García Lorca, poeta e personagem


García Lorca, poeta e personagem, sempre merecedor de ser lembrado

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Em 1998, ano do centenário do nascimento de García Lorca, publiquei artigos e dei palestras sobre esse meu poeta predileto. A versão mais extensa do que eu teria a dizer foi em uma palestra nos Actos Conmemorativos del Centenario de la Generación del 98 y del nacimiento del poeta Federico García Lorca, promovidos pelo Colégio Miguel de Cervantes. Abordei, inclusive, um tema pouco tratado (e que pretendo retomar), o da sua influência na poesia brasileira, e das manifestações de resistência política associadas a ele. A seguir, o texto que serviu como base para essa palestra.

Criador múltiplo, Federico García Lorca sobrepôs gêneros. Teatralizou o poema e poetizou o drama. Transformou o teatro em arte total, trabalhando com todas as suas modalidades, dos fantoches à experimentação vanguardista, acrescentando-lhe música e dança. Fez de ambos, poemas e peças de teatro, coisa para ser declamada e cantada. Foi compositor (na discografia, destaque para a gravação de composições suas com o guitarrista Narciso Yepes e a cantora Tereza Berganza) e artista plástico. Transitou do regionalismo, especialmente andaluz (sendo notável sua recuperação do Cante Jondo, cantar de origem cigana) à mais ousada e desenfreada invenção. Os tão populares Pranto para Ignácio Sanchez Mejías, o Romanceiro Gitano, as Canções, são poemas dramáticos, escritos para serem falados. Recuperam a tradição oral. E muitas das falas dos personagens em peças como Bodas de Sangue e Yerma são declamações de poemas. As peças na linha de frente do repertório teatral também receberam versões cinematográficas por diretores como Saura e Bardén. Muitos de seus poemas são peças obrigatórias no repertório da declamação, como o Pranto para Ignacio Sanches Mejías (Eram as cincoda tardeàs cinco em ponto da tarde…) e o Romance Sonâmbulo do Romaceiro Gitano (Verde que te quero verde…). É possível afirmar que a popularidade da declamação de poemas e do sarau literário se mantiveram pela contribuição lorqueana (pessoal, inclusive, pois foi um grande declamador, com apresentações apoteóticas em público). Expoente da vanguarda espanhola, da geração de 27 (e que grupo, e que geração! – Rafael Alberti, Jorge Guillém, Vicente Aleixandre, Gerardo Diego, Luís Cernuda, Dámaso Alonso, mais seu ambivalente amigo e inimigo Buñuel, seu sedutor Dalí…), integrou a essa modernidade a herança do barroco e de Gongora. Foi ao mesmo tempo clássico e vanguardista. Cerebral e delirante. Apolíneo e dionisíaco. Solar e noturno.

As homenagens a Lorca, por ocasião de seu centenário de nascimento (a 5 de junho de 1998), não só na Espanha, mas no Brasil e no restante do mundo, confirmam tratar-se de um autor popular. De toda a literatura espanhola, o único mais editado e traduzido do que ele é Cervantes. Além de ser lembrado, comentado e estudado, Lorca também compareceu em outros autores. Foi o poeta de outros poetas. Há coletâneas e antologias com as páginas magistrais sobre ele e sobre sua morte, por Antonio Machado, por seus contemporâneos e amigos Luís Cernuda, Jorge Guillém, Rafael Alberti, Vicente Aleixandre, Miguel Hernandez, por Pablo Neruda, que lhe dedicou textos inflamados em Espanha em meu Coração (que integra o livro Tercera Residencia), e por Stephen Spender, seu tradutor em inglês. Allen Ginsberg mostrou que a Ode a Walt Withman foi um dos poemas que o inspiraram a escrever Uivo.

