Feito nas Letras



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A literatura brasileira contemporânea, produzida na virada do século XX para o século XXI, é formada por muitas vozes. Além de revisões constantes do cânone literário, há os herdeiros das propostas da poesia concreta, há ainda bastante ênfase na literatura dita social, há a poesia da ação afirmativa dos movimentos negro, homossexual, etc. Entre essas muitas vozes, há a poesia feita nos cursos superiores de Letras, realizada por alunos e professores; com os objetivos de ser mais um veículo de divulgação dessa literatura, dei início em 2009, dentro das propostas do selo [e]xperimental – coordenado por mim na editora Annablume – à coleção Feito nas Letras.

Os três primeiros volumes são livros de poesia: Ávida espingarda, uma antologia de poesia de alunos dos cursos de Letras da FFLCH-USP, que eu organizei; Há saci na fome, um volume de poesias de Luís Venegas, aluno do curso de Espanhol da mesma faculdade; Os tempos da diligência, meu quarto livro de poesias.

Quando organizei Ávida espingarda, meu objetivo principal foi colocar, à disposição do público leitor de poesia, a expressão dada a ela por estudantes com formação acadêmica nessa área; longe de ser a única a contribuir para isso, ela está inserida em um sistema de textos e discursos formado por outras publicações, como revistas literárias, jornais estudantis ou livros de produção independente – tratava-se apenas da primeira das antologias de estudantes de Letras que eu pretendo fazer.

Quem pratica literatura na cidade de São Paulo verifica que há centros de concentração desse tipo de atividade. Há a Casa das Rosas, que oferece cursos e promove saraus; há debates e oficinas literárias na Biblioteca Alceu Amoroso Lima e na Livraria da Vila; etc. Como alguns alunos e professores de cursos superiores de Letras frequentam esses lugares e também fazem literatura, seja prosa, seja poesia, pretendo que a coleção Feito nas Letras, em meio a outras publicações que já existem, seja porta voz do modo de escrever desse tipo de profissional.

Certo dia, em meados de 2008, perguntei nas minhas salas de aula quem escrevia poesia e recebi textos de alguns alunos; entre eles, selecionei os poemas da Renata Taño, do Eduardo Villar e da Monique Prevedel. Em seguida, fui ao encontro de alguns alunos, cujos poemas havia lido antes – a Ellen Martins e o Gustavo Vinagre Alves há tempos me mostravam contos e poesias, o Gustavo participa da M(ai)s – Antologia SadoMasoquista da literatura brasileira, organizada por mim e pelo Glauco Mattoso em 2008. Dele também veio o contato com a Juliana Amato; foi o Gustavo quem me apresentou os poemas dela.

Quando, no final de 2008, fiz o prefácio da antologia Santo Largo Treze, li com mais atenção a poesia do Ivan Antunes e resolvi convidá-lo a participar. O Ivan é um velho amigo, há algum tempo acompanho seu trabalho como estudante e ativista da literatura no bairro de Santo Amaro. Por último, minha querida amiga Natália Guirado sugeriu que eu entrasse na Internet e lesse os poemas da Ana Cristina Joaquim, que, depois de resistir um pouco, resolveu publicá-los no livro.
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Selecionei, para nossa coluna, um poema de cada um deles:

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Renata Taño

agora sim:
ballet russo,
vinho espumante
camarón y fito
sete vezes ao dia.

agora sim:
pálpebras molhadas
cuíca vazia
razão que não explica
o que se passara.

agora sim: agora sim:
um racho um talho
no riacho no tecido
roxo todo.

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Eduardo Villar
haicais

passos pela rua
as nuvens escondem
parte da lua

mil traços na sombra
de meus passos – da parede
meu eco me assombra

vento nos carvalhos
escolhas: perdem-se as folhas
mas ficam os galhos

seguindo entre os carros
uma sacola era pluma
vácuo e ventos… calmos

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Ellen Maria
Condição menor igual a dois

Meu grilo é maior que o seu
sossego, Carolina,
como pode ter tanta certeza de que é certo e eterno
se eu quase acho que amar é errado
que viver é um acidente?
Convença-me de que estou equivocada.

Meu sorriso é maior que o seu,
Carolina,
porque você me esperava enquanto eu não imaginava
a sua existência
você só me procurava enquanto eu achava
que o que eu achava era o melhor que me podia aparecer.
Grande surpresa eu tive.

Seu calor é maior que a minha
dúvida, Carolina.
Sua pele branca, arma branca
sua e me faz suar.
Assim você acaba comigo.

