Estranhamente óbvio



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Esta entrevista é também um diálogo recuperado para os leitores de DC Ilustrado. O teor do diálogo transcende qualquer mínimo apego que tenhamos por uma cronologia banal de fatos. Vale então o que escrevi sobre Moacir Amâncio, assim como nosso diálogo em si.

Reabrindo a gaveta dos acidentes, em quantos versos a poética persistirá? A prosa experimental por onde se iniciou Moacir Amâncio na escrita já indicava os recursos preciosos de que se utilizaria ao passar para o poema não menos experimental – mantendo aqui a aceitação comum do termo que tem por hábito desconsiderar que ao fim e ao cabo toda escrita é experimental. Exceto aquela que é mero exercício de diluição, que não conta para nada. E experimental com aquela habilidade misteriosa de um e. e. cummings. Não o cummings falhado, afeito a um único recorte, da maneira como nos foi apresentado no Brasil, mas sim o cummings da “intensa fragilidade” de quem se decidia a uma “acentuada subversão sintática […] onde o insólito de certas imagens aparenta o surrealismo” – como tão bem percebeu um de seus tradutores portugueses, Jorge Fazenda Lourenço.

Pois é dessa mesma arriscada complexidade que está feita a poesia do brasileiro Moacir Amâncio (São Paulo, 1949), e digo isto sem em momento algum considerar demasiada ou negativa a afinidade existente entre as duas poéticas. O diálogo existe como um sinal de vitalidade. E ainda mais severa com seus riscos, no caso de Amâncio, tanto ao enveredar-se pelos afluentes tortuosos do abstracionismo, quanto em sua incursão por outros idiomas, buscando, de todas as maneiras, uma conexão perdida entre poesia e forma. Uma busca que também na tradição brasileira encontra boas raízes para o diálogo, pensando em Drummond e João Cabral, como sugere Antonio Medina Rodrigues, nas orelhas de Figuras na Sala (Iluminuras, 1996): “Do primeiro, Amâncio herdou a nua determinação do olhar. Do segundo, o impulso fenomênico e a qualificação das coisas.” As diferenças são traçadas pela mínima exigência que se tem de uma escrita: que crie sua própria maneira de caminhar.

E este caminhar já se havia percebido no livro de estreia, Do objeto útil (Iluminuras, 1992), uma espécie de poética do olhar que a tudo devora, inclusive a si mesmo. O olhar que invade a imagem, mas também que mergulha em si, questionando o sentido daquilo que vê. E ao habitar essa obsessão por dar sentido a tudo o que vê, por vezes manifesta na desconfiança que tem dos sentidos aparentes, é que esta poética foi sendo tecida como algo adoravelmente estranho à tradição lírica brasileira, dela fazendo parte, de sua extração mais substanciosa, justamente por essa estranheza. A imagem fecundada pelo conflito entre o que olha e aquilo que se vê, uma imagem que então alcança uma dimensão outra do real, naturalmente exige do poeta “uma estranheza perfeita”. Daí que Eustáquio Gomes tenha observado com lucidez, nas orelhas de Contar a Romã (Globo, 2001), que Amâncio “retorce a linguagem e a reconstrói, recorrendo à criação de mundos paralelos como se fossem dimensões fantásticas da realidade objetiva”.

Além dos 3 livros aqui mencionados, Moacir Amâncio publicou 2 outros, O Olho do Canário (Musa, 1997) e Colores siguientes (Musa, 1999). São dois livros ainda mais insólitos que os demais. O primeiro, que traz um daqueles entranháveis poemas que dão orgulho a qualquer tradição – descoberta ou restaurada -, intitulado “Classicamente talvez”, é um dos mais imersos na cultura hebraica. Já o segundo, escrito em espanhol, abre também um diálogo que não é propriamente idiomático, mas antes de matizes culturais. Como todos os pequenos golpes são sempre a preparação para o grande crime, estes 5 livros antecipam Óbvio (Travessa dos Editores, 2004), livro diabólico a começar pelo título. Trata-se de um tríptico, onde cada tábua serve de passagem para a seguinte, sim, mas sem as noções lineares de continuidade. Até porque nada é linear na poética de Amâncio. Uma das tábuas – capítulos, ou melhor, livros, segundo o próprio poeta -, a única escrita em inglês, intitulada “Arghvan”, provoca na leitura a suspeição de revelação do enigma: logo na abertura adverte: “no theories, only action, / please, / get it right: / you cannot see / the flower / – up there – / named / twilight.” E por todo o capítulo o que se mostra é ação (“bites of the heat”) e a busca (hungry) da linguagem pela flor do crepúsculo que ela traz dentro de si.