No Brasil, dedicaram-lhe poemas Drummond, Bandeira, Vinícius de Morais e Paulo Mendes Campos. Este último, em sua Ode a Federico García Lorca, fez uma montagem de textos lorquianos, mostrando que sua própria produção poética era um diálogo, mesmo frustrado e impossível, com o interlocutor ausente: Devolvo-te meu canto imperfeito no espanto de um menino que lançasse uma pedra no fundo de um poço e em vão esperasse o baque final tão cheio de paz. Contemporâneos, como Lupe Cotrim Garaude, o citaram e parafrasearam com liberalidade. Dessa geração, são autores de poemas sobre Lorca, entre outros, Hilda Hilst, Renata Pallottini, Roberto Piva, Lindolf  Bell. Seria possível uma sessão completa só com leituras de poemas de qualidade sobre Lorca por autores brasileiros. E valeria a pena um estudo mais extenso sobre essa influência de Lorca no Brasil, desde os anos 30. Um dos possíveis temas deste estudo seria o exame de como alguns desses autores citam ou espelham mais o Lorca do Romancero Gitano, e outros o Lorca do Poeta em Nova York. Outro tema, a difusão oral de sua poesia, complementando a encenação de suas peças, principalmente através da notável declamadora (e também consistente poeta) Maria José Carvalho.

Em São Paulo, cidade na qual estão presentes, não apenas traços de imigração espanhola, mas também dos refugiados do franquismo, especialmente através do Centro Republicano Espanhol, conduzido, entre outros, por Gabriel Otamendi, a evocação de Lorca teve um significado político. As homenagens em curso em 1998 fizeram parte de uma seqüência que incluiu a mobilização de 1968 (presentes Paulo Duarte, Cacilda Becker, Ruth Escobar, Renata Pallottini, entre outros) no Teatro Municipal e na Biblioteca Mário de Andrade, em favor da inauguração do monumento a Lorca por Flávio de Carvalho. Logo em seguida, essa obra seria depredada por militantes do CCC (sinistra sigla de um Comando de Caça aos Comunistas), ensejando novas manifestações, em favor de sua recuperação: foram as leituras de poesia em 1977 e uma sessão na Biblioteca Mário de Andrade em 1978. Tais sessões nem chegavam a ter um duplo sentido, ao homenagearem Lorca e também valerem como protesto em favor da redemocratização do país (lembro-me de, na leitura de poemas de 1977, na porta da Livraria Brasiliense, organizada por mim em parceria com Ruth Escobar, haver uma quantidade de pessoas gravando e fotografando tudo, que, com certeza, não era de jornalistas, porém de informantes policiais).

Mas como ler García Lorca? Por onde começar, em uma obra não apenas múltipla, porém extensa, tão extraordinariamente extensa, até ciclópica, para alguém que viveu apenas 38 anos?

Minha sugestão é começar por aquilo que é central. Por sua poesia. E pelo mais complexo e intrigante de seus livros de poesia, tomando a edição brasileira da Obra Poética Completa (tradução de William Agel de Melo, Martins Fontes, 1989), e abrindo-a no meio, na página 413 de Poeta em Nova York, sua obra radical, assumidamente hermética:

Não me perguntem nada. Eu vi que as coisas

quando buscam seu curso encontram seu vazio.

Ao instalar-se, de 1929 a 1930, em uma Nova York abalada pela grande crise econômica, um ambiente tão diferente de sua Andaluzia natal e da Madri que o acolhera, Lorca experimentou o estranhamento. Na literatura do século XX, é quando imagens, aproximações de realidades diferentes, se apresentam com maior brilho, na descrição alegórica de um mundo metropolitano que perdeu seu eixo, sua identidade e o sentido da origem:

O ímpeto primitivo baila com o ímpeto mecânico,

ignorantes em seu frenesi da luz original.

Porque, se a roda esquece sua fórmula,

já pode cantar desnuda com as manadas de cavalos;

e se uma chama queima os gelados projetos,

o céu terá que fugir ante o túmulo das janelas.

