Ler


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Meus hábitos de leitura foram todos formados ou deformados na infância, pelo Tesouro da Juventude. Meus primos mais velhos, meus amigos, mais velhos ou não, tinham o seu, só eu não tinha. Cansei de pedir a coleção a meu pai. Ele dizia: quando puder, você terá.

Foi então (eu já havia desistido) que umas caixas chegaram em casa. Eu lia na embalagem: W.M. Jackson, Inc., Editôres, assim mesmo, com circunflexo, para que tu editores de acordo com a ortografia vigente. À noite, família toda reunida, meu pai abriu uma das caixas. É seu, ele disse, o seu Tesouro da Juventude, e me ofereceu o canivete pra que eu abrisse as restantes. A coleção completa, meu Deus! Os 18 volumes, capa dura, azul real, dizeres em dourado nas lombadas, o título em alto-relevo, nas capas.

Na semana seguinte, chegou a pequena estante, encomendada na marcenaria da esquina. Foi tudo para o meu quarto (eu tinha um quarto só meu, privilégio raro) e fui incumbido de pôr as coisas no devido lugar. Deu para acomodar os 18 volumes, um a um, na ordem certa, os livros escolares, outros livros que eu tinha, os cadernos, o fichário, as revistas, a coleção de lápis de cor, a de selos, umas bugigangas de que nem me lembro, e um majestoso distintivo do Sport Club Corinthians Paulista, pedrinhas coloridas entalhadas em madeira, que eu mesmo desenhara e confeccionara, com a ajuda do auxiliar de marceneiro, da mesma marcenaria da esquina, meu amigo, corintiano como eu.

Estante arrumada, tudo ou quase tudo novinho em folha, pronto!, pensei, agora é só começar. Foi quando a angústia me assaltou: eu não vou ser capaz de ler isso tudo, do 1º ao 18º volume, na ordem certa! Eu sabia que não havia outra maneira de ler uma portentosa coleção como essa: na ordem certa. Por que outra razão os livros estariam numerados?

Se já invejava os amigos e os primos, passei a invejá-los ainda mais. Eles foram ganhando cada qual a sua coleção, um volume por mês, e puderam ir lendo um a um, na boa ordem. Eu não. Ganhei tudo de uma vez. A missão impossível me deixou aterrorizado.

Toda noite meu pai perguntava: já começou a ler? Eu dizia que sim, mas não sabia por onde começar. Bem, por onde começar eu sabia, pelo 1º volume. O diabo era daí por diante. Então, comecei. Não podia ficar ali, a contemplar na estante novinha os 18 volumes intocados, que tanto sacrifício tinham custado a meu pai.

O ano era 1954. O Corinthians foi campeão, Campeão dos Centenários: Gilmar, Homero e Olavo; Idário, Goiano e Roberto; Cláudio, Luizinho, Basltazar, Carbone e Mário. Comecei pelo número 7, meu número de sorte, número do ponta-direita Cláudio Cristóvão Pinho. E também de Júlio Botelho, Friaça, Dorval e tantos mais. Mas não fui até o fim, saltei logo para o volume 4: no time de basquete do colégio, e no infanto-juvenil do Club de Regatas Tietê, cujas cores eu defendia, era o número da minha camisa.

Depois fui saltando aleatoriamente, para o primeiro número em que meu olho batesse, na estante. Li todos, alguns mais de uma vez, mas não me lembro de dar por concluída a leitura de nenhum deles.

Ler em desordem, saltar daqui para lá e de lá para mais adiante, ou recuar, mais de uma vez, para depois retomar a caminhada sem rumo, não terminar nunca… Ler, assim, o meu precioso Tesouro da Juventude me proporcionou prazer inexcedível, que me marcou para o resto da vida.

Ler, para mim, é isso.

Livros existem para serem explorados, devassados e desmembrados em outros livros, assim mesmo, em desordem, e não para serem lidos um a um, na ordem certa. Saber eu nunca soube, mas bem cedo desconfiei que ordem certa não existe. Para ler bem, nem a ordem alfabética, a melhor de todas as ordens do mundo, é capaz de ajudar – como não ajudou o desolado protagonista de La Nausée, de Jean-Paul Sartre.

A ordem de que partimos, para executar uma tarefa qualquer, como ler um livro, por exemplo, ou uma biblioteca inteira, não serve para nada, só para alimentar a falsa segurança do “é assim que se faz”. Inútil saber de antemão que ordem temos ou teríamos aí. A única boa ordem é a que vem ou pode vir depois, a que você for capaz de imprimir ao caos de origem. Você não tem como pôr em ordem o que ainda não existe. E existir quer dizer estar mergulhado em desordem.

