História(s) da Literatura


LivroLoco – História(s) da Literatura

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São muitos os livros, em recorrência e irrupção, de fotograma a fotograma, à altura do que vai se produzindo na literatura em surgimento desde os anos 1960, num paralelo traçado com a época do cinema de Godard. No instante em que suas imagens se tornam, para além dos filmes, parte da iconografia de um período histórico, em compasso mesmo com as mutações de toda ordem (técnicas, políticas, comportamentais), percorrendo a vida cotidiana  assim como o foco plurifacetado do cineasta. Tal entrelaçamento, aliás, deixa ver uma qualidade intervencionista nos vários planos da criação e do conhecimento. Vai ficando cada vez mais curioso observar que esse desenho retrospectivo em torno de Godard, desde suas primeiras produções, acaba por incidir na maneira de se conceber livro e literatura. Especialmente, tendo-se em pauta as diversas linhas de escrita que se depreendem de uma tomada a outra:  superinscrição de história e leitura/escrita, poder de presentificação das imagens e reconfiguração da arte (dos seus lugares e seus agentes criativos) ali pulsante para fora de um único domínio de linguagem, saber e de determinação do tempo.

Do mesmo modo que se revela essencial não esquecer Maupassant, na base do roteiro original de Masculino Feminino (1965), transformando os códigos de realismo em sua época, ao dar corpo aos afetos que percorrem o homem e sua hora em dimensões imediatas, até então impensadas (como é dado ler em contos como “La femme de Paul”), uma vertente de autores, também, se cria a partir de muitos outros filmes. Gêneros e formas literárias são refigurados em mesclas passíveis de todas as variáveis cinemáticas.

São perceptíveis na literatura brasileira os pontos que ligam Sérgio Sant’anna e João Gilberto Noll, dois expoentes imprescindíveis da contemporaneidade, relacionados com o cinema, na construção de formas breves. Contos como “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, “As cartas não mentem jamais” e todo o conjunto de O cego e a dançarina (1980) apresentam um misto de desmontagem e recomposição do épico através de vestígios de ação, do herói no espaço narrativo, através de uma combinação do movimento  fílmico com o andamento sonoro, sob vários offs do que se escreve e do que se dá à leitura.  Em outro extremo, a condução de Godard para o filme-composição, no timing dinâmico e agregador das mais diferentes formas de arte contidas no clip, entendido como cápsula experimental de som/imagem/narrativa, constrói  gradativamente  seus longas  –   de Viver a vida a Segura sua direita (não à toa, pontuado pela presença da dupla pop Les Rita Mitsouko). Quando  não é o caso da música  integrar toda a metragem, caso de One plus one, até o cineasta chegar a dirigir France Gall em Plus haut (canção-filme-clip), em 1996.

Não apenas o conto sofre a ação, simultaneamente, minimizadora e plurívoca, trazida através dos elos entre formas breves e música, intensificando toda uma tradição moderna reportável a Bertrand, Baudelaire – com seus pequenos poemas em prosa – e ao Rimbaud de Illuminations. A concepção de romance é, também, transformada. A partir dos anos 1960, no Brasil, se faz notar a presença da pequena e interferente obra (não-obra, poderia frisar Blanchot, formada por dois livros), de José Agrippino de Paula. Fica ressaltada uma verdadeira matriz de narrativa caracterizada pelo batimento veloz e hiperreferencial de uma profusão de personagens e dados que se cruzam num mesmo espaço-tempo. Redefine-se, então, o alinhamento retilíneo, consecutivo, compreendido por um longo relato. Figuras ficcionais se encaminham para uma entrega radical ao instante da vida presente, nas cidades (compreendidas como signo-chave de um mundo satelizado, eminentemente informacional). E deambulam, de maneira a instaurar uma verdadeira escrita de caminhada a partir dos traços de fisicidade e instantaneidade, próprios de uma action writing (o termo de Herberto Helder, em Photomaton & vox, bem situa toda uma poética em insurgência a contrapelo da trama romanesca), a contar, também, da superposição de linhas tópicas mais e mais inseridas no corpus expandido de uma nova ficção.

Blocos de textos não-narrativos obtêm movimentação assim como personagens-ícones surgem como atuantes, extraídos tanto da História (de modo mais intensificado, em Lugar público) quanto do cinema hollywoodiano. Ganham a cena literária, num contraponto visivo com os filmes de Godard, uma vez que o diretor era, naquele momento, o exemplo máximo, o ponto-limite de experimentação com seus filmes timbrados pela revolução das formas e dos atos mais participativos de ser/habitar o tempo e os espaços em surgimento. Notável é a inserção dos lugares públicos, das ruas multitudinosas, das rodovias congestionadas (algo graficamente impactante  em  Panamérica,  numa sintonia  sincrônica  com  Weekend), tomados  como  sets do  poder  da imagem e da informação – do espetáculo, do consumo e do desastre civilizacionais –, nos instantes mais decisivos da formação da época contemporânea.