Não resisto a citar passagem deste capítulo, que talvez elucide a tensa relação entre poeta e época: “someone can talk about the / multiplication of the eyes in this case, / and about the blind people’s reading system, / but i would say you are wrong: / this is not a multiplying eye / phenomenon // this is not a trick to avoid / the pure effect of darkness, / i’d rather talk about bats / and their fair relationship / with this presence / of total possibility”. Temos aí de maneira mais intensa colocada a percepção da coisa e seu efeito. Decerto que Amâncio toca as coisas, como recorda Eustáquio, com aquela sensação “da descoberta edênica do primeiro homem”, porém aqui me chama a atenção, em especial, essa noção do efeito multiplicado, a aplicação de uma farsa, por mais sincera, o dilema de um poeta ante a criação, assim como a relação entre realidade e cenário.

A leitura de Óbvio acrescenta clareza à estranheza da poética de seu autor. Minha menção inicial a cummings, que sei desagrada a ele próprio, como veremos na entrevista, se deu, sobretudo, pensando que as subversões gramaticais, observadas tanto em um quanto no outro, em momento algum desprezam o contexto discursivo. Podem, por excesso de risco – em um e outro -, dar a entender que cultuam aquele mero efeito especial do olho multiplicado. É uma referência apenas. No Brasil acabamos por confundir referências com submissão, daí que tenhamos certo medo pânico do termo influência. Trata-se de diálogo, tão-somente, e criação alguma sobrevive sem ele. Diálogo que percebemos bastante múltiplo e intenso não somente na poética de Moacir Amâncio, mas em suas observações cortantes no decorrer da conversa que leremos a seguir.

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Floriano Martins:
Ao escrever sobre Do objeto útil (1992), observa Fernando Paixão: “O atrito do nosso olhar sobre os poemas, surpreendido com frequência por elipses, cortes sintáticos e abstrações abruptas, coloca-nos diante de um renovado desafio para o olho: fazer a história da leitura. Porque o outro olho, ou a metade dele, que cabe ao poeta, aqui está revelada.” Considerando esta metade revelada, o que busca dizer a poesia através de Moacir Amâncio? E como se dá o teu convívio com essa busca?

Moacir Amâncio: Bem, é uma pergunta, ou seja, soa como a pergunta que vem sendo feita pela própria poesia desde os primeiros registros poéticos. E é assim que eu vejo o funcionamento do escritor, isto é, daquele que se propõe a trabalhar a fala através do texto. Veja, Floriano, não estou tentando o lugar comum de reeditar a ideia do poeta como um médium, de jeito nenhum. Tanto que, imagino, fui claro ao dizer “daquele que se propõe trabalhar a fala”. Aí está a questão. Como lidar com as palavras que, a gente sabe muito bem, antes de tudo lidam com a gente. Se o cara deixa a coisa correr está simplesmente se eximindo de uma responsabilidade porque a linguagem, o idioma não é nem um pouco limpo. Vem carregado de toda sujeira que se imagina e normalmente essa sujeira é que vai trabalhar o cara. Não estou falando de nada estratosférico. É a língua carregada de ideologia e que vai falando pela ideologia, vai funcionando exatamente como antilinguagem, pois ela, em vez de buscar o contato, isola ao mantê-lo na corrente da reificação. Tem gente que confunde inspiração com isso, com essa desistência por antecipação. Quanto à inspiração, claro, ela existe e funciona, desde que devidamente percebida como tal, ou seja, como elemento de quebra dessa corrente que apodrece a linguagem. Agora, veja, essa quebra de corrente pode muito bem, a inspiração, digo, pode muito bem vir dessa banda podre também, do kitsch, por exemplo, não pode? Não estou fazendo apologia nem defesa da razão irrestrita, além de ser um equívoco é o próprio terror. A coisa é que nada é absoluto…

FM: Sim, os equívocos de toda parte, tanto no que diz respeito à escritura automática quanto à escrita a frio de um João Cabral, por exemplo. Mas acontece que os novos meninos vêm sendo deformados por esses equívocos que acabaram se tornando precariamente escolásticos e respaldados pela mídia. Essa gente que confunde coisas é gente escolarizada na confusão, quase que induzida a ela, onde escola e imprensa desempenham um papel fundamental. Sempre se pode dizer que o grande poeta é um rompedor, que resiste a tudo, que desfaz e refaz qualquer vício ou tradição etc., mas este argumento não tem cabido diante da perversão do tema levado a termo pelas instâncias referidas. Tens uma experiência dentro de ambas, e naturalmente tuas observações serão valiosas aqui:

MA: Sua pergunta tem vários pontos. O equívoco quanto ao João Cabral parece ter começado por ele mesmo, com a mania do cerebralismo. Ora, um título como o do Cão sem plumas parece saído de um filme do Buñuel ou de um livro do Murilo Mendes, ou de Lorca. Agora, é claro que, no caso de um grande poeta como ele, precisamos tomar cuidado. Porque pode-se perceber facilmente como a escrita automática precisa ser desautomatizada para que se atinja o objetivo. E a inteligência, o uso da razão, pode ser o melhor caminho para se negar a própria razão. Eu me lembrei do surrealismo. O Breton parecia um fanático político-religioso e essas atitudes ditatoriais me provocam repulsa. Como sinto repulsa pela desinteria regral do Pound, sem falar em outras coisas muito mais graves, e que têm a ver. Bem, mas o que eu queria dizer é que o surrealismo, depois confundido como brinquedo intelectual, impostura, absorvido pela indústria, a publicidade, pode ser revirado. O mesmo com outras idéias. Desconfio de movimentos e projetos grupais. Ah, sim, dizer que o grande poeta é um rompedor caiu na mesma tigela comum. O rompimento se confunde apenas com um rótulo novo para o mesmo engodo, não? Você falou em imprensa. A imprensa, assim como toda a mídia, divulga e emperra, tem mão dupla. A escola, que também é mídia, faz algo assim também, caso se limite a reproduzir modelos, a clicheria toda. Mas e se o clichê, usado como tal, se transformar numa ferramenta de desmanche? Ler nas entrelinhas, no espaço pulsante entre as linhas, no espaço, que tal?

FM: Em um belo estudo de Jorge Fazenda Lourenço sobre cummings, que precede a edição de xix poemas (Assírio & Alvim, Lisboa, 1991), ele indaga – ao referir-se à subversão gramatical de cummings: “cabe à poesia propor uma nova ‘sintaxe das coisas’ ou é ela mesma a sintaxe de um mundo às avessas?” Pois bem, pensando naquela “rigorosa pertinência do objeto” de que fala Antonio Medina Rodrigues a respeito de tua poesia, transfiro para ti esta indagação do ensaísta português.

MA: Pois é, justo o cummings tem uma idéia tão clara, mas confunde procedimentos, pequenas operações gráficas com a busca de uma nova sintaxe das coisas. E fica tatibitate. O Oswald de Andrade é outro que patina no procedimento. Há méritos históricos e tal, mas são insuficientes. Veja como esse procedimento, interessante no início, foi bem digerido (essa coisa de antropofagismo é outra coisa que passa por originalidade e ficam em cima batendo na tecla chata) e faz com que marmanjos permaneçam nos limites da primeira idade escolar. O Oswald parodiou, certo, mas paródia e piada só funcionam uma vez, igual fósforo – e ele teve o mérito de produzir duas obras-primas, Miramar e Serafim, sem repeti-los. O problema é que as coisas mudam de lugar. Basta ler uma página de Lautréamont.

FM: Este patinar no procedimento se pode verificar em muitos autores ligados ao período das vanguardas. É curioso que se cultue – à boca pequena, sempre – o chileno Vicente Huidobro por seus livros mais identificados com a vanguarda, quando ele foi adiante em livros posteriores, retomando o diálogo com a tradição a partir de suas rupturas propostas – o que não aconteceu, por exemplo, com o argentino Oliverio Girondo. Claro que o fósforo só funciona uma vez e nenhum artista quer ver o seu palito confundido com o de outro. Mas há aquele aspecto de que certos criadores estabelecem de tal maneira um beco sem saída que quem se deixa influenciar por eles acaba dando um ou dois passos atrás. Conversemos um pouco mais sobre isto, mas também te peço que me digas, não se restringindo unicamente à poesia, quem não confundiu procedimentos no Brasil e avançou em algo que consideres relevante?

MA: Pois é, falei no surrealismo só para lembrar o que fica de lado, embaixo do tapete de plástico, por suposta sujeira, digo isso porque também precisamos lembrar que não se trata de dizer isso acabou, que lixo, etc., como se tudo realmente fosse descartável. Os modernistas atacavam o parnasianismo, mas ignorar o Bilac é só uma bobagem. Mas é claro, o procedimento é o mais acessível, é o facilitário. Se um artista inventa ou parece inventar um procedimento, este passa a ser um risco, tanto para quem inventou quanto para quem parte dele. Mas depende de quem parte. Sterne, por exemplo. O que é mais incrível no romance dele: a gente vai lendo-ouvindo sobre a vida de alguém que vai nascer… genial, não? Lá vem o Machado e, com o Brás Cubas, fala sobre a vida de um morto. Mas não é genial? Entendi, você usou essa palavra como um “jeito de dizer”. Porque todos sabemos, não há “avanço”, “progresso” nisso – é a linguagem bichada da economia, sei que você pensa da mesma forma, como eu. Porque não há avanço, acho mais que há torção e recomeço. Vou lembrar aqui um romancista, olha, muito machadiano chamado Campos de Carvalho. O Júlio Bressane. O Ferreira Gullar com A Luta Corporal – ele teve a sensibilidade para deixar esse livro suspenso no ar, partindo para outras aventuras, válidas mesmo quando não deram certo, como aqueles cordéis. Mira Schendel, nas artes plásticas. O Dalton Trevisan. O Nuno Ramos, idem. A Jussara Salazar.

