Inutilidades necessárias


 

A POESIA DAS INUTILIDADES NECESSÁRIAS

A memória é uma espécie de cravo ferrando a estranheza das coisas, de Lau Siqueira, marca o leitor pela quebra de expectativas provocada por seus poemas. Profícuos em imagens que trocam os móveis da casa de lugar sem aviso, os textos do autor gaúcho subvertem um modo de pensar linear, cumprindo o papel máximo da poesia. Com uma poética musical e inventiva que ousa na variação da forma, o poeta articula o não dito e o dito em versos nos quais o espaço em branco complementa o que as palavras sussurram/falam/gritam.

A obra é constituída de duas partes e, inicialmente, apresenta poemas em que prevalece a liberdade da forma em consonância com a abertura suscitada pelo conteúdo. Depois, com tercetos, propõe uma forma exata para apresentar uma visão de mundo voltada ao agora e sua poeticidade, convidando-nos à celebração do “acaso e suas delícias”.

Essencialmente, os poemas versam sobre a passagem do tempo, a incompletude humana e as contradições da vida contemporânea, como muito bem sinalizam as palavras da dedicatória em que o autor afirma que “mais um livro de poemas, neste momento, significa investir na perenidade das incertezas”. Nesse sentido, a leitura de Lau Siqueira nos coloca diante da única certeza que podemos ter, que é a da impermanência que nos constitui. Ao modo tão apreciado por Manoel de Barros, sua poesia nos ajuda a olhar para as insignificâncias ou, como diz o próprio poeta, para as “inutilidades necessárias”.

Contemplando temas como a memória, a cidade, o amor e o corpo, Lau Siqueira edifica uma poesia de caráter filosófico e também sensorial. Seus poemas são corpos que ora instauram o devaneio que se traduz em saber, ora incitam sensações que reafirmam a natureza erótica da linguagem. Ao mesmo tempo em que provoca um pensar atemporal sobre nosso estar no mundo, sua escrita utiliza elementos da modernidade para refletir sobre as relações sociais, nas quais o sujeito perde suas referências e sua ligação primordial com a natureza.

Por todos os aspectos apontados e, principalmente, por se tratar de uma visão sensível e necessária do fluir da corrente que é o tempo e a própria vida, vale muito a pena ler A memória é uma espécie de cravo ferrando a estranheza das coisas.

 

Cinara Ferreira é professora de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 

***

 

Confira alguns poemas do livro:

 

GERMINAR

A memória
é uma espécie de cravo
ferrando a estranheza
das coisas.

Um pau rijo
esguichando sementes
nas valas alagadas
da pele.

Estilhaços no hálito
sedento das matilhas.
Onde o mundo é,
sobretudo, cão.

Chove.

Adormeço sonhando
com o dia que vai
nascer.

 

 

O TEMPO

Para seguir
em frente nunca
é cedo.

É exato o
trançado que
trocamos entre
os dedos.

Numa puta
vontade quase
medo

 

 

TANGO

ninguém te vê
com meus olhos

com meus braços
nenhum outro
abraço

tudo é tanto
e tão pouco

(que louco)

 

 

NO CAMINHO COM EDUARDO ALVES DA COSTA

Na primeira noite levaram o gado e os cães.
Como não sou bovino nem canino, fiquei fish.
Depois arrastaram o pasto com uma draga.
Arrancaram pedras e árvores. Mas não sou
pedra nem árvore. Fiz de conta que estava
vigiando as nuvens…

O acerto não é o alvo e a vida nunca acolhe
uma bala perdida. Os bichos ficaram sem lua
e sem sol. Apenas com o frio e o calor. Mas
consegui comprar um ventilador e um edredom
e me fiz de sonso…

Que barbaridade!

Agora levaram as estrelas e nem vi, pois
fechei a janela quando a noite bateu.
Não me traí, apenas distraí.
Ah, levaram meu sono, também.
Esse cansaço natural que só atrapalha.
Que façam bom proveito. Não vou fazer
absolutamente nada para impedir.
Porra nenhuma!

Afinal, o oco é a ama de leite da filosofia e o trilho
que falta pra esse trem-bala-de-aço chamado poesia.

No mais, a vida é um risco que podemos transformar
em traço. Ponto. Pantim. Ponto.

 

 

CENÁRIO DOLOSO

Depois da imagem
de um homem acorrentado
ao destino pelas ruas
do Crato,

um menino envelhecido
transformado em estatística
nos sinais de João Pessoa.

Depois de tantas esquinas
e tantas mãos estendidas
sem anéis e sem dedos…

Percebo que o mundo
mudou tanto que
permanece o mesmo.

 




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