Escapulário


 

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ANTENOR

 

Tuas alpercatas ainda estão

sob o tamborete da cozinha,

tuas alpercatas de couro cru

encardido do lodo de tua alma.

 

A cozinha é que já

não é a mesma.

 

Ah, Antenor,

precisas ver como está

diferente tua casa!

 

Do fogão a lenha,

que aconchegou teu esqueleto

de pedra

não deixaram pedra sobre pedra.

 

A pia ainda está lá,

e a mesma louça velha.

Mas a torneira pinga

a noite inteira.

 

Cada gota, um batalhão

de assombrações.

 

De lá é que o tempo

tem escorrido depressa.

E dá pena tanta água e

vida desperdiçadas.

 

Demoliram a dispensa

e com ela deram fim

no teu armário misterioso,

no espelhinho de parede,

na gaiola de teu juriti.

 

Antenor,

se tu estivesses vivo

para ver o que fizeram

de tua casa, de teus filhos,

de tua primeira solidão,

do teu retratinho…

 

Ah, Antenor,

se estivesses vivo,

quererias morrer

num dia qualquer de dezembro

para deglutir o teu desgosto

da forma que tu sempre foste:

frio e só.

 

 

 

POSFÁCIO DE NEUSA MARIA

 

Não se sabe por que raios

Neusa Maria subiu

à torre de celulares

como uma gata no cio

 

e de lá se atirou

esparramando as entranhas,

se foi por alguma dor

daquelas que a nós desanda

 

ou se foi por desalento

diante da estranheza

de o tempo passar tão lento

enquanto ela estava presa

 

dentro de si sem saída:

ela, uma casa de espelhos,

refletindo a decaída

mulher fera e seus cabelos.

 

Não se sabe se as pedradas

dos moleques pelas ruas

fê-la pensar que era fada

e podia voar nua.

 

Não se sabe se a loucura

companheira de infância

despedaçou-lhe a candura

ou se foi desesperança.

 

Se delírio, não se sabe;

Não se sabe se euforia;

Não se sabe quais palavras

proferiu na despedida.

 

Não se sabe se sabia

ela o que estava a fazer,

a doida Neusa Maria,

filha do velho Fefê.

 

Não se sabe se banhou-se,

se maquiagem usava,

se tinha consigo bolsa,

outra qualquer vaidade.

 

Não se sabe se houve planos

ou se tomou precauções:

carta ou bilhete informando

as alegadas razões.

 

Não se sabe se levava

consigo algum ramalhete

lenço cobrindo-lhe espádua

ou qualquer desses enfeites

 

 

 

TEORIA GERAL DA GUERRA

 

Sangue e terra:

na olaria da morte,

o barro inconcreto do nada.

 

Diante do abismo,

o fim diagramado dos mapas

sobre a mesa de generais aquartelados:

cada centímetro noturno

arrastado em mil fios,

entesados e enrodilhados,

dentro da trincheira imersa

no fosso da alma do soldado.

 

Sangue e terra:

barro nos pares de coturno,

morte dificultando a marcha

com todos os medos sufocados

na garganta do inimigo degolado.

 

 

 

O POEMA DE QUE NÃO FALEI

(Para Ivana Karoline)

 

tenho por ti um amor de ribanceira

um amor de atirar-se ladeira abaixo

por isso meu pouco tato para velas

para vinhos e sedas de trincheira

 

meu amor por ti é tão viciado

na arte de devorar as flores

que o primeiro buquê

chegou à tua mão repleto de talos

 

meu amor por ti é cinofóbico

porque os cães que ladram em meu peito

dilaceram meus rins em mil dentadas

depois mijo meu sangue em tuas cochas

e embriago de cadências os teus peitos

 

já beira o absurdo esse amor de pedra e lavra

esse galopar de folhas ao redemoinho atiradas

essa constante presença e a finitude

de minha febre ostentada em candelabros

 

apenas raramente ele é um canto recolhido

um toque de anjos mal-intencionados

um sedimento sob a água de luzes

como um frade em sua alcova escondido

 

mas logo pulsa como estava antes

como frutas suicidas sobre árvores

como a massa encefálica de um Cérbero

como arbusto sufocado numa rodilha de serpente

 

 

 

GÊNESE DO DIA

 

Hoje, dia de feras,

Procusto me arrasta à sua senda,

estrada de aparar arestas.

Hoje, dia de feras,

sou devorado pelo

céu

– Urano e seus velhos vícios –

em suas artes de imitar o pai

em suas artes de imitar o tempo.

Hoje é dia de feras.

E eu, vítima de Minos.

E o fio?

Em algum ponto se perdeu entre feras

Em algum ponto se desfez

E como não ser eu agora

a carne de alimentar os deuses

dragões famintos, febres?

Eu e minhas pernas podres,

eu e o meu pouco fôlego,

eu e minhas doenças,

únicas verdadeiras propriedades.

 

Eu, fera de mim mesmo,

eu, auto-rei, auto-deus,

autófago, autômato, arauto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

.

Vitor Nascimento Sá (Maracás-BA,1982) é gestor escolar, revisor e professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, licenciado em Letras pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) em Jequié e mestrando em Literatura e Diversidade Cultural pela UEFS. É diretor e cofundador da Associação Grupo Concriz: Poetas, Recitadores e Afins, entidade sem fins lucrativos que promove performances poéticas em eventos como Pétalas (Maracás, 2007), Uma Prosa Sobre Versos (Maracás, desde 2008), Travessia das Palavras (Jequié, 2009 e 2010) e a 9ª Bienal do Livro da Bahia (Salvador, abril de 2009), Palavra de Poeta (Planaltino, 2011 e 2012) e 10ª Bienal do Livro da Bahia (Salvador, novembro de 2011). Tem textos publicados nas revistas Verbo21 (BA), Blecaute (PB), Correio das Artes (PB), Cronópios (SP) e Laboratório de Poéticas (SP). Participa da antologia Sangue Novo: 21 poetas baianos do século XXI (2011). Os poemas acima fazem parte do seu primeiro livro, intitulado Escapulário (no prelo). Email: vitornascimentosa@gmail.com




Comentários (6 comentários)

  1. José Inácio Vieira de Melo, Muito boa esta seleção de poemas de Vitor Nascimento Sá. Conheço bem o “Escapulário”. Garanto, é um livro que traz uma poesia marcante, de ritmo bem definido e de muitos encantos. É como diz o poeta Salgado Maranhão: “Vitor Nascimento sá é uma voz sem rascunho”. Abraços. JIVM
    24 junho, 2012 as 12:42
  2. Daniel Farias, maravilha! parabéns, meu caro! forte abraço
    3 julho, 2012 as 14:41
  3. Lidi, Belas poesias, amigo Vitor. Já atestam a qualidade do livro que está chegando. Parabéns. Abraço.
    3 julho, 2012 as 15:41
  4. Ricardo Thadeu, parabéns Vítor. poemas muito bons, meu caro! força poética impressionante. abç
    3 julho, 2012 as 16:09
  5. Clarissa Macedo, Vitor, sua poesia me impressiona; é cheia de uma concretude etérea, muito bem acabada. Abraços e sucesso.
    3 julho, 2012 as 16:20
  6. neuza pinheiro, sua poesia toca e vai cortando
    12 julho, 2012 as 19:46

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