Intriga perceber que a recepção de José Agrippino, declarada por parte de Sérgio Sant’anna é, também, visível na concepção de contos como “O cego e a dançarina”, de J.G. Noll, criando assim um veio renovado, nitidamente localizado depois do modernismo. Toda uma vertente se acentua na atual cena quando se têm em mira a repercussão desse diálogo e o desmembramento das criações do autor de Panamérica – Epopéia no inventivo projeto desenvolvido por André Sant’anna (filho, aliás, de Sérgio Sant’anna, de quem herda a admiração por De Paula).

Explicitamente devotados a uma releitura de José Agrippino, títulos como Amor e Sexo lidam com um sentido ativo de proliferação de dados, decisivos para noções inovadoras de personagem, espaço e tempo.   Não  surpreende  que  André Sant’anna provenha do trabalho com publicidade, tendo mesmo composto Sexo (1999) a partir de estatísticas, de uma pesquisa de perfil de consumidor, como testemunhou quando da época do lançamento do livro.
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Profuso, excessivo, o acúmulo de referenciais para o sexo advém dessa afinidade com o corpo extenso da multidão de criaturas e elementos tópicos/topológicos, influentes para a construção de um livro concebido como locus. Nesse ponto, não podem ser omitidos a enquete sociológica, o levantamento estatístico acerca de habitação, da população jovem (força demográfica/fator de consumo, tal como apreendido em Masculino Feminino), das formas de ganho e remuneração do trabalho urbano no compasso  das  mudanças ocorridas no tecido social das metrópoles  em crescimento (influentes, por sua vez, num título como Duas ou três coisas que sei dela).

Documento e experimento combinados gestam uma orquestração ao infinito dos componentes da arte narrativa. Os direcionamentos para tal procedimento de ficcionalização obtêm os mais diversos contornos. Entre a compressão e uma formulação mais estendida de relato, entre o compacto e o híbrido, o gênero romance no Brasil, dentro dessa via/vertente, mantém um vínculo com o desenho de produção/autoria lançado por Godard em seus filmes. Tudo o que envolve modos de compor e cortar o fluxo enunciativo, o surgimento e a interrupção de personagens com suas palavras/vozes, em ação, numa explícita moldura de insert, com legenda, originária das fontes menos esperadas – as mais próximas do artifício e do ralenti reflexivo, muitas vezes ensaístico. Citações recombináveis, produtoras de desdobramentos narracionais, acabam por se tornar conexas e constantes, integradas a um espectro amplo de possibilidades do que pode ser um raconto (em qualquer extensão que seja). São extraídas dos livros e dos cartazes, da fala aleatória de rua e de todo o campo da arte e do saber, da história cotidianamente configurada em um vasto repertório icônico, textual e instrumental.

O cine JLG repercute, não apenas no autor de Sexo, mas também em um outro surgido nos primeiros anos 2000, caso de Botika, com Uma autobiografia de Lucas Frizzo e, sobretudo, Búfalo. O passar do tempo só faz aclarar a decisiva incursão godardiana por um vórtice multiplicador de práticas vivenciais e atitudes crítico-conceituais na dinâmica produzida entre o laboratório das artes, captadas por suas imagens, e o crivo analítico da passagem de mulheres/homens sob o fio cortante da história de uma época. De filme a filme. De livro a livro (citado e criado a contar de JLG).
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O romance agora aparece como urgência, curiosamente delineando-se a partir de uma matrix reconhecível – Botika depõe, em entrevistas, sobre o diálogo bem direcionado com José Agrippino –, já reconfigurada pelo arsenal mediático do século XXI e por um caráter mutacional da idéia de personagem, entre o inanimado e o hipermaquínico. Nítido, entretanto, se ressalta o componente da caminhada, colhida numa multidão de corpos e referentes, timbrada por um vivaz cinematismo. Algo que esclarece a filmografia de Godard, desde sempre permeada pela complexa composição do campo áudio-visual,  e também no que concerne a autoria (em termos de citações/resituações textuais), envolvida pela refeitura de todo um aparelhamento técnico, não somente no plano mediático, mas por conta da  produção em seu sentido mais presente e interventivo.        Um escritor como Botika se encontra nessa sintonia, uma vez que dá atualidade ao investimento e à investigação da arte em seu instante como deflagração e orbitação dos signos em vigência, no calor da sua hora, no clamor da insurgência, numa voltagem pluralizadora de recursos e usos.

