Erotismo e literatura


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“A totalidade não deixa espaço para o desejo.”

Anatole Vasanpeine

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Alberto Manguel nasceu em Buenos Aires, naturalizou-se canadense, e vive atualmente no interior da França. É autor de livros de ficção e não ficção, dono de uma vasta biblioteca e um dos leitores mais eruditos do nosso tempo. Tive a oportunidade de entrevistá-lo em uma das salas da biblioteca de sua casa, para uma série de TV ainda sem data de estreia. Na ocasião, ele presenteou-me com uma novela de sua autoria, O amante detalhista, que é um convite para refletir com humor sobre erotismo, voyeurismo, fetichismo, verdade e literatura.

A história do livro é narrada por um historiador minucioso, com dicção acadêmica, que faz questão de mostrar rigor na pesquisa. Sua obra é um ensaio biográfico detalhado sobre um certo Anatole Vasanpeine, elaborado a partir de fontes diversas (cadernos de diário, uma biografia, documentação histórica, entre outras referências citadas em rodapé). Ocorre que esse narrador sério não é para ser levado ao pé da letra: quem se aventurar pelas páginas de O amante detalhista, vai alcançar camadas mais profundas de leitura se mantiver alguma desconfiança dele. Parte da graça do livro está no jogo entre a vontade objetiva do narrador e as idiossincrasias de uma subjetividade inescapável.

Vasanpeine nasceu em Poitiers, uma pequena cidade francesa, na última década do século XIX. Na primeira parte do livro, ele é apresentado como um rapaz macambúzio que entrega sabonetes e toalhas numa casa de banho. O seu cotidiano é sempre o mesmo: ele passa o dia observando detalhes dos corpos dos freqüentadores da casa de banho, seja dentro dos limites do permitido (pela abertura estreita da divisória onde trabalha), seja avançando em território proibido (escondido por trás de uma fenda na porta ou rachaduras na parede). Seu prazer está em olhar partes do corpo humano: orelha, joelho, peito, seio, dedo, pé, assim por diante, uma por uma. Não é o todo que o interessa, mas o detalhe. Se pudesse, diz ele num dos seus primeiros cadernos de diários, gostaria de enfeitiçar cada uma dessas partes da anatomia humana, para poder guardá-las como se guardam pássaros na gaiola.

No ano da Primeira Guerra Mundial, aparece em Poitiers alguém que pode ajudá-lo nesse – digamos – feitiço. Trata-se de um livreiro japonês, o sr. Kusakabe, que ensina Vasanpeine a fotografar. Segundo seu mestre oriental, as fotografias eram conhecidas em sua língua como chachin, isto é, imagens da verdade. Maravilhado com a possibilidade de enfeitiçar peitos, orelhas e muito mais com a câmera, Vasanpeine passa então a dedicar seu tempo à fotografia escondida na casa de banhos. Retrata os pormenores dos banhistas com sua máquina, e depois fica vendo as fotos sozinho em sua casa. Como diz o narrador, “a câmera era sua alcoviteira”.

Numa primeira visão, parece que o personagem tem algo de fetichista e voyeur. Afinal, como muitos sabem, a origem da palavra fetichismo está em feitiço: no princípio, designava as formas de religião que convertiam certos animais e seres inanimados em divindades com poder mágico; depois, numa linha psicanalítica, a palavra passou a designar também um tipo de perversão sexual, na qual uma parte do corpo ou um objeto passam a substituir uma pessoa. Numa análise inicial, parece bem o caso de Vasanpeine, que toma eroticamente a parte no lugar do todo. No entanto, seu amor pelo detalhe não é por uma única parte (como, por exemplo, um fetichista podólatra é fixado pelo pé), mas por todas as partes (pescoço, orelha, ponta do queixo, e mais), desde que recortadas de seu conjunto original.

Além disso, a relação de Vasanpeine também depende de um segundo passo: sozinho no seu quarto, ele combina a anatomia humana fragmentada em formas improváveis, inventando novos animais a partir dos elementos que dispõe, tal como quem brinca num caleidoscópio. As fotos, que são em algum grau fetichizadas na sua singularidade, pois emanam certo poder mágico, são submetidas a mosaicos eróticos, matizando sua voltagem original.

Já no caso do voyeurismo, é o próprio narrador detalhista que se encarrega de refutar o diagnóstico. Se pensamos voyeurismo como observar uma pessoa que não sabe que está sendo vista, tal definição não se aplicaria ao fotógrafo da casa de banhos. Nas palavras do narrador, “voyeur tem uma conotação escabrosa, uma acusação implícita de práticas eróticas indecentes em que o prazer sexual resulta da invasão do reino privado de outrem”.

Além disso, diz ele que, no caso de Vasanpeine, “toda sua arte dependia de uma confluência de anonimidades em que nem observador nem observado tinham reconhecimento de suas respectivas identidades”. E, por fim, completa: “Vasanpeine não era um espectador. Era um ator à espera do sinal para entrar em cena. A responsabilidade dele começava após ter revelado o filme no quarto escuro, depois que os produtos químicos haviam desempenhado a função que lhes cabia e algo até então não identificado e sem dono, como um novo planeta nos céus, entrava em seu campo de visão e podia então ser abraçado – não em sua forma viva e dotada de sentidos, mas em sua manifestação bidimensional em papel lustroso”.

Ou seja, ao menos para o narrador, não havia voyeurismo: os envolvidos não sabiam suas identidades, a visão propriamente dita de Vasanpeine só começava depois que a foto estava feita, importava a foto em si e não a realidade fotografada. Se dá ou não para confiar nesse narrador – que gosta muito do seu protagonista, e fica preocupado com a “conotação escaborosa” da palavra voyeur – cada leitor terá seu ponto de vista. Minha sugestão é que algum distanciamento vale à pena, em especial quando aquele que conta a história é tão detalhista quanto aquele cuja história é contada. Como vimos, uma das graças do livro está no modo como a subjetividade contamina  a objetividade do narrador.

Na segunda parte do livro, temos uma mudança na vida de Vasanpeine: ele se apaixona. O fato é de tal ordem de gravidade que o próprio narrador muda o tom, abandona a dicção acadêmica e se diz obrigado a usar recursos literários: “(…) peço desculpas ao leitor por trocar a crônica rigorosa pela farsa de baixo nível. Tácito [historiador romano] observa em seus Anais que o anotador de fatos não pode ser culpado pelos momentos em que a história perde a compostura”. A invocação ao famoso historiador romano da Antigüidade, Tácito, é uma piada, claro. A perda da compostura é do narrador, que abandona a ambição histórica totalizante, e se entrega à parcialidade subjetiva (que, na sua opinião a partir da metade final do livro, pode chegar mais perto de certas verdades).

No outono de 1930, Vasanpeine tomava seu café habitual, quando notou pelo canto do olho uma figura pequena, esférica, redonda, andando desajeitada. Em seguida, perdeu-a de vista. Foi a primeira vez na vida que chegou atrasado no trabalho. Dias depois, ele encontrou a figura de novo, e é obrigado a fazer uma longa perseguição até os pedaços mais distantes de Poitiers para mantê-la sob seu campo de visão. O ponto alto da busca é quando Vasanpeine chega na casa da figura, e fica dependurado na janela, vendo-a bamboleando pela casa, coberta de xales, mantas, casacos e muito mais, reforçando sua aparência enigmática e pouco visível. Quando ela finalmente é vista, sua descrição é ao mesmo tempo engraçada, absurda e feita de uma matéria que só existe na literatura: “No todo, a principal característica era sua continuidade: nenhuma interrupção ou sinal distintivo impedia a cabeça de fundir-se sem esforço com o pescoço, e este de escorregar rumo aos ombros. Os braços curtos e as mãos miúdas pouco afetavam a impressão geral de uma redondeza perfeita, uma vez que a ausência de cintura tornava impossível distinguir o peito da barriga e as costas das coxas balofas”.

E o que talvez seja o mais importante: “(…) agora lá estava uma criatura que era tanto um todo quanto um detalhe, soma das partes e entidade singular, coerente e monadário. Não era necessário retalhar uma complexa constelação para concentrar-se num pedaço encantador, numa partícula excitante. Aquela criatura auto-suficiente era fragmentária e completa, partida em pedaços e indivisível. Nunca antes Vasanpeine encontrara coisa igual. O amor o tomou de assalto. Olhou-a num transe. Pressionou o botão. O obturador piscou.”

Não é o caso de contar aqui o que acontece depois, mas somente adiantar que, a partir do momento em que dispara o flash da câmera, Vasanpeine vai adquirir nova consciência.  Desse momento em diante, ele vai ter que encarar o mundo da carne, da decomposição, do cheiro, do limite. Os detalhes vão ganhar um sinal diverso do feitiço, e o tempo e a realidade vão vir cobrar suas contas. Haverá pouco lugar para a promessa de eternidade e para a sedução imagética que a fotografia proporciona, pois ligações insuspeitas correm nas veias da sua imaginação.

Além do prazer da leitura, O amante detalhista diz muito do nosso tempo: o feitiço das imagens que substituem o real, a visibilidade como critério equívoco de certezas, o voyeurismo a que parecemos fadados num mundo que cancela o contato humano verdadeiro, a dificuldade do sujeito de ultrapassar uma realidade feita de verdades esfaceladas e alcançar um ponto de vista totalizante, as armadilhas da subjetividade nos trilhos da objetividade, a relação entre erotismo e pornografia, realidade e mimese, entre outros pontos importantes.

Por ora, acho que não é o caso de desenvolver isso tudo aqui, mas somente deixar anotado como ideias para um diálogo com quem eventualmente se arriscar nas páginas desse livro, e permitir-se receber o imenso presente que Alberto Manguel deixou para todos nós.

No Brasil, o livro foi lançado pela Companhia das Letras e traduzido por Jorio Dauster. A ilustração que colei é uma reprodução do quadro Susana no seu banho, 1850, de Francesco Hayez, em exibição na National Gallery, Londres, de cujo site fiz a cópia. Quem quiser fazer uma consulta rápida sobre fetichismo na psicanálise, passe os olhos no Dicionário de psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, publicado pela Jorge Zahar.

 

 

 

 

 

 

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Daniel Augusto é diretor de cinema e TV e Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo.  Seu documentário mais recente é o longa-metragem Amazônia desconhecida (lançamento previsto para 2013), e seu último curta-metragem ficcional, Porn Karaoke, está percorrendo o mundo em festivais (Veneza Circuito Off, Shnit International Shortfilmfestival da Suíça, Festival de Monterrey, entre outros). Sua dissertação de mestrado, Um assunto de silêncios, foi orientada por José Miguel Wisnik, e teve a obra de Guimarães Rosa como tema. E-mail: daniaugusto@hotmail.com




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