Foi assim que aprendi a ler vários livros ao mesmo tempo, o “Livro da Terra”, o “Livro dos Animais e Plantas”, o “Livro das Belas Ações”, o “Livro dos Porquês”, tudo bem arrumado, no devido lugar, mas só nos índices do Tesouro da Juventude. Passada a breve angústia inicial, nunca tive receio de me confundir, de baralhar um livro no outro.

Ler, para mim, é isso.

Todos os livros do mundo! Que livros maravilhosos eu teria se pudesse misturar pedaços de um com pedaços de outro! Que esplêndido seria mesclar a Carta de Guia de Casados, de dom Francisco Manuel de Melo, com Hölderlin e a essência da poesia, de Martin Heidegger! Ou umas passagens do Quixote com A morte em Veneza, de Thomas Mann; ou o Romanceiro da Inconfidência, da Cecília, com o De Rerum Natura, de Lucrécio; ou o Moby Dick, de Melville, com o Claro Enigma, do Drummond; ou, mais modestamente, a “Receita de mulher”, do Vinícius, com os “Jogos frutais”, do João Cabral… Ah, mas isso não tem fim!

Ótimo! A ideia é essa mesmo.

Desconfiei, desde o início, que estava tudo errado, não podia ser assim, mas nunca fui capaz de fazer nada para evitá-lo. Os volumes do Tesouro da Juventude foram-se multiplicando, sem cessar, por 18 x 18 x 18… Sempre bem arrumados na estante, sempre a se espalhar em bando sobre a mesa – raros, raríssimos lidos da primeira à última página; muitos abandonados ao começar, mas quase sempre retomados mais adiante, para ceder lugar a outro; alguns relidos com sofreguidão, antes de chegar à última página, sempre adiada, até onde fosse possível.

Tenho passado a vida tentando disfarçar o caos de origem. Por isso me especializei em método, disciplina, organização, mas só a da estante, ou a que pode brotar muito tempo depois, e é logo substituída por outra.

A chave talvez seja prolongar ao infinito o prazer da leitura, para quem sabe um dia encontrar, de pedaço em pedaço, o livro de todos os livros, o único que eu me obrigaria a ler de uma tacada só, criteriosamente, da primeira à última página.

Um volume jeitoso, nem esquálido nem muito avantajado, capa dura, ornamentos discretos na lombada, duas, no máximo três centenas de páginas em branco, imaculadas e luminosas, esplêndidas, definitivas: o Livro de Todos os Livros.

Ler, para mim, é isso.

 

 

 

 

 

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Carlos Felipe Moisés é autor de, entre outros livros de poesia, Círculo imperfeito, Subsolo, Lição de casa e Noite nula. Como crítico literário, publicou, entre outros: Literatura, para quê?, O desconcerto do mundo e Poesia & utopia. Traduziu Sartre (O que é a literatura?), Marshall Berman (Tudo o que é sólido desmancha no ar), Proust (Retratos de pintores e músicos) e vários outros ensaístas e poetas contemporâneos. Especialista em Fernando Pessoa, sobre quem publicou vários livros, é responsável pela curadoria da exposição “Fernando Pessoa: plural como o universo”, no Museu da Língua Portuguesa (SP), no Centro Cultural Correios (RJ) e na Fundação Gulbenkian. E-mail: carlos_moises@uol.com.br




Comentários (8 comentários)

