras palavras, não seria melhor utilizar estrofes e versos livres para expressar aquele conteúdo?

Se o poema tratasse apenas da dispersão, talvez; todavia, o que se estabelece nele é antes a tensão entre temas mais definidos e as possibilidades de dispersão em outros temas. Desse ponto de vista, a escolha da dicção concentrada em dísticos e anapestos – exceto o décimo quarto verso – encontra vias prosódicas mais adequadas para expressar tal tensão, pois a correlação semântica dispersa vs. prosódia concentrada é semelhante àquela que se dá entre os temas mais dispersos e os mais definidos.

Além disso, no que diz respeito ao poema, essa correlação semântico-prosódica permite perguntar: que dispersão semântica, se prosodicamente, se concentra? O texto do poema tem a forma de paradoxo semelhante ao que é tematizado em seus conteúdos.

Por fim, já que nos significadosdo textohá negação da concentração rumo à dispersão do sentido, caberia fazer uma última pergunta: nessa entonação não haveria também uma versificação, que negaria a concentração prosódica rumo à sua dispersão? Isso não confirmaria, mais uma vez, o modo de ser tenso e paradoxal da totalidade do poema?

Parece que o verso exceção faz isso. Quando em “se se agiganta” a forma fraco-fraco-forte é substituída pela forma fraco-fraco-fraco-forte – o peônio quarto no lugar dos anapestos – há, ainda que sutilmente, negação da concentração prosódica, que deriva em outras possibilidades além daquela afirmada sistematicamente. Além do mais, esse verso expandido diz, em termos prosódicos, o mesmo dito em sua semântica: “se se agiganta” no conteúdo semântico, agiganta-se na expressão entoativa.

Na literatura brasileira contemporânea, Marcelo Sahea não é o único poeta que, muitas vezes, parece simples, mas nada como análisesde sua poética, mesmo ligeiras, para revelar sua engenhosidade literária.Outros poetas muitas vezes são assim; só para citar alguns, me lembro de Paulo Leminski, Cacaso e Oswald de Andrade. Nesses poetas, a simplicidade pode ser efeito de sentido poético, mas nunca é desconhecimento ou alienação dos mecanismos da linguagem.

Daqui a quinze dias, vou falar sobre uma das pessoas mais significativas para a poesia brasileira contemporânea feita em São Paulo: o editor da Patuá, o poeta Eduardo Lacerda.

 

 

 

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




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