Espaço, tempo e solidão


Milton Santos, brasileiro, graduado em Direito e doutorado em Geografia pela Universidade de Strasburgo, na França, foi considerado um humanista do próximo milênio, pela referência intelectual de sua obra. Autor de mais de 40 livros lançados em sete países, como Por uma outra Globalização, ninguém mais do que ele soube falar do espaço invisível das cidades, da ordem e dos caos das cidades brasileiras. E da esperança de um mundo melhor para a humanidade. Nesta entrevista inédita, realizada em dezembro de 1999, o geógrafo-filósofo propõe “uma civilização da comunhão, da compaixão, da solidariedade, da emotividade não escondida”.

O geógrafo Milton Santos – Reprodução

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A função do urbanista é organizar o espaço?

O urbanista é formado para propor arranjos. Geralmente, essa organização de espaços vira um problema porque a parcela das cidades que os urbanistas podem organizar é limitada em relação à cidade toda. Como a cidade vive como um conjunto inseparável, aquilo que não é da alçada do urbanista interfere naquilo que ele produz. Isso é um limite do trabalho do urbanista. Outro limite vem do fato que a cidade é teatro de vários atores e os atores mais poderosos buscam ditar a sua lei, que é, na maior parte, a lei do dinheiro. O dramático, no caso brasileiro, é que a produção pública da cidade é cada vez menos possível. Em São Paulo, por exemplo, você tem a impressão que o poder público desertou e deixou o mercado sozinho, o que é um drama. A ideia de cidade é cada vez menos presente, e aí o trabalho do urbanista praticamente se limita à uma produção arquitetônica. Ele realiza arquitetonicamente traçados, formas e menos ele é capaz da produção da cidade.

A forma de separar e de se agregar socialmente as pessoas é uma maneira de erguer muralhas.

A demanda do urbanista surge quase sempre do poder…

E aí a gente tem que distinguir o poder público, que poderá ter uma demanda menos ligada a preocupações unicamente de lucro.

A palavra urbanista vem do domínio militar. O urbanista era aquele que trabalhava com as muralhas… Ainda temos muralhas?

Talvez elas sejam invisíveis. Eu diria que a forma de separar e de se agregar socialmente as pessoas é uma maneira de erguer muralhas.

O condomínio fechado é um exemplo visível de muralha …

Eu creio que tudo na cidade de hoje se agrega na medida que morar tem um custo, circular tem um custo, estar presente tem um custo, divertir tem um custo… Há uma produção sistemática, não declarada dessas muralhas, que tem uma eficácia maior porque são invisíveis.

No passado, os urbanistas criaram pontos de encontros, como as praças italianas, o fórum romano, a ágora grega. Os urbanistas modernos planejam a cidade sem os espaços de comunicação. É possível recuperar uma cidade para os seus pedestres, como Brasília e Los Angeles, que foram concebidas apenas para os motoristas?

Creio que sim. Uma cidade como Barcelona, por exemplo, foi recuperada, já havia dentro da alma do povo essa vontade de fazer isso. O cidadão usa a rua, goza a rua, admira a rua. Cidades como Paris reservam espaços para manifestações públicas. Colocar gente junta, hoje no mundo da comunicação, é tão simples, tão fácil. É questão apenas de querer, de ter essa vontade política.

O mais importante é o encontro, porque os caminhos mudam-se, misturam-se a outros caminhos que inventamos somente para celebrarmos o encontro…

O encontro é sede da transação intelectual e emocional, que a cidade pode permitir ou não, a partir de como ela é traçada, concebida e feita.

Corremos o risco do traçado ser tragado, do caos ser mais frequente que a harmonia?

Creio que no caso das cidades brasileiras não se deve dizer que corremos o risco porque o que a gente chama de caos já esta aí. Como produto, exatamente, essa falta de vontade de fazer a cidade um bem realmente público. Esse comando da cidade por uma lógica puramente especulativa é plantador de desordem. A desordem transcende.

A maneira como a cidade se ordena acaba produzindo o chamado caos. A ordem é possível numa cidade desigual

O caminho é ordenar a desordem ou desordenar a ordem?

A ideia de ordem, é, de alguma forma, uma noção neutra. Não é uma ordem em si. A ordem responde a um objetivo, quando, aparentemente, ela se dá através do chamado caos. O caos também é uma ordem. Aí a gente cai outra vez na questão do humanismo.

Essa desordem surge com a migração do campo para a cidade? A distribuição de renda é outro problema que precisa de solução. Para nós termos uma cidade ideal teríamos que ter um Estado ideal fundado na democracia plena?