  1. leusa araujo, Lindo o depoimento do Carlos Felipe. Realmente a angústia da criança diante daquela enormidade de mundo: os 18 volumes do Tesouro da Juventude – e quando se tem infância e livros. Parabéns.
    30 março, 2012 as 14:01
  2. Yaco Bitelman, Trouxe muitas saudades!
    30 março, 2012 as 15:42
  3. Anderson Borges Costa, Carlos Felipe descreve com lirismo a gênese de seu amor pelos livros. De maneira organizada e coerente, ele faz escorrer, pelas linhas de seu texto, uma cachoeira de possibilidades anárquicas que a indomável literatura oferece para os apaixonados por esta arte. Ler, para ele, é um tesouro. E é contagiante.
    30 março, 2012 as 18:47
  4. Vivian Schlesinger, Precioso esse breve conto de amor, esse tesouro que tantos tivemos e, mesmo há décadas na ausência do objeto, a ele permanecemos fiéis. Você sabia que o número 18 tem significado importantíssimo no judaísmo? É equivalente à palavra “vida”, usado como símbolo de Deus, considerado um número de muita sorte!
    30 março, 2012 as 20:40
  5. Ana Lucia Vasconcelos, Que delicia este texto do Carlos Felipe Moisés descrevendo sua entrada no mundos dos livros, o primeiro amor e o jeito desordenado que começou a ler os 18 volumes do Tesouro da Juventude que ficou sua marca registrada via afora.Confesso que em alguns casos também prolongo a leitura do livro para ele não terminar, outros deixo pela metade, outros ainda, releio várias vezes, e ainda: leio vários ao mesmo tempo.Só para dizer que temos alguma coisa em comum.
    30 março, 2012 as 23:51
  6. Daniel Lopes, Oi Carlos, obrigado pelo comentário no meu texto. Gostei muito do seu texto. Também sou caótico pra ler. E as misturas que você mencionou ficariam mesmo sensacionais. Quanto a mim, meu primeiro contato com algo que julguei artístico foi quando, aos doze ou treze anos, assisti ao The Wall, do Alan Parker. Coisa de menino, pela primeira vez, vi que um cara estava falando das coisas que eu sentia, mas não sabia como dizer. Era como se as canções do Roger Waters fossem escritas por mim, mas eu não era eu e comecei a imaginar que meu pai era inglês e tinha de fato morrido na guerra. Pra mim a música aí já era livro. Mas os livros mesmo, nem sei como comecei a escolher alguns autores e outros não. Às vezes eu me distancio de livros ou filmes sem nem sequer os conhecer. Espero a alma dizer sim e ela diz não. Quando era mais novo, eu ia à biblioteca aqui do meu bairro e deixava que os livros me escolhessem. Não me importava se o autor era importante, ou se era um best seller qualquer dos anos sessenta. Gostava de ficar lá sozinho, em silêncio, até que um deles dizia SIM, um SIM bem grande e eu o trazia para casa e o devorava e então eu não estava mais sozinho. Como era bom encontrar um livro e perceber que há cem, duzentos, trezentos anos, um cara, de um país distante, tinha sentido as mesmas coisas que eu, igualzinho a mim. No começo, eu lia para combater a solidão, porque me sentia sozinho no mundo que me cercava. Por vezes desconfiava até que meu braço, minhas pernas e minhas mãos não eram eu. Aquilo que eu levava para a escola, pelos ônibus, para comprar pão na padaria era só um disfarce, o eu verdadeiro era outro, não estava no meu corpo, estava em outro lugar. Essas coisas me levam a imaginar que o espírito pode ser qualquer coisa para fora do corpo. Fecho com Bergson, mesmo com toda dissecção científica do corpo, a alma ainda é possível. Acho que é assim, o livro meio espelho, tem de refletir algo que a gente já levava no peito. O fato é que eu lia para combater a solidão, ma, quanto mais eu lia, mais isolado do mundo ficava. Depois mudou, os livros me trouxeram amigos, pessoas que gostavam das mesmas coisas que eu, que me indicaram outros livros. Os próprios livros me indicaram outros livros tb, pq às vezes aparecia um título ou um autor no meio de um livro que eu estava lendo, e aí, depois, eu ia atrás. A verdade é que é muito bom ter amigos que nasceram quinhentos, duzentos anos antes de você. Talvez por isto eu escreva, para passar essa corrente adiante, para dizer para aquele menino sozinho que talvez ainda nem nasceu, que ele não está, não estará, de fato sozinho. Valeu o texto e um grande abraço.
    1 abril, 2012 as 16:05
  7. CHICO LOPES, Ah, Moisés, a bagunça dos livros, que delícia organizá-la conforme nosso coração indica! Na minha infância, nem havia estante em casa, mas eu já intuía que seria um grande, ávido leitor, mexendo com os gibis do meu irmão mais velho(que era muito ciumento deles). A primeira estante com que me deparei foi em casa de um cunhado um pouco melhor de vida que lia muito livros policiais pocket, de mistério, de suspense. E aí topei com a gostosa Brigitte Montfort, os cabelos prateados de Shell Scott, nomes de autores como Erle Stanley Gardner…Gostava daqueles livrinhos pulp com capas lisinhas e chamativas. Só vim a conhecer um livro no formato mais convencional quando me emprestaram um de Francisco Marins (Os segredos de Taquara-Póca) e outro de Jorge Amado (Capitães de Areia). Depois disso, tomei gosto e nunca mais ninguém me segurou. Hoje, depois de ter lido praticamente de tudo e tendo uma estante, continuo seguindo apenas o coração no ato de escolha e tudo é mesmo aleatório, e desisto de uma ordem muito rígida. O importante é entrar num livro e viajar para esses lugares únicos que a literatura nos dá. E, se possível, passar neles muito, muito tempo, pra esquecer a triste mesquinhez e as limitações do mundo real.
    2 abril, 2012 as 13:09
  8. José Lima Martelletti, Esse tesouro descobrimos juntos. Lembro-me muito bem, e com todas as letras, de um capítulo que descrevia costumes dos povos nômades do grande deserto africano. Desconfio que essa benfazeja anarquia na leitura a herdamos do nosso mestre Trivinho. Sempre que posso presto-lhe a necessária e merecidíssima homenagem. Deixa lhe dizer Moisés, você que é responsável pela minha admiração por Fernando Pessoa, que continuo sendo seu devotado leitor. Espero nos vermos em breve. Abração.
    10 abril, 2012 as 13:56

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