FM: Em dois livros se verifica a recorrência a outros idiomas, seja a totalidade de Colores siguientes (1999) ou o capítulo “Arghvan” de Óbvio (2004), escritos respectivamente em espanhol e inglês. Há uma razão declarada para estas opções idiomáticas ou se trata tão-somente de um exercício de expansão da escrita?

MA: Veja, a razão, como você sabe, declara-se nos próprios textos, não é? Escrevi Colores Siguientes em castelhano, sim, porque o que está dito nesse livro não me parece ser possível dizer em português. A não ser que eu traduza, o que até tentei, para desistir no segundo ou terceiro verso, era como pensar com a minha cabeça e ao mesmo tempo a cabeça de outro: só reescrevendo. Abandonei a idéia. Tenho feito algumas traduções de autores variados e sei o trabalho que dá você pensar com a cabeça de outra pessoa, seja do século 12, seja do século 21, tentando encontrar a expressão mais adequada em um idioma e uma época diferente e olha, talvez a questão da época seja mais importante do que a do próprio idioma. Como você faz para traduzir poema escrito numa época em que o português nem existia? Claro, se você elege o poema isso quer dizer que ele é seu contemporâneo, mas onde está a contemporaneidade idiomática? Com o inglês começou da seguinte forma: eu estava em Seul, na Coréia do Sul e, no quarto do hotel, comecei a tomar algumas notas em inglês. Comecei a experimentar e fui continuando. Em Los Angeles. Cada idioma sempre diz alguma coisa que só ele diz. E ninguém é o mesmo em “si”, “yes” ou “sim”. Já os barrocos… Agora, todo texto de certo modo é uma tradução, concorda? Em qualquer língua. Isso de língua-mãe é balela, toda língua é traiçoeira, mentirosa. Não há certeza nem expressão plena, repito, há um processo.

FM: Um grande ardil, sem dúvida. Agora mesmo estou às voltas com um romance que se passa na fronteira Brasil/Uruguai no final do século XIX. Há não só o espanhol da época, mas o espanhol de fronteira, esse intragável – porém real – portuñol. Não estava sugerindo que traduzisses os mencionados textos para o português – eu fiz isto com dois largos poemas meus escritos em espanhol e o resultado ainda hoje pouco me agrada -, mas antes indagando de onde tinha vindo o fiat lux da escrita em outro idioma. No meu caso, eu buscava essencialmente romper com certo vício de linguagem que vinha observando em minha poética. Mas também há quem o faça por exibicionismo ou mesmo por tática, considerando que 2 ou 3 idiomas são mais lidos do que todos os demais existentes. Além disto, no texto não assinado das orelhas de Colores Siguientes se fala nas relações entre as culturas portuguesa e espanhola que evidentemente não vão ser resolvidas a partir do momento em que poetas brasileiros passem a escrever em espanhol. Este assunto é bastante complexo e vale lembrar que a literatura brasileira é muito mais parte do imaginário das culturas hispano-americanas do que o contrário, ou seja, considerando as inúmeras edições de autores brasileiros na América Hispânica, contra uma ausência quase absoluta na outra vertente, se pode dizer que o continente todo já descobriu o Brasil, ao passo que o Brasil não conhece quase nada do continente. E reluta em não conhecer, com a mesma empáfia de sempre.