Baudelaire, já em 1846, havia argumentado em favor de uma beleza moderna, uma beleza nova e particular, que se faz presente nas metrópoles: A vida parisiense – dizia ele – é fecunda em temas poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e sacia como a atmosfera; mas não o vemos. Conforme nos mostram seus poemas em prosa, descrições de cenas da vida urbana, seu maravilhoso metropolitano convive com a miséria e o horror. Em um ensaio famoso, Walter Benjamin mostrou que Baudelaire assim inaugurava uma nova relação entre o poeta e a metrópole, simbolizada pelo flaneur, o caminhante desgarrado. Penso que Lorca, no Poeta em Nova York, radicalizou essa relação. Levou-a ao paroxismo, ao fazer que sua voz soasse como a voz dos profetas anunciando o apocalipse, sob forma de colisão entre o mundo artificial, com sua falsa tristeza de luva desbotada e rosa química, e o cosmos:

Nova York de lama,

Nova York de arame e de morte.

Que anjo levas oculta na face?

Que voz perfeita dirá as verdades do trigo?

Quem o sonho terrível de tuas anedotas manchadas?

Para ele, o destino da metrópole era o dilúvio sangrento:

Sangue que busca por mil caminhos mortes esfarinhadas e cinza de nardo,

céus hirtos em declive onde as colônias de planetas

rodam pelas praias com os objetos abandonados.

Poucas vezes alguém delirou com tal intensidade, ao ver

o sangue que vem, que virá

pelos telhados e terraços, por toda parte,

para queimar a clorofila das mulheres loiras,

para gemer ao pé das camas ante a insônia dos lavabos

e esfacelar-se em uma aurora de tabaco e baixo amarelo.

O turbilhão de sangue é recorrente. O famoso Nova York – Oficina e denúncia começa assim:

Debaixo das multiplicações

há uma gota de sangue de pato;

debaixo das divisões

há uma gota de sangue de marinheiro;

debaixo das somas, um rio de sangue terno.

Surpreendendo-se com o que estava a escrever, Lorca comentou, para seu amigo Jorge Guillém, que fazia “fragmentos de prosa de um tipo curiosamente surrealista” (conforme as nota de Guillém para a edição Aguillar da Obra Completa). Esse comentário também se refere a outros textos da mesma época, como a peça teatral El Público, sua obra mais opaca e difícil, que trata da homossexualidade de modo aberto.

Logo no começo do Poeta em Nova York, no poema Fábula e Roda dos Três Amigos, aparece a história de Henrique, Emílio e Lourenço, os amigos que se perderam chorando e cantando. E que estavam gelados, queimados, enterrados e mumificados. Três amigos que eram:

três montanhas chinesas

três sombras de cavalo,

três paisagens de neve e uma cabana de açucena

pelos pombais onde a lua se abaixa sob o galo.

Mas o poema vai se afunilando, à medida que seus versos se encurtam. Conduz a uma descoberta: não é de três que ele fala, mas de um só:

Três

e dois

e um.

O poema é sobre um, sobre ele, sobre Lorca. É sobre minha morte deserta como um só passeante equivocado.

A imagem poética passa a ser fonte de profecias:

Quando se fundem as formas puras

sob o cricri das margaridas,

compreendi que me haviam assassinado.

Percorreram os cafés e os cemitérios e as igrejas,

abriram os tonéis e os armários,

destroçaram os três esqueletos para arrancar seus dentes de ouro.

Já não me encontraram.

Não me encontraram?

Não. Não me encontraram.

Mas se soube que a sexta lua fugiu torrente acima,

e que o mar recordou sem tardança

os nomes de todos os seus afogados.

Lorca pretendera dar ao Poeta em Nova York, inicialmente, o título de Introdução à Morte. Vidente, com a sensibilidade exacerbada pelo sentimento da ausência de seu país, da falta e da perda após o fracasso de seus relacionamentos amorosos, antecipou, naquele final de 1929, a catástrofe coletiva que sobreviria em uma década, e a catástrofe pessoal, seu assassinato em agosto de 1936, nos primeiros dias da guerra civil espanhola, quando fascistas o sequestraram, fuzilaram e enterraram em uma vala que nunca foi localizada (Não. Não me encontraram…).