Creio que sim. Vou dar um exemplo bobo. Uma cidade como Belo Horizonte tem centros de comércio e serviços, que oferecem empregos e atraem as pessoas que necessitam de consumir bens e serviços. O fato de que nós aceitamos a expansão da pobreza torna-se difícil que esses centros difundam-se por todo o território urbano. Você acumula a demanda da cidade. Ali onde essa demanda está acumulada é mais fácil oferecer bens e serviços de maneira mais numerosa e, talvez, mais baratos. Isto é, os mesmos bens e serviços oferecidos na periferia são mais caros, então, já isso é um fator de desordem. A maneira como a cidade se ordena acaba produzindo o chamado caos. A ordem é possível numa cidade desigual.

Quando os homens todos forem informados, a cidade será fundada na democracia urbana.

É possível imaginar nos tempos atuais uma sociedade igualitária?

A primeira dificuldade é a gente imaginar. Não creio que seja tão difícil assim. A gente não pode correr o risco de evitar falar uma coisa. Ter o medo de que ela nos seja factível. Era impossível pensar que 20% da população motorizada de São Paulo não usasse o automóvel. Hoje elas já estão aceitando. É bem possível que daqui a pouco as preocupações de ordem egoística cedam espaço para outro tipo de preocupação. Nada impossível.

Hoje é necessário repensar a cidade como um espaço do indivíduo que se coletiviza?

O ideal da filosofia política, que é a base da democracia, é respeitar o ser humano como um indivíduo.

O outro é que o nos reconhece, que nos liga ao mundo…

E que garante que continue sendo aquele indivíduo forte e respeitado. Por outro lado, está a sociedade. É um jogo de duas pontas. A sociedade se fortalece porque me aceita como um indivíduo forte. Se eu puder fazer isso na cidade, e puder inspirar isso na reconstrução da cidade, ela será uma outra cidade, uma cidade mais voltada para o homem.

A cidade de hoje e do futuro deve ser pensada como uma sociedade da informática, onde a técnica e os elementos não-físicos incluem o lado perceptivo, sentimental e espiritual do homem.

A gente não pode colocar a informação no lugar da informática. A informática é o mundo dos objetos. A informação é mais ampla, e talvez seja isso que vá permitir a produção de um novo plano. Quando os homens todos forem informados, capazes de interpretarem essa informação, a cidade será fundada na democracia urbana.

Eu sonho com a civilização da comunhão, da compaixão, da solidariedade, da emotividade não escondida.

Como será a megalópolis do século 21?

Não poderia prever. Paris, Londres, São Paulo, Tóquio, não são diferentes porque têm esse conteúdo cultural a que tanto você se refere e que é tão precioso. O que é possível ver é o que a gente está vendo. A metrópole, seja européia, asiática ou americana, é um lugar da grande mistura. Todos os povos do mundo se encontrando ali, todas as raças se encontrando ali e isso não leva obrigatoriamente a ter medo do outro. O medo não aparece como complexo de culpa.

O outro seria o inferno, como dizia Sartre?

Nas condições atuais, o outro é o inferno. Com a globalização isso se potencializa mais ainda, porque nós somos empurrados para uma solidão existencial. Uma solidão assim empobrece porque é uma recusa à mistura. Aliás, é uma coisa que está se ampliando. Não é essa civilização que a gente quer.

Qual a civilização que o Sr. vislumbra?

Eu sonho com a civilização da comunhão, da compaixão, da solidariedade, da emotividade não escondida.

Voltemos a falar de espaços. A casa é o abrigo “seguro” de nossas lembranças e temores. A casa tem cantos que não se avistam com olhos desavisados, a não ser quando a manhã entra pela janela…

Para responder você eu também teria que ser um poeta. Primeiro nós criamos as nossas casas, depois as nossas casas nos recriam. A casa não é só recurso. A rua como meio de circulação é recurso. O lugar de trabalho é recurso. A casa é outra coisa. É um espaço nobre, de descanso, de recreação, de reformulação.

Podemos até mesmo prescindir do espaço, mas não do tempo.

O tempo historicamente só é dado porque tem o espaço. A categoria central é o espaço, porque contém o tempo, define o tempo.

É a partir do espaço que projetamos o tempo?

É um tempo geral, que cada um de nós, fora de lugares, se toma naquilo que se pode, num tempo dado. A nossa possibilidade se realiza mediante oportunidades. Essa oportunidade é dada pelo espaço. O espaço é que me permite tomar o tempo de uma forma ou de outra. O tempo é um conjunto de possibilidades latentes. Estão aí. A história de cada homem, de grupos de homens, de países, de raças, tomam essas latências e fazem delas existências.

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[Entrevista publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais em dezembro de 1999]

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Pedro Maciel é autor dos romances A noite de um iluminado, (ed. Iluminuras 2016), Previsões de um cego, (ed. LeYa 2011), Retornar com os pássaros, (ed. LeYa 2010), Como deixei de ser Deus, (ed. Topbooks 2009) e A hora dos Náufragos, (ed. Bertrand Brasil 2006).
E-mail: pedro_maciel@uol.com.br




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