Haicai entre bananeiras


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O ideograma de kawa,”rio”, em japonês, pictograma de um fluxo de água corrente, sempre me pareceu representar (na vertical) o esquema do haikai, o sangue dos três versos escorrendo na parede da página.

(Paulo Leminski, Distraídos Venceremos)

 

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Devo meu interesse pelo haicai, essa forma poética da concentração, ao movimento interno que me levou até a prática budista de Nichiren Daishonin, a qual abracei para toda vida há mais de 20 anos. Uma aproximação por camadas, por etapas, por níveis de compreensão e revelação.

Para entendermos o que é essa manifestação da ‘concisão nipônica’ e para que ela não se torne um ‘veículo da tagarelice’, como argumenta o escritor baiano Antonio Risério (e muitos outros, críticos do uso excessivo e diluído dessa forma poética no Ocidente), vamos fisgar um pouco de sua história.

É necessário primeiramente entender o haicai, ou haiku, no contexto da poesia japonesa. Em seu aspecto formal, a poesia japonesa não conhece a rima nem a versificação acentuada, tendo como recurso principal a medida silábica. O poema clássico japonês, o tanka, é um poema curto de 31 sílabas com 2 estrofes, uma de 3 versos de 5, 7 e 5 sílabas e a outra de 2 versos de 7 sílabas cada.

Para chegarmos ao haicai, além de corrermos o relógio da história japonesa, temos que derivá-lo da renga que é uma variação do tanka. A renga remonta ao ano 770 e alcança seu apogeu no século XII, sendo a forma poética utilizada por nobres e cortesãos. É formada por uma série de poemas encadeados, ligados pelo tema da estação. O gênero mais leve, epigramático ou satírico, era chamado de renga haikai e o poema inicial desta série encadeada, hokku.

Esta arte foi praticada e retrabalhada pelo seu maior (em minha opinião) artífice, Matsuo Bashô (o sr. Bananeira para os íntimos) e seus discípulos, que lhe deram um novo sentido e depuraram sua forma até chegar naquela conhecida até hoje como haicai, com 17 sílabas distribuídas em três versos de 5, 7 e 5 sílabas. Talvez mais exato seja chamá-lo de haiku, que é como ele passou a ser chamado quando solto, desprendido, da série encadeada renga haikai. Haiku é uma palavra síntese de haikai + hokku, e da forma como foi praticado por Bashô e seus discípulos, deixa de ser um mero passatempo ou jogo de salão para se tornar um exercício espiritual, uma espécie de satori ou iluminação instantânea. Daí que sua prática está profundamente relacionada com o budismo, mais especificamente com a vertente zen budista.
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A busca zen budista, em sua disciplina, consiste na aquisição de um ponto de vista diferenciado, novo, que seja capaz de captar a essência de todas as coisas. Segundo D.T. Suzuki, que foi o principal divulgador do zen budismo no ocidente, a iluminação zen ou satori pode ser definida como ‘um olhar intuitivo no âmago das coisas, em contraposição à sua compreensão intelectual ou lógica.’

Bem, não vou tentar aqui – o que seria inglório – descrever o que, em sua essência, não pode ser descrito e sim vivenciado. Tentar explicar o zen (que, aliás, não me interessa como prática budista, pois sou discípulo de Daisaku Ikeda) é como tentar captar o vento numa caixa, embora ao ler alguns dos poemas de Bashô temos a sensação de que ele o conseguiu.

casca oca
a cigarra
cantou-se toda

Todos os elementos do haiku, ou haicai como costumeiramente o chamamos, visam a despertar uma emoção estética através da sugestão. Elementos da realidade são descritos com grande economia e concisão, como se uma lágrima contivesse todo o oceano. Uma intensidade concentrada que, quando devidamente apreendida pelo leitor atua como um átomo em seu processo de fissão atômica. Neurônios explosivos. Pílulas de revelação.

sobre o mar, a tarde:
voz de pato vem
vagamente branca…

(Trad.: Olga Savary)

Se compreender totalmente a essência de um haicai é algo quase improvável, traduzi-lo então, é um exercício fadado a infidelidade. No entanto, é possível que aí esteja o grande desafio, a prática de iluminar-se recuperando a centelha original de quem a produziu.

Vejamos alguns exemplos de tradução daquele que se tornou o haicai emblemático e que instaurou o sapo, ou a rã, como o animal totêmico do haicai, desde o momento em que – como diz Leminski – ‘Mestre Bashô flagrou que, quando um sapo “tobikômu” (“salta-entra”) no velho tanque, o som da água.’.
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velha lagoa
o sapo salta
o som da água

(Trad.: desconhecida)
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sobre um velho tanque
salta uma rã: ruído
submergindo.

(Trad.: Abelardo Rodrigues)

 

………VELHA
………LAGOA

………UMA RÃ
MERG             ULHA
………UMA RÃ
…….ÁGUÁGUA

(Trad. Décio Pignatari)

 

sobre o tanque morto
um ruído de rã
submergindo.

(Trad.: Olga Savary)

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o velho tanque
…………………..rã salt’
……………………………tomba
…………………………………….rumor de água

(Trad.: Haroldo de Campos)

 

VELHO LAGO
MERGULHA A RÃ
FRAGOR D’ÁGUA

(Trad. Alberto Marsicano)

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(Abaixo, versão stábile de Augusto de Campos, do livro NÃO)

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Bashô escreveu esse haicai em 1686 no jardim de sua casa, durante um momento de meditação com seus discípulos. Depois de ouvir o ruído de um mergulho exclamou: tobi-komu/mizu-no-o-to, e depois acrescentou a primeira linha: furu-ike/ya.

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Furu-ike/ya/kavasu/tobi-komu/mizu-no-o-to.
Velho tanque     sapo     salta      som da água
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A revelação poética do haicai surge do choque entre a descrição enunciativa da primeira parte com a faísca inesperada da segunda. É sempre assim, a primeira parte delimita e a segunda revela. A síntese é feita em nosso ser gerando a beleza da iluminação.

Embora não contivesse rimas e acentos o haicai permite jogo de palavras, onomatopeias e aliterações, talvez só possíveis em japonês.

O haicai foi assimilado por outras tradições linguísticas em seu aspecto de revelação poética e estética, sendo adaptado às características de cada língua. É claro que o aspecto espiritual e meditativo se perdeu e nos piores momentos gerou uma tagarelice fácil e sem propósitos. Mas, como nos recomendou o próprio Bashô, não devemos descartar uma prática poética contemplativa apenas por não podermos imitá-la, e sim tentarmos buscar o que ela buscava.
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não siga os antigos,
procure o que eles
procuraram.
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No Brasil temos vários poetas que buscaram e continuam buscando o vislumbre que esse tipo de concisão essencial possibilita. Eu mesmo já cometi alguns poemas que são iluminados por essa busca.
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Sabiá trinando.
Parece que a vida toda
carmim se aveluda.
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As copas das árvores
varrem as nuvens do céu.
Bafejo de zéfiro.
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Zunido de cigarras.
Infância estourando
meus tímpanos.
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Usamos as possibilidades da língua e incorporamos os acentos e rimas que nos são ricos. Se em meio a tantos vaga-lumes houver um que consiga driblar a treva, já terá valido a pena.

 

 

 

 

 

 

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Edson Cruz é escritor e editor do portal MUSA RARA (www.musarara.com.br). Graduado em Letras pela USP, publicou três livros de poesia, uma adaptação em prosa do clássico indiano Mahâbhârata e um livro de depoimentos sobre o que seria a Poesia. Seu poemário mais recente, Ilhéu (Editora Patuá), foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2014.

 




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