Sua arquitetura é tão precisa quanto a minha
literatura, Carolina
você diz que eu completo o teu avesso
com meu verso, eu duvido.
Esse nosso caso não raso
ainda vai me tirar da métrica.

Seu kung fu não é maior que a minha
yoga, Carolina
Minha vata, pitta e kapha não competem
com seu karma.
Não me sobra nada contigo.

Meu medo é maior que o seu
desejo, Carolina
olhares tortuosos me torturam.
Não sei não sentir falta do que tinha
eu posso ter me precipitado.

Sua cobertura é maior que a minha
abertura, Carolina
talvez eu me arrependa dessa sentença,
mas não nasci convicta para constância.
Gosto da janela aberta e do vazio impermanente.

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Gustavo Vinagre
Antropofagia
para Glauco Mattoso
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Sobre antropofagia sempre lembra,
ao falar dos modernos – Tão legais…
Também de tribos, velhos canibais,
que na janta, matar era um emblema.

Isso, pra todo mundo, hoje, é problema.
São poemas modernos, ancestrais
Humano no cardápio, não, jamais
Mas pro cu vou mandar o estratagema

de literal maneira, inteiro engulo
o pé, sem drama ou dor, do Abaporu
no punho dum negão feliz eu pulo

É antropANALfagia. Ai, ai, uh!
digo verso ao peidar, com muito orgulho
como homem, bem melhor, se pelo cu.

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Juliana Amato
experimento 1
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uma dor daqui e outra
de lá. o passado, que
lá habita, passado que
habitaqui. daqui, a par
tir daqui o futuro. não.
futuro tão-sem-futuro a
partir de agora tão sem a

r. uma dor daqui fruto do
frio daqui fruto da falta de
lá. falta lá. Medéia, me dá.
diz o que é lá, o que tem e
se. o que não tem e diz o
que me vem. assim, ora
cularmente. calma e vem
dizer o que tem além de

lá.

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Ana Cristina Joaquim
De ser tão idéias
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Você tinha olhos abertos olhos estatelados
Tinha olhos como quem olha uma jaca
e era meio a meio mulher
e era meio a meio (meio) homem
pois não podíamos
franzina como quem olha uma jaca estatelada
debaixo e por todos os lados de mim
e sob meu travesseiro olhava como quem olha estatelada
seus olhos
você tinha olhos
você via uma jaca
e então pensamos e tínhamos medo
de ser jaca de ser tão estateladas (logo nós, ambas)
que era eu só eu era sozinha
e debaixo de mim por mim que idéias essas
essas de você que tinha
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Monique Prevedel
Falta sua Rima

Ainda na cama
com o sol já na cara,
o coração reclama
a sua falta dispara
No peito nu.

Coceiras no corpo denunciam,
entre a colorida coberta,
a falta que seus beijos faziam
na boca entreaberta
O lábio cru.

Inspirações, venham!
Assim, preto-no-branco
E, para você, meus poemas contenham
a expressão do encanto
Dum negro anu.

Ivan Antunes
paixão a ti atari

a do lar do lado de lá
só pensa em bisbilhotar
a tela do televisor
ao ver a possibilidade
de jogar o come-come
busca um joystick poderoso
e debruça na janela
pra trepar no telhado
e na volta
amassa o toldo
pra chegar no varal
e ver o mirrado musculoso
do pinto pequeno
chacoalha o corpo
tira-roupa-põe
inventa tarefa nova
rebolosa
escova todo chão
bisbilhota a silhueta masculina
sem camisa
aperta os seus botões
sem trocar de cartucho
interage toda toda
pra fazer o tal joguinho

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Também em 2008, eu conheci o Luís Venegas, autor de Há saci na fome. Foi durante a palestra de abertura de um ciclo de debates ocorrido na faculdade; no final do evento, o Luís se levanta, mas antes de sair ele distribui a todos uma folha de papel sulfite, dobrada em três partes, com alguns dos seus poemas. Figura curiosa, tinha mais o aspecto de poeta marginal que de poeta concreto – Luís sabia das coisas.
Conhecendo os processos de composição formal, sua poesia se vale da influência de técnicas como as de Cummings, por exemplo, em que se nota o desdobramento da palavra em outras palavras; o título do livro é uma ilustração disso, que já prepara o leitor para o tipo de composição esperada: há saci na fome – assassina fome. Contudo, sua temática difere bastante dos encantos metapoéticos dos concretistas e afins; em seus temas, Luís é um poeta marginal: ressacas, pagode com caninha embebida, tucuruvi no tabuleiro e sua gente de toda classe e parte…

