Gonçalo M. Tavares e a cena de leitura


 

Gonçalo M. Tavares e a cena de leitura: reescrever como gesto

 

1.

Há um texto de Borges intitulado “O Livro”, que consta de uma publicação chamada Jorge Luis Borges: Cinco Visões Pessoais, em que ele monta uma cena de leitura como forma de felicidade e em que considera, principalmente, seguindo Montaigne, que se um livro é uma forma de felicidade não deveria exigir esforço (1987, p. 9-10); mais adiante Borges diz ainda que uma outra forma menor de felicidade é a criação, a criação poética, que seria “uma mistura de esquecimento e lembrança do que lemos” (1987, p.10). Também quando os leitores enriquecem o livro, como se os reescrevessem ao ler, ao reler, ao mover as mãos pelos volumes numa biblioteca que também se move. Numa passagem encantadora do texto, aponta:

Continuo imaginando não ser cego; continuo comprando livros; continuo enchendo a minha casa de livros. Há poucos dias fui presenteado com uma edição de 1966 da Enciclopedia Brokhaus. Senti sua presença em minha casa – eu a senti como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com mapas e gravuras que não posso ver. E, no entanto, o livro estava ali. Eu sentia como que uma gravitação amistosa partindo do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que dispomos, nós, os homens. (…) O livro é lido para eternizar a memória. (BORGES, 1987, p.10-11)

Se o livro é uma extensão da memória e da imaginação, como nos diz Borges, é possível imaginar que uma cena de leitura possa se remontar, como tal, numa re-escritura do livro, numa re-escritura de uma assinatura, de um nome, a partir também de um apagamento do nome ao tomá-lo como partida, como começo, como um começar e, radicalmente, como uma forma de felicidade para a construção de uma outra cena de leitura que se avizinha, que se acolhe, numa cena anterior. Um projeto de Gonçalo M. Tavares, escritor português, nascido em Luanda, em 1970, que tomo como objeto aqui, e que ele chama de O Bairro parte, de alguma forma, deste lugar incerto que procura remontar uma cena de leitura, ou várias cenas de leitura ao mesmo tempo numa vizinhança que se des-avizinha, uma circunferência interrompida. Ora, se tomarmos um movimento ao conceito da série de Gonçalo no seu O Bairro não apenas como um princípio da vizinhança no seu desenho mais simples, o de uma cartografia urbana, mas também como uma construção da comunidade perdida – da comunidade dos sem comunidade, do mito interrompido, como propõe Jean-Luc Nancy, por exemplo –, poderia já, de antemão, me reportar ao que disse Will Eisner no prefácio para uma de suas novelas gráficas sempre cercadas de cidades e seus enlaces de bairros e vizinhanças comuns, e em comum: A Vizinhança – Avenida Dropsie. Diz ele em um trecho do prefácio:

Se você vem de uma cidade grande, a rua na qual você nasceu, cresceu e amadureceu foi sua “terra natal”, e ela sempre foi conhecida como “vizinhança”. A residência definiu você tão certo quanto sua origem nacional e lhe deu uma afiliação vitalícia numa fraternidade que se manteve unida pelas memórias. //

Vizinhança tem períodos de vida. Elas nascem, evoluem, amadurecem e morrem. Mas enquanto essa evolução é mostrada pelo declínio de seus prédios, me parece que as vidas dos habitantes são a força interna que gera a decadência. As pessoas, não os prédios, são o coração da matéria. (EISNER, 2004, p. 1)

