Letramento Literário



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Poderia a literatura nos proporcionar diferentes formas de conhecimento num contexto de especializações? Pode-se ensiná-la? Qual o seu papel na vida do estudante universitário? “Só se deve ensinar isso”1, a literatura, afirmou de maneira provocante Roland Barthes. O autor entendia os textos literários como mediadores do saber. Saberes não especializados que se movem em torno das questões humanas. O homem se especializa para servir ao Outro. Em ambientes institucionais de educação, a literatura abre espaço para a retomada do jogo na vida em sociedade. Assim, o afeto e a delicadeza (perdidos em meio à barbárie urbana) encontram o seu espaço. Especializações. Ultraespecializações. Para servir ao Outro. Contudo, tenho que vê-lo, percebê-lo ao meu lado. Meu semelhante é a minha cidadania. Eu sou para o Outro.

Colocar a literatura em cena é retomar a dimensão do jogo no ambiente educacional. Huizinga nos apresenta as suas cinco dimensões: só se realiza em estado de liberdade; suspende temporariamente as atividades do dia-a-dia; seu caminho e sentido são (re) inventados; cria a sua ordem e é — o jogo — a própria ordem; espaço do ritual, da ilusão e do conflito. Características estas que perpassam a recepção e produção do texto literário2. Portanto, é a literatura espaço de liberdade, alegria e entusiasmo. Nela, os conhecimentos se movem e exigem do leitor níveis cada vez maiores de reflexão. A literatura propicia a formação do leitor criativo.

Muito se escreve sobre o novo estudante universitário brasileiro. A sua dificuldade na escrita. As suas representações mentais. O seu nível de informatividade. Entre a perplexidade e a frustração queda o professor. A literatura — não somente a da cultura livresca, mas a literatura em diálogo com outras artes, expressa por meio da oralidade; do corpo; do vídeo; da música — pode ser aliada no processo de letramento literário. Mas qual a importância do letramento literário na universidade?

Sabemos que métodos de ensino e materiais educacionais integram os componentes ambientais que influenciam o surgimento das dificuldades de aprendizagem. Em sala, o professor pode promover a autonomia e a superação de obstáculos apresentados no processo de ensino-aprendizagem ou agravá-los. Pesquisas apontam que as competências pedagógicas e relacionais dos professores, refletidas na didática, constituem barreiras que o estudante universitário deve transpor para atingir os níveis de representação mental necessários ao bom desempenho acadêmico. Dentre as dificuldades três se destacam: o nível de desempenho escolardo aluno anterior à vida universitária; deficiências de métodos e técnicas pedagógicas do corpo docente e a relação professor-aluno3.
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A heterogeneidade em sala exige métodos e práticas diversificadas de ensino. Parafraseando Foucault: lecionamos para transformar o estudante no que ele é ou o auxiliamos por meio da problematização contínua dos nossos métodos e práticas? Quantas vezes, em nosso dia-a-dia docente, não vaticinamos ao universitário a sua condição de “aluno com dificuldades”? Como se dificuldades fossem epidérmicas e indissolúveis.

O letramento literário não é uma nova forma de escolarização da literatura. A dimensão libertária do jogo é o norte deste processo. Não se trata aqui de, novamente, fazermos da leitura literária tarefa escolar. Muito menos outro elemento de avaliação, demonstração, comprovação e controle. Tampouco inseri-la numa disciplina e, forçosamente, estabelecer relações pouco claras  e objetivas entre os saberes. O letramento literário surge para contribuir na formação do universitário leitor. O leitor ideal é o leitor crítico e criativo. Mário Vargas Llosa aponta que a literatura é um “questionamento radical do mundo em que vivemos”4 porque apresenta características de rebeldia, insubmissão, provocação e inconformismo. Elementos fundamentais para o domínio do pensamento crítico e o pleno exercício da vida cidadã.

A literatura não é uma mentira. A ciência não é a verdade. Para Mário Quintana, “só na vida é que há ficção”5. E a ficção é esse fingir não fingindo, “nada que é tudo”6. A literatura envolve todos os aspectos da vida humana. Se a boa leitura é a aprendizagem crítica dos códigos, os textos literários — somados ao conhecimento prévio do estudante universitário — podem reinstituir a instância do desejo e do prazer em classe. Porque “a frase, o conceito, o enredo, o verso (e, sem dúvida, sobretudo o verso) é que pode lançar mundos no mundo”7. Prosa e poesia nos ajudam a ver o Outro e termos os elementos da empatia e da solidariedade ativados. Como exemplo Walt Whitman. Poeta norteamericano, branco, num contexto de guerra civil (18611865), escravização dos negros e submissão das mulheres. Nos seus versos o eu-lírico sai em defesa das minorias oprimidas. O poeta: voz das vozes mudas.