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De Há saci na fome, selecionei este poema:
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porção de ariagnée

alô queda
sua entranha neste momento
é imprescindível pra minha sanha

apenas regozijo-me
na candeia de trindade
vez ou outra gaio
em kana pra cadela

mas a artilharia das casas
vem de fora
desperta ossos
retroamarra as medulas

p e n s o m u i t o

mais do que acredito
no seu olhar de grito
achando que escolher
parati é difícil

mais preu que arrebite sinte
a sua fala da minha pala
retina saltando sobre as pupilas
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Por fim, do meu livro de poemas Os tempos da diligência, seleciono este poema:
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Cubo

ou
a mão passeia pelo quase
arrisco que a mão passeie pelo quase
ah!
por pouco era
mantra
buzina
piano preparado solto na planície que separa
meu canto primata
primal
primeiro soco da manhã
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Em 2010, no ano seguinte ao lançamento da coleção e dos três primeiros volumes, foi lançado Dissoluções do como, de Flávia Santos, aluna do curso de Russo da FFLCH-USP. Flávia ganhou, com poemas selecionados de Dissoluções do como, o prêmio Nascente USP no ano de 2007; foi uma honra publicar o texto integral, acompanhado de ilustrações feitas pela própria autora. Dele, selecionei este poema:
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O menino tira da caixinha as coisas obsoletas

Luneta de ver de onde vem formiga;
Cheiro de coisa que não tem nome;
Pedaço de pensamento de reinação;
Três luvas de tocar as estrelas do céu da boca;
Dois mantos de abelhas amargas, que servem para cobrir o mar.

Punhado de palavras que fogem da fala;
E pedaços de olhares desviados;

O menino dessas desimportâncias
quer retirar o sentido,
e ver se isso funciona para versos,
ou mesmo cantigas.

O menino acha que o desuso
é fábrica para versos:
como o silêncio.

O menino sem saber
inventou uma máquina
de desdizer as coisas:
e repeti-las.
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Por fim, em 2011, foi a vez de dar voz aos professores dos cursos de Letras da FFLCH-USP; foram lançados quatro livros: dois de poesia, Do centro dos edifícios, de Álvaro Faleiros, professor da área de Francês, e Estilhaço, de Roberto Zular, professor de teoria literária e literatura comparada; e dois romances, Ela não fuma mais maconha, de Maurício Salles Vasconcelos, professor da área de estudos comparados em língua portuguesa, e Sara sob céu escuro, de minha autoria. Dos dois primeiros, selecionei estes poemas:
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Álvaro Faleiros

“redondo” é um termo nasal
como a narina e o cu
em seu sublime ânus

redonda a roda
que já não anda assim tanto nos trilhos
para a tristeza do inventor

redondos os sonhos sem arestas
as frestas felizes
as frestas da fechadura

redondo o comprimido que encapsula
a amargura
em sua curva de anzol

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Roberto Zular

ESTILHAÇO lapsos
de tempos estalo
disparos meus miolos torço
com sangue escrevo nesta
vida morrer salto é
fácil numa poça flutuo
roço ruas furo
dúvidas atiro estrelas
nos teus olhos rasgo
falas quebro
ossos ando em promessas
ovos prometo mentiras
minto a verdade
você tem a forma
da ficção esquartejo
frases finjo
fins
eu

sujeito depois do verbo

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Para concluir, gostaria de disponibilizar a todos o site da editora Anablume, em que a coleção Feito nas Letras pode ser encontrada: www.annablume.com.br

 

 

 

 

 

 

 

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olhar; Análise do texto visual – a construção da imagem; Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicações; Análise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances: Amsterdã SM; Irmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto foge; Palavra quase muro; Concretos e delirantes; Os tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




Comentários (3 comentários)

  1. luís venegas, que legal Vicente, mais um meio em que podemos dialogar, inclusive divergir, ora bolas, senão como podemos amadurecer? forte abraço mermão. luiz venegas cabeça (encontrei homônimos e resolvi inserir o meu apelido desde a adolescência, por enquanto continua “original”)
    21 março, 2012 as 10:57
  2. Brunno Rodrigues, Acabo de perceber que estou perdendo uma belíssima oportunidade de se misturar entre as letras… na Letras.
    21 março, 2012 as 20:07
  3. Genésio Fernandes, Pietroforte, boa idéia. Veja o blog TRANÇA. As poesias de Flávia Suassuna. Acho que vai gostar. Abraço. Genésio Fernandes
    27 março, 2012 as 23:02

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