João Gilberto Noll


……………..JOÃO GILBERTO NOLL: UM COMEÇO PRECIOSO

……………………………….[Foto by Vilamundo.org.br ] .

No início de 2009, a editora Scipione lançou no mercado dois novos títulos na sua coleção infantojuvenil, Sou eu! e O nervo da noite, ambos do escritor gaúcho João Gilberto Noll, autor até então “distante” do público mais jovem, justamente por ser conhecido por sua escrita hermética e seus personagens obscuros. Interessante nessas duas publicações é que, embora destinados ao leitor ainda iniciante, os contos de Noll não diferem esteticamente de outros de sua autoria. Neles, encontram-se a mesma narrativa lenta e circular, os mesmos personagens sem identidade definida de outros textos do escritor como, por exemplo, Hotel Atlântico, Harmada e Canoas e marolas, todos para o público adulto, se levarmos em conta a faixa etária dos leitores.

Num primeiro momento, pode-se pensar, portanto, que esses dois textos foram levados para a prateleira “infantojuvenil” pela brevidade de suas narrativas, que não ultrapassam 43 páginas e também pela temática. Nos dois contos, Noll narra o fim da infância e o difícil começo da puberdade:

“Por isso agora ele estava ali, na frente do espelho. Passava o aparelho de barbear do pai pelos dois lados da face. E se sentia ainda incapaz para o novo rosto que lhe custaria a brotar”. (Sou eu!)

“Aquela noite lhe seria mestra, fazendo do garoto o homem que ele próprio sempre arquitetou no seu imaginário. A navalha passando pela primeira barba selava sua nova condição de adulto”. (O nervo da noite)

Apesar dos contos terem como tema o fim infância, o enredo em si tem um papel secundário nas narrativas de Noll, já que o escritor não se preocupa em contar uma história com começo, meio e fim ou oferecer ao leitor uma trama bem traçada. Ao contrário, seus livros entram no universo onírico, onde os fatos se repetem e se contradizem. Em O nervo da noite, por exemplo, a história recomeça no meio da narrativa e termina de forma abrupta, como se o personagem tivesse sido acordado repentinamente de um pesadelo, “onde tudo parecia estar aquém de certos folguedos cultivados na infância”, como relata o garoto narrador do conto.

Assim como os sonhos kafkianos, nos contos de Noll, a imagem onírica exige uma linguagem poética e é essa linguagem a protagonista de seus textos, os quais são um sonho que, como diria Kafka, tira o sono, não só do escritor, mas também do leitor. A escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol afirma, aliás, que “rigorosamente o sonho é diurno”.

Para o público jovem, essas narrativas noturnas não deveriam ser nenhuma novidade, já que para ele foram escritos Alice no País das Maravilhas, Através do Espelho, duas aventuras oníricas de Lewis Carroll. Contudo, ao introduzir o jovem leitor numa literatura mais experimental, como a de João Gilberto Noll, a editora Scipione não deixa de remar contra a maré. Não sem razão, Michel Laub, que assina o posfácio de Sou eu!, lembra que: “existe a crença de que a literatura para o público jovem, ou mesmo para adultos, deve ser ‘fácil’. Ou seja, as histórias devem ser diretas, com início, meio e fim definidos, e os personagens devem aparecer claramente em suas virtudes e fraquezas”.

Em O começo de um livro é precioso, Maria Gabriela Llansol lembra, no entanto, que, no início de um texto literário (não importa aqui a faixa etária de seu leitor), o que temos é a derrota, ou seja, “um vazio de cinza” no espaço. Ao rever seu contato com os livros, Llansol recorda que “todos os começos diferentes e simultâneos eram areais”. Apesar disso, o livro sempre aceitava “dar mais uns passos, renitente”.

O fato é que, embora difícil, “o começo de um livro é precioso” e quando esse começo se prolonga, opina Llansol, “um livro seguinte se inicia. Basta que a decisão da intimidade se pronuncie. Vou chamar-lhe fio _____ linha, confiança, crédito, tecido”. E isso serve para qualquer literatura não importa a idade do leitor, como tenho seguidamente frisado nos meus textos.

Portanto, a iniciação à Literatura precisa de confiança e crédito no vazio cinza de suas páginas e nos areais movediços de sua escritura. Essa Literatura não conhece faixa etária, já que todo bom livro tem dentro dele “tempestades” e, segundo Walter Benjamin, referindo-se a seus livros de criança, abrir um deles é ser levado “bem ao centro de uma delas”: “Cores borbulhantes e fugidias, mas que tendiam sempre para um tom violáceo que parecia provir das entranhas de um animal abatido. Indizíveis e graves, como esse violeta proscrito, eram os títulos, cada qual me soando mais estranho e mais familiar que o precedente. Antes, porém, que eu pudesse me garantir na posse de qualquer um deles, acordei sem nem mesmo em sonho ter tocado aqueles velhos livros infantis”.

A literatura para qualquer idade impõe sempre uma resistência ao leitor, resistência essa própria da sua linguagem, que espera ser decifrada, mesmo sabendo que nela existe uma pluralidade e um labirinto de conceitos. Numa de suas reflexões sobre leitura, Llansol afirma, a propósito, que a “Literatura queria abrir a porta mas não conseguia abri-la folgadamente. Opunha resistência às suas mãos que deslizavam.” Talvez repouse nesse jogo movediço, e não necessariamente na sua compreensão, o maior prazer que Literatura proporciona a seus leitores.

Os contos de Noll são um convite a esse jogo, o qual está aberto a leitores de todas as idades, uma vez que, cabe aqui lembrar, nosso “olhar verá apenas o que sabe”, como ressalta a escritora portuguesa, não importa a idade que tenhamos.

 

 

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[Ensaio do livro Pequena biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores, de Dirce Waltrick do Amarante (Iluminuras, 2013)]

 

 

 

 

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Dirce Waltrick do Amarante é professora do Curso de Artes Cênicas da UFSC, autora, entre outros, de James Joyce e seus tradutores (Iluminuras, 2015). E-mail: dwa@matrix.com.br

 

 




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