É esta condição suplementar do bairro como uma memória de uma vizinhança que está para além de uma paisagem urbana, o bairro como períodos de vida, como um desejo de morte, como um coração que pode morrer, que desloco para o projeto d’O Bairro de Gonçalo M. Tavares, que é por sua vez um além ao sentido da casa, da nacionalidade, da fraternidade, e se impõe como uma cena de leitura que é contrária à noção do monumento do bairro como arquitetura, mas talvez uma abertura de via para um projeto que é o da “monstruosidade bestial” (1994, p. 91), como diz Bataille, para fugir “a uma ralé arquitetônica” (BATAILLE, 1994, p.91). O Bairro de Gonçalo é composto de senhores, e todo o seu bairro, como projeto para uma cena de leitura, é uma circunferência elíptica ficcional da cena de leitura que toma posse de cada um dos senhores que assume como título, como norte, como apagamento do nome, mas ao mesmo tempo como assinatura – a assinatura do próprio Gonçalo. São quarenta senhores previstos para todo o projeto. E oito deles já foram publicados em Portugal. No Brasil, até agora, apenas seis: O senhor Brecht, O senhor Juarroz, O senhor Calvino, O senhor Kraus, O senhor Henri e O senhor Walser. O Bairro é um projeto que toma posse de alguma maneira ou de variação de maneiras de escritura de cada um dos senhores que dão nome aos livros, como singularidades, mas não a posse de métodos (e isto é importante, maneiras mas não métodos), nem a palavra “senhor”, me parece, está se impondo como um contrário ao que é servil, àquele que serve, que é ou seria servo a um senhor que, por dar nome e título e maneira, coordenaria as ações e os gestos das outras maneiras de escritura, desta vez de Gonçalo M. Tavares, ao propor um livro aberto, movente e delicado a partir de senhores, escritores outros, de sua predileção, ou não, para montar uma história particular, e íntima, da cena de leitura como uma cena infinita, a cena infinita do livro impossível, o livro de areia de Borges: “Disse que seu livro se chamava o

Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim.” (1995, p.125); depois, ao dizer do livro de areia como um espaço-tempo que se alarga ao infinito (uma cosmogonia): “Se o espaço é infinito, estamos em qualquer ponto do espaço. Se o tempo é infinito, estamos em qualquer ponto do tempo.” (1995, p.125); e ainda, por fim, que “o livro era monstruoso” (1995, p.127). Escolhi dois livros de Gonçalo M. Tavares para trabalhar aqui, rapidamente, numa esfera móvel ficcional que se organiza nesta suposta cena de leitura infinita de sua escritura, como comunidade e como uma espécie de montagem de livros de areia, ou de um grande e desfeito livro de areia, O senhor Calvino e O senhor Brecht. Imagino também que esta circunferência elíptica ficcional neste projeto de Gonçalo M. Tavares possa comparecer na figuração do círculo que faz padre Antonio Vieira no seu Sermão de Nossa Senhora do Ó (1640), ao dizer que

A figura mais perfeita e mais capaz de quantas inventou a natureza e conhece a geometria é o círculo. Circular é o globo da terra, circulares as esferas celestes, circular toda esta máquina do universo, que por isso se chama orbe, e até o mesmo Deus, se sendo espírito pudera ter figura, não havia de ter outra, senão a circular.

E ainda ao dizer que nesta figuração do círculo, como numa elipse, “O certo é que as obras sempre se parecem com seu autor; e fechando Deus todas as suas dentro em um círculo, não seria esta idéia natural, se não fora parecida à sua natureza.”, para a partir daqui sugerir um novo círculo, o do desejo.

Ou seja, se o desejo de uma circunferência interrompida, como uma elipse, enviesa a cena de leitura como trajetória ficcional àquele que a reescreve como ato, como gesto, como escritura e, principalmente, como aquele que se avizinha das cenas anteriores para refazê-las (ou desfazê-las), é este desejo que vai tomar a escritura como um “poder de ficção” e tomar a “ficção como uma teoria da leitura”, e aí estamos de novo muito perto e inseridos no livro de areia de Borges na leitura sugerida por Ricardo Piglia quando tenta compreender e tomar a verdade de algumas das lições de Borges; diz ele:

Talvez o maior ensinamento de Borges seja a certeza de que a ficção não depende apenas de quem a constrói, mas também de quem a lê. A ficção também é uma posição do intérprete. Nem tudo é ficção (Borges não é Derrida, não é Paul de Man), mas tudo pode ser lido como ficção. Ser borgeano (se é que isso existe) é ter a capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no poder da ficção. A ficção como uma teoria da leitura. (PIGLIA, 2006, p.28)

 

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A Revista Crioula é uma publicação científica dos alunos de pós-graduação da Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (ECLLP-DLCV-USP).

 

Júlia Vasconcelos Studart é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária, Textualidades Contemporâneas, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista do CNPq.




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