Marcelle Auclair, sua amiga pessoal, autora de uma biografia importante (Enfances et mort de Garcia Lorca, Éditions du Seuil, 1968), mostra como a morte e o assassinato, obsessões em sua obra, aparecem como premonição do seu destino. Cita as Bodas de Sangue. O famoso Romance da Guarda Civil Espanhola, do Romanceiro Gitano. E, de seu último livro de poesias, de 1936, o Divã do Tamarit, o poema que é uma despedida, o Gazel da Morte Sombria:

Quero dormir o sono das maçãs,

afastar-me do tumulto dos cemitérios.

Quero dormir o sono daquele menino

que queria cortar o coração em alto-mar.

Não quero que me repitam que os mortos não perdem o sangue;

que a boca podre continua pedindo água.

Não quero saber dos martírios que a erva dá,

nem da lua com boca de serpente

que trabalha antes do amanhecer.

Outras fontes categorizadas seguem por esse caminho. A mais recente, Célia Berretini, no Jornal da Tarde de 30 de maio de 1998, abrindo com o Memento do Poema do Cante Jondo: Quando eu morrer,/ enterrai-me com minha guitarra/ sob a areia.

De minha parte, acrescentaria ao elenco de poemas antecipatórios a Canção da morte pequena, de 1933, publicada postumamente nos Poemas Esparsos, que me parece arrepiante em sua secura, sua concisão, e que por isso apresento na íntegra:

 

Prado mortal de luas

e sangue sob a terra.

Prado de sangue velho.

Luz de ontem e de amanhã.

Céu mortal de erva.

Luz e noite de arena.

Encontrei-me com a morte.

Prado mortal de terra.

Uma morte pequena.

O cachorro no telhado.

Só minha mão esquerda

atravessava montes

sem fim de flores secas.

Catedral de cinza.

Luz e noite de arena.

Uma morte pequena.

Uma morte e eu um homem.

Um homem só, e ela

uma morte pequena.

Prado mortal de lua.

A neve geme e treme

por trás da porta.

Um homem, e daí? O dito.

Um homem só, e ela.

Prado, amor, luz e arena.

Contudo, há divergência entre seus principais comentaristas quanto ao lugar mais ou menos central do Poeta em Nova York e do restante de suas obras mais herméticas, delirantes e próximas ao surrealismo. Alguns – como Jorge Guillém, no prefácio da edição espanhola das Obras Completas – passam a ideia de um autor mais apolíneo e cerebral. Marcelle Auclair também trata o Poeta em Nova York como exceção. O próprio Lorca reforçou essa impressão em suas palestras de 1927, ao propor a revalorização do Gongorismo, e, por extensão, do apuro formal, da criação mais a frio.

O modo de ler Lorca altera-se, penso, a partir da publicação em 1987 de Federico García Lorca – uma biografia, de Ian Gibson (Editora Globo, 1989), promovendo a reavaliação da sua contribuição, que coincidiu com a encenação da peça maldita El Público, por sua vez justificando um número do Magazine Littéraire dedicado a ele, de janeiro de 1988. Ian Gibson corrigiu e retificou alguns chavões associados à figura de Lorca. Mostrou como ele já vinha dialogando com o surrealismo ao longo dos anos 20, principalmente no período mais frenético de sua relação com Dali, quando o artista catalão também escrevia prosa poética e o poeta andaluz produzia desenhos oníricos. Além disso, Lorca parece sempre haver achado que o poeta era uma espécie de médium, veículo de uma fala não necessariamente sua, vinda de outro lugar, expressão de uma alteridade, o “duende”, conforme sua palestra de 1933 sobre essa versão andaluza do “daimon” grego, do delírio inspirado de Platão. Para Gibson, a imagética lorquiana, além de recuperar a metáfora gongórica, e de apresentar afinidade com o surrealismo, tem raiz andaluza, em um modo regional de expressar-se.