MA: Bom, em primeiro lugar o Brasil também não se conhece. E algo que justamente impede esse auto-conhecimento é o poder homogeneizante num território muito variado. Falamos a mesma língua de fio a pavio, certo, mas isso pode muito bem ser uma cortina de fumaça. De resto usada para isso mesmo, como argumento em favor da unidade. Por favor, não estou falando em separatismo, que é apenas uma bobagem mal-intencionada – eu sou pela união de todos os povos… Apenas acho, se me permite, que as coisas vêm das pequenas e grandes diferenças. Aquele programa A Hora do Brasil expressa bem isso, o sotaque televisivo – a fala caipira só entra nos típicos, um repórter que falaria com sotaque caipira, como o ministro José Dirceu, ou com sotaque gaúcho, essas diferenças são importantes, são as músicas do idioma, qual o problema? Estou pensando num cara genial que foi o Frei Caneca, executado pelo projeto homogeneizante que se forjava, transferindo o poder metropolitano de Lisboa para o Rio – e o resto que se danasse. Mas aí está um dos motivos pelos quais acho o portunhol uma maravilha. O Wilson Bueno, em Mar Paraguayo, fez uma bela intervenção sobre as imposturas e ficções que se tornam a realidade. Veja, quando um escritor brasileiro como o Wilson rompe com a língua portuguesa causa uma ruptura tanto na língua portuguesa quanto no castelhano e parte para a paródia rasgada, ele revela a condição de ilha artificial que é o país. Se nós não temos a percepção do outro dentro de casa, como vamos perceber a multidão de outros fora dela? Você vê, estou lembrando autores, pessoas, não movimentos, não é engraçado? Bem, escrever em outro idioma pode muito bem passar por exibicionismo, tentativa bobinha de conquistar supostos leitores ou mercados, uau. Exibicionismo pra quem? Bem, eu acho que complico, crio um problema editorial. Ninguém escreve em inglês ou árabe pensando em conquistar o que quer que seja, ainda mais no Brasil. Em primeiro lugar, cria um problema editorial. Quem topa publicar? Incrível, já ouvi de revistas literárias: puxa, mas em inglês? Por que em inglês? Porque não é alemão nem húngaro, ora. Aí está a vantagem da poesia: a liberdade total. Não há compromisso com o mercado nem com ninguém, nem com os idiomas. Existe uma experiência e, no caso, um encolhimento.

FM: Em uma entrevista com Drummond de Andrade, ele opina “que a história da literatura não é a história das vanguardas. As vanguardas são, por assim dizer, intervalos numa evolução que se processa de uma maneira muito diferente.” Estás de acordo? Indago isto porque no Brasil até hoje as novas gerações se agarram a um recorte do passado como se fosse um moto perpétuo e, embora apenas repitam uma fórmula gasta, o fazem com certa empáfia e a crença infantil em uma vanguarda eterna.

MA: Claro, não há como discordar do Drummond. As vanguardas são um tipo de fenômeno esperto, mistura vanguardista de “cultura”, de “arte” com marketing. Mistura inteligente, sem dúvida, mas que tem seu momento na história. A repetição é burra, fica numa técnica de marketing superada. É isso aí, a fórmula gasta, o procedimento que ficam repetindo. O mais divertido, como você sugere: muitas vezes confundem vanguardas com juvenilidades, então fica grotesco, trintões, quarentões, cinquentões ou mais, fingindo uma jovialidade adolescente com cabelo branco tingido de preto. Depois, o que conta na verdade é o que foi feito. Entende-se, as pessoas querem firmeza, nada mais seguro do que a irresponsabilidade pseudo-iconoclasta. Os nomes, as referências estão todas lá, fulano diz isso, fez isso, querem matar você caso não concorde, o comportamento fascistóide da exclusão é de lei, etc. Segundo fulano… e buscam a aprovação das figuras, essas coisas. Não percebem que na verdade isso é um simples desrespeito pelo que idolatram, tantas vezes por conveniência. Moeda falsa, essas coisas.

FM: Sim, moeda falsa e corrente, o que acaba por torná-la real. O ponto é como se livrar dessa recorrência infantil, que nos torna hoje primatas diante de discussões estéticas levadas a termo por jovens poetas em países vizinhos. Não à toa, há uma discrepância de idade, nos encontros internacionais de poetas na América Latina, onde trintões hispano-americanos estão presentes ao lado de sexagenários brasileiros. Estaria acaso mofado o pão da poesia dessa jovialidade brasileira ou a questão não é tão simples quanto se mostra?

MA: Não vejo assim. O problema não está, também, no custo das passagens? Idade física aí não conta: cabem Rimbaud e Yves Bonnefoy, assim como Camões. Pensando bem, o Brasil é uma ilha de fato, não convencional, cercada de água e florestas por dentro e por fora.

FM: Alguma palavra final, tua, sobre Óbvio?

MA: Como assim?

[risos]

 

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Confira alguns poemas de Óbvio aqui.

 

 

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Floriano Martins (Ceará, 1957) é poeta, editor, ensaísta e tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura (www.revista.agulha.nom.br). Entrevista publicada no Diário de Cuiabá, suplemento DC Ilustrado. E-mail: arcflorianomartins@gmail.com.




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