Walt Whitman, americano, um bronco, um kosmos (…)
Quem degrada uma pessoa me degrada (…)
Por mim passam muitas vozes mudas há tanto tempo,
Vozes das intermináveis gerações de escravos,
Vozes das prostitutas e pessoas deformadas,
Vozes dos doentes e desesperados e dos ladrões e anões (…),
E dos direitos dos que são oprimidos pelos outros (…)8
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Estudar é penoso. Aprender, divino. O que impede o prazer nos estudos não é o estudo em si, mas o entorno. O letramento literário não se dará num clima de imposição, coerção. O Plano Nacional do Livro e Leitura9 apresenta como meta a elevação do nível de leitura. O brasileiro deverá ler 2,7 livros por ano, ao invés dos atuais 1,8. Ainda assim, estaremos distantes dos índices de outros países: EUA (5 livros/ano), França (7 livros/ano). O letramento literário — proposta que apresenta saberes não sobre a literatura, mas a literatura como mediadora do saber  — contribuirá para que a meta governamental seja alcançada.
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A instituição educacional pode fomentar o encontro entre arte e ciência por meio de eventos que promovam a leitura, o livro, a cultura enfim. Desde a promoção de uma revista literária aberta ao corpo discente e docente, a lançamentos de livros e promoção de saraus. Importante é sinalizar aos discentes que este processo se dá para ele e por meio dele. O letramento literário como um moto-contínuo da instituição educacional, com vistas a sanar as dificuldades de ensino-aprendizagem.

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Notas

1 BARTHES, Roland. p. 336.
2 PEREIRA, Antonieta et al. p. 32.
3 FREIRE, Gustavo Luiz. Concepções de Dificuldades de Aprendizagem do Estudante Universitário. Disponível
em: http://www.psicopedagogia.com.br/artigos/artigo.asp?entrID=1015. Acesso: 01/09/09.
4 LLOSA, Vargas. “Un mundo sin novelas”. http://www.letraslibres.com/index.php?art=6536. Acesso: 22/09/09.
5 QUINTANA, Mário. Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1982.
6 PESSOA, Fernando. Poesia de Todos os Tempos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
7 VELOSO, Caetano. Letra só; Sobre as letras; Eucanaã Ferraz (org.). São Paulo: Cia. das Letras, 2003. p. 300.
8 WHITMAN, Walt. Folhas de relva; tradução Rodrigo Garcia Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2005. p. 77.
9 Disponível em: www.pnll.gov.br/. Acesso em: 22/09/09.

 

 

 

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Referências

BARTHES, Roland. Vinte palavras-chave para Roland Barthes. In: O Grão da voz: entrevistas, 1961-1980. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2004.
FOLGUERAS, D.; MORELLI, M. R. Levantamento das dificuldades enfrentadas por alunos no terceiro grau. Revista Ciência e Cultura, v. 37, n. 1, 1989.
GERHARDT, Ana Flávia Lopes Magela et al. A cognição situada e o conhecimento prévio em leitura e ensino. Disponível em: http://www.cienciasecognicao.org. Acesso em 20/09/09.
PEREIRA, Antonieta et al. Formando leitores de telas e textos/ Anderson Higino, Clarisse Barbosa, Maria Antonieta Pereira (org.). Belo Horizonte: Linha editorial Tela e Texto, FALE/UFMG, 2007.
PAIVA, Aparecida. Literatura – saberes em movimento. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2007.

 

 

 

 

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Anizio Vianna é poeta, editor, Mestre em Teoria da Literatura (UFMG), professor de Leitura e
Produção de Textos do curso de Direito da FEAD. Dentre os prêmios literários e participações
em antologias, destacam-se o prêmio Cidade de Belo Horizonte (1996) e O Melhor da Poesia
Brasileira — Minas Gerais (2004). Em 2009, iniciou seus estudos em psicopedagogia (FEAD). Email: quartosetor@gmail.com




Comentários (1 comentário)

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    7 março, 2012 as 14:59

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