Destaca, com justeza, Siegfried J. Schmidt a abrangência contida na noção de história da literatura, tendo em conta o sentido plurificador da historiografia – “Existem histórias, mas não a história literária” (Schimidt, 1996: 119) –, principalmente quando o fator da historicidade se mostra decisivo. Intensifica-se, então, o sentido de construtividade (histórias) no descarte dos modelos teleológicos, tomados como pressupostos, assim como da idéia de atemporalidade da arte. Principalmente quando o empenho  historiográfico procede por uma infinitude e incompletude de materiais, a operar por meio de domínios coexistentes e intercomunicantes, no ato do fato se dar como visível e documentável.   Já se depreendia do conjunto videográfico História(s) do cinema, de 1998, essa propulsão diagramático-mapeadora de todo um século sob o signo fílmico, segundo Godard, que, por sua vez, realizava um mapa da literatura, coetâneo com o empreendimento arquigenealógico no qual o cinematógrafo pôde se inserir.

Desde 1968, marco da contemporaneidade, transformam-se os agentes envolvidos no processo histórico e o horizonte de seu surgimento, assim como as formas de intervenção, para além de um desígnio macrológico, pré-figurado em determinações, projetado como totalização. Subsistem de táticas colhidas em processos individualizadores, a um só tempo minorizadas e multiplicadoras de focos. Nesse justo ponto, a produção do cinema ganha corpo e dá seu corpo nos embates do tempo, nos rumos da historiografia, inclusive, já que várias dimensões do homem e do artista são envolvidas em seu momento, num misto de entrega à imediaticidade e da marca cartográfica, citacional –  de uma vasta e heterodoxa enciclopédia de textos/imagens – advinda de um vivo senso de historicidade, crítico dos legados modernos, seculares, de toda/uma só história (como frisa a godardiana série de vídeos mencionada, produzida em 1998).

No cume do corte feito com Pierrot le fou em relação à máquina industrial cinematográfica, passando pela formação tático-guerrilheira de A chinesa até tomar o contorno mais preciso da militância programática junto ao grupo Dziga Vertov, Godard esteve envolvido com a radicação mais extremada dos componentes de um filme. É o que se apreende desde uma acepção de leitura/escrita até o engendramento de uma arte imbuída de técnica, que incorpora a história de um século, embalada já no andamento de outro, traçado por esferas conjuntas de tecnologia e geopolítica.

Desde então, desde os começos e recomeços de Godard no cinema (e do cinema, segundo JLG), favorável se mostra uma genealogia dos modos de ler/ver/narrar dentro de dispositivos que envolvem a cultura, a redefinição do coletivo pertencimento humano e sua imagem – arquivamento e ato vivo, simultâneo, em mais de um campo de visibilidade e saber. Filme Socialismo (2010), no extremo da filmografia e dos séculos de Godard, dá essa visão, emprendendo uma viagem transatlântica, amplificada em sua diversidade de elementos “a bordo”, não produtora, porém, da “panorâmica” da história.

Para lá da noção sedimentada de socialismo, o filme se move em conjunções nada pacíficas. Incita mutações por meio do contato travado com um sem-número de integrantes heterogêneos do planeta sobre as águas. Fomenta o coletivo global na era da terra única, como bem contextualiza Sloterdijk a mundialização em O estranhamento do mundo.

Pela rota de um incurso insurgente, provocador de uma impensada socialidade, propício a outro modus narrativo, engendrado por forças e formas em reunião.

Talvez esse livro não chegue aí no futuro pois talvez não exista mais a possibilidade de parir uma alma viva. Talvez as últimas gerações estejam por vir, em pouco tempo. Talvez não. Eu ainda tenho vontade de ver vida, mesmo sendo parte do desastre, acreditando que seja real a calma que um dia senti. Massagem óssea. Muco no sangue. Músculos descontraídos. Vista boiando em horizonte de superfície oceânica. (Botika, 2010: 145-146).

 

 

 

Referências Bibliográficas:

BOTIKA. Búfalo. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010.

HELDER, Herberto. Photomaton & Vox. 2.ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1987.

SCHMIDT, Siegried J. “Sobre a escrita de histórias da literatura.”  Trad. Rejane de Castro Neves e Heidrun Krieger Olinto. In OLINTO, Heidrun Krieger (org). Histórias de literatura. As novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996. p. 101-132.

SLOTERDIJK, Peter. O estranhamento do mundo. Trad. Ana Nolasco. Lisboa: Relógio D’Água, 2008.

 

 

 

 

 

 

 

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Mauricio Salles Vasconcelos é autor do ensaio Rimbaud da América e outras iluminações (2000), de Stereo (ficções), editado em 2002, e do romance Ela não fuma mais maconha (2011). Publicou os livros de poesia Sonos curtos (1992), Tesouro transparente (1985) e Lembrança arranhada (1980). Dirigiu, entre outros videos, Ocidentes (2001), tendo por base seu livro-poema Ocidentes dum sentimental (1998), uma recriação de “O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde. Inéditos: Brasileira (romance); as narrativas de Alguém, Augusta (Garotas); Espiral Terra – Poéticas contemporâneas de língua portuguesa (ensaio) e Giro Noite Cinema – Guy Debord (video). Carioca, vive em São Paulo. E-mail: vasconcelosmauricio@hotmail.com




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