Em suma, na questão da exuberância e riqueza imagética, ele destaca a coerência, o quanto essas características fazem parte de uma trajetória intelectual complexa, porém consistente, e não apenas de uma sucessão de vacilações, crises e alternâncias na criação literária. Abrangente, mais que ciclotímico, buscando abarcar desde as raízes árabes da Andaluzia até as vanguardas europeias suas contemporâneas, Lorca, foi, sem dúvida, exemplarmente, o poeta da emoção, do sentimento, da subjetividade exacerbada; mas, ao mesmo tempo, sabia muito bem o que estava fazendo. O fato de pôr-se a escrever textos como Poeta em Nova York e, mais ou menos simultaneamente, as peças El Público e Asi que se pasen cinco años (peça, segundo ele, impossível de ser encenada; segundo Marcelle Auclair, “peça de vertigem”, na qual o protagonista, que preferiu sonhar a viver, é assassinado no final) atestam sua honestidade e coerência. Diferencia-se de boa parte do que aconteceu no âmbito das vanguardas e movimentos literários por sua natureza avessa ao sectarismo, por sua compreensão do caráter plural e contraditório da poesia e da própria vida.

Gibson acha (conforme declarou ao Magazine Littéraire) que a obra principal de Lorca é Poeta em Nova York. Com razão, a meu ver. Mas essa preferência não o leva a desconsiderar a produção regionalista de Lorca, o Cancionero Gitano e as Canções de 1924, mesmo corrigindo o exagero na imagem do Lorca “gitanista” e popularesco. Complementar à visão de Gibson é, parece-me, a do ensaísta espanhol Francisco Umbral, autor de García Lorca, Poeta Maldito (Editorial Brughera, 1977): apresenta-o, em primeira instância, conforme já declara no título, como hiper-romântico, obcecado pela exaltação amorosa como transgressão, perda e destruição. Umbral mostra o poeta transgressivo, noturno e “maldito” já presente na produção literária dos anos 20, nas Canções, no Romanceiro Gitano. Sob essa ótica, Poeta em Nova York definitivamente não seria uma exceção, porém a matriz, o paradigma, cuja leitura ilumina os demais aspectos de sua obra. Não só El Público e Asi que se pasen cinco años, mas também a Ode ao Santíssimo Sacramento do Altar, de 1928, que escandalizou a Manuel de Falla, seu parceiro e incentivador na organização do festival do Cante Jondo, a quem Lorca a havia dedicado. De Falla era um católico austero e tradicionalista, tipicamente espanhol, de uma das metades da Espanha da época, a outra sendo passionalmente anarquista e anticlerical. Não agüentou coisas como a descrição do Sacramento na forma de manômetro que salva/ corações lançados a quinhentos por hora.

Entre os textos transgressivos estaria, igualmente, Thamar e Amnón, poema que encerra o Romanceiro Gitano. Baseia-se em um episódio bíblico, a história de um amor entre irmãos, descrita de um modo tão lírico que acaba sendo a apologia do incesto. Pode ser uma metáfora da sua homossexualidade, de seus amores proibidos. Mas seria redutor e simplista explicar o desespero lorqueano, sua exacerbada fascinação pelo proibido e marginalizado, exclusivamente por suas paixões secretas e mal resolvidas, declaradas de modo tão pioneiramente explícito, na primeira pessoa, em Tua infância em Menton do Poeta em Nova York:

Norma de amor te dei, homem de Apolo

pranto de rouxinol alienado

porém, pasto de ruínas, te afiavas

para os breves sonhos indecisos…

O drama amoroso é apenas uma circunstância a mais. Um dos aspectos de uma contradição maior entre sujeito e objeto, desejo e realidade, sensibilidade poética e o mundo, que o levou a retratar o mundo, na Ode a Walt Whitman, de forma direta, nada hermética, desde que se queira entender o que é dito:

Agonia, agonia, fermento e sonho.

Este é o mundo, amigo, agonia, agonia, agonia.

Os mortos se decompõem sob o relógio das cidades,

a guerra passa chorando com um milhão de ratas grises,

os ricos dão a suas queridas

pequenos moribundos iluminados,

e a vida não é nobre, nem boa, nem sagrada.

Algumas vezes, utilizei-me de Lorca para criticar um certo desinteresse acadêmico por estudos biográficos. É comum, em cursos de literatura e na própria produção da crítica, a exigência de que a análise de um autor se atenha exclusivamente a seu texto, ao que foi por ele escrito, deixando de lado o contexto, do qual faz parte a vida do próprio autor. Por exemplo, ao se examinar a exacerbação e a exuberância lorqueanas, fingir desconhecer suas obsessões pessoais e sua tragédia. O resultado desse vezo cientificista e burocratizante sempre será o empobrecimento do ensino da literatura e da própria leitura. Por isso, recomendo que a fruição de poemas e peças de teatro de Lorca seja acompanhada pela leitura de uma de suas biografias. A de Ian Gibson é um modelo do gênero, um dos melhores estudos biográficos jamais feitos, resultado de décadas de pesquisa. Um trabalho de tal envergadura, reaproximação de criador e obra, é possível se o autor-tema, além de legível, literariamente importante, for biografável, apresentando interesse como personagem. E Lorca é um biografável por excelência, um personagem de si mesmo. Entre outros motivos, por seu assassinato o haver transformado em mártir; pela coexistência de seu brilho pessoal, de seu enorme carisma e capacidade de liderança, com as dificuldades por haver sido homossexual em uma cultura machista; pelo hermetismo de partes de sua obra coincidir com mistérios de sua vida íntima; pelos desafios oferecidos ao biógrafo pela ausência de dados decisivos, com o desaparecimento de uma parte de sua correspondência e a destruição de documentos na Guerra Civil espanhola; enfim, por todos os paralelos possíveis entre vida e produção literária.

Ao contrário de fontes categorizadas, como Marcelle Auclair, que preferiram a discrição, comentando, quando muito, sua paixão por Dalí, Gibson enfrentou a vida amorosa do poeta. Abordou seus “casos”, como o do escultor Emílio Aladrén, que antecedeu sua crise e depressão de 1928/29, e sua ida aos Estados Unidos e Cuba. Esmiuçar episódios amorosos e sexuais não é sensacionalismo, porém respeito aos fatos. Não se pode aceitar a idéia de um García Lorca assexuado ou platônico, quando ele mesmo tematizou os amores proibidos, em El Público e nos Sonetos del Amor Oscuro, inéditos por décadas. Enfim, a maior clareza da figura do poeta beneficia enormemente sua leitura, pois as circunstâncias de sua vida não são mera informação contextual. Estão dentro da obra, conferindo-lhe sentido.

Impressiona, em especial, a explosão de atividade e criatividade de seus últimos quatro ou cinco anos de vida, do ciclo que se inicia com sua viagem e a triunfal aclamação na Argentina e Uruguai, em 1932/33. É o período das suas grandes peças de teatro, do Pranto para Ignácio Sanchez Mejías, do Divã do Tamarit, das viagens e conferências, e também de uma intensa atuação como animador e agitador cultural, percorrendo a Espanha para oferecer teatro ao povo com o grupo La Barraca. Sua familiaridade com a morte, sua obsessão pela morte, estão na razão direta de seu entusiasmo pela vida. Ou não? Ou, antevendo sua morte – pois, nos últimos dias, ele parou, deteve-se em sua terra natal, reduto de falangistas, como se a aguardasse, embora tivesse todas as chances de safar-se, de escapar vivo, conforme relata Gibson em páginas arrepiantes – procurasse, então, completar em cinco anos o trabalho de uma vida inteira?

Seja como for, sua multiplicidade e pluralidade somam-se e compõe uma imagem, a do poeta assassinado – morto pela inveja e ressentimento, conforme argumentou seu amigo Luís Cernuda em um poema comovente, morto porque sua obra seria um espelho de Caliban, uma imagem de uma sociedade que esta não agüentava enxergar – que se tornou um dos mitos do século XX, com todo o merecimento.

 

 

 

 

 

 

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Claudio Willer (São Paulo, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Traduziu parcialmente Ginsberg e Artaud, e a obra completa de Lautréamont. Publicou também, entre outros, Geração Beat, L&PM Pocket, 2009 e a tradução do Livro de Haicais, de Jack Kerouac (L&PM, 2013). E-mail: cjwiller